O FIM DA FILOSOFIA

Entrevista com Martin Heidegger

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 15 de janeiro de 1988

O filósofo alemão fala ao "Der Spiegel", em 1966, sobre sua convivência com o nazismo e suas idéias políticas

Martin Heidegger nasceu no dia 26 de setembro de 1889, em Messkirch (Baden), no sul da Alemanha. Sua obra principal, "Ser e Tempo", publicada em 1927, representa uma nova era para o pensamento europeu. Entre 1933 e 1934, Heidegger ocupou o cargo de reitor da Universidade de Friburgo. A seguir, trechos da entrevista em que o filósofo expõe suas posições políticas, concedida em 1966 ao semanário alemão "Der Spiegel" e publicada logo após sua morte, em 1976.


Pergunta - Enfim, o senhor aceitou o cargo [de reitor da Universidade de Friburgo]. Como imaginava que seriam suas relações com os nacional-socialistas?
Martin Heidegger - Dois dias depois vieram ao reitorado o chefe dos estudantes com dois companheiros e renovaram seu pedido para colar os cartazes contra os judeus. Recusei. Os três estudantes se retiraram fazendo a observação de que esta proibição seria comunicada à chefatura dos estudantes do Reich. Alguns dias depois me chamou por telefone, do escritório da Escola Superior das SA, o chefe de grupo Dr. Baumann. Exigiu-me a autorização para colar os cartazes, como já se fizera em outras universidades. No caso de eu me recusar dava-se como certa minha destituição e o fechamento da universidade. Busquei o apoio do ministro de Cultos e Instrução Pública de Baden para manter minha proibição. Ele me respondeu que não podia fazer nada contra as SA. No entanto não voltei atrás e mantive minha negativa.
Pergunta - Até agora não se conhecia isto.
Heidegger - O motivo por que me decidi a aceitar o reitorado está formulado em minha conferência "O Que É a Metafísica", que dei em Friburgo em 1929: "As ciências estão separadas cada uma em seu campo. A forma de tratar suas matérias é completamente diferente. Esta desgarrada diversidade de disciplinas adquire hoje uma significação junto à organização técnica das universidades e faculdades através dos objetivos práticos dos especialistas. Ao contrário, o enraizamento das diversas ciências em sua base fundamental terminou"; durante o meu reitorado o que tentei sobre a situação da universidade, hoje degenerada ao extremo, está exposto no meu discurso do reitorado.
Pergunta - Bem, compreendemos. Cremos perceber um novo tom em seu discurso de reitorado quando o senhor, quatro meses depois da nomeação de Hitler como chanceler, fala da grandeza e magnificência da reabilitação nacional.
Heidegger - Sim, estava convencido disto.
Pergunta - Pode explicar-nos um pouco?
Heidegger - Sim, com muito gosto. Não via outra alternativa. Entre a confusão geral de opiniões e tendências de 22 partidos, me parecia válida uma atitude nacional, e sobretudo social, no sentido do ensaio de Friedrich Naumann.
Pergunta - Agora, a democracia é um conceito que engloba diferentes concepções. O problema que se coloca é se ainda é possível uma transformação desta forma política. Depois de 1945 o senhor se referiu às tentativas do mundo ocidental em matéria política, e também falou sobre a democracia, as concepções cristãs do mundo e também do Estado de direito, que o senhor denominou imperfeições.
Heidegger - Em primeiro lugar, quero pedir-lhe que me diga se o senhor é capaz de mencionar onde falei sobre a democracia. Como insuficiências, quero indicar que não vejo conflito real com o mundo técnico, já que existe a convicção de que a essência da técnica é uma coisa que está nas mãos do homem. Na minha opinião isto não é possível. A técnica em sua essência é algo que o homem não pode dominar.
Pergunta - É evidente que o homem, com os meios técnicos de que dispõe na atualidade, não estará disposto a se fazer de aprendiz de feiticeiro. Não é algo pessimista afirmar que ainda com este grandes meios, a técnica moderna não está concluída?
Heidegger - Pessimismo, não. No terreno dos conhecimentos atuais, pessimismo ou otimismo são posições que duram pouco. Mas, sobretudo a técnica moderna não é um utensílio e nada tem a ver com os utensílios.
Pergunta - Porque devemos estar tão poderosamente dominados pela técnica?
Heidegger - Não disse dominados. Disse que não temos ainda um método que responda à essência da técnica.
Pergunta - Pode-se objetar ingenuamente: que há que dominar? Tudo funciona. Constroem-se mais e mais obras elétricas. Produzir-se-á cada vez mais inteligentemente. Os homens estão bem abastecidos, na parte altamente tecnificada da Terra. Vivemos um bem estar geral. O que falta aqui?
Heidegger - Tudo funciona, isto é o inquietante, que funcione e que o funcionamento nos impede sempre a um maior funcionamento e que a técnica dos homens separa-os da terra e os desarraiga sempre mais. Não sei se os senhores estão assustados, em todo caso eu me assusto ao ver as fotos da Terra vista da lua. Não precisamos de bombas atômicas, o desenraizamento dos homens é um fato. Temos apenas puras relações técnicas. Não há um só canto da Terra em que o homem, hoje, possa viver. Tive uma longa conversa na Provença com René Char, como o senhor sabe, poeta e combatente da resistência. Na Provença construíram-se bases para foguetes e o campo será devastado de forma inimaginável. O poeta me disse que o desenraizamento que isso acarreta é o fim, a não ser que o pensar e o poetar logrem uma potência sem violência.
Pergunta - O homem pode influir ainda na rede deste processo forçado, pode a filosofia influir ou ambos de uma vez, dado que a filosofia de um ou de vários conduz a uma ação determinada?
Heidegger
- A filosofia não pode realizar imediatamente uma mudança no atual estado do mundo. Isto vale não somente para a filosofia, mas para todos os sentimentos e aspirações humanas. Só um deus pode salvar-nos ainda. Resta-nos a única possibilidade de prepararmo-nos, pelo pensar e poetar, para a aparição de um deus ou sua ausência no ocaso. Frente a ausência de um deus, nos afundamos.
Pergunta - Podemos ajudar-nos?
Heidegger - A preparação para essa espera é a primeira ajuda. O mundo, o que é e como é, não pode ser só para os homens, mas tampouco sem eles. Ao que me parece tudo isso está relacionado com a palavra tradicional, equívoca e agora muita gasta, que eu nomeei Ser; os homens precisam dela para sua manifestação, estruturação e conservação. A essência da técnica eu vejo no que chamei de armação, uma expressão frequentemente risível e talvez inapropriada. O mecanismo atuante da armação enuncia: o homem está sitiado, intimado e desafiado por uma potência, claramente a essência da técnica, e que ele mesmo não pode dominar. Ao pensamento só se pode pedir que ajude a compreender. É o fim da filosofia.


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