O filósofo alemão fala ao "Der Spiegel",
em 1966, sobre sua convivência com o nazismo e suas idéias
políticas
Martin
Heidegger nasceu no dia 26 de setembro de 1889, em Messkirch (Baden),
no sul da Alemanha. Sua obra principal, "Ser e Tempo",
publicada em 1927, representa uma nova era para o pensamento europeu.
Entre 1933 e 1934, Heidegger ocupou o cargo de reitor da Universidade
de Friburgo. A seguir, trechos da entrevista em que o filósofo
expõe suas posições políticas, concedida
em 1966 ao semanário alemão "Der Spiegel"
e publicada logo após sua morte, em 1976.
Pergunta - Enfim, o senhor aceitou o cargo [de reitor da Universidade
de Friburgo]. Como imaginava que seriam suas relações
com os nacional-socialistas?
Martin Heidegger - Dois dias depois vieram ao reitorado
o chefe dos estudantes com dois companheiros e renovaram seu pedido
para colar os cartazes contra os judeus. Recusei. Os três
estudantes se retiraram fazendo a observação de
que esta proibição seria comunicada à chefatura
dos estudantes do Reich. Alguns dias depois me chamou por telefone,
do escritório da Escola Superior das SA, o chefe de grupo
Dr. Baumann. Exigiu-me a autorização para colar
os cartazes, como já se fizera em outras universidades.
No caso de eu me recusar dava-se como certa minha destituição
e o fechamento da universidade. Busquei o apoio do ministro de
Cultos e Instrução Pública de Baden para
manter minha proibição. Ele me respondeu que não
podia fazer nada contra as SA. No entanto não voltei atrás
e mantive minha negativa.
Pergunta - Até agora não se conhecia isto.
Heidegger - O motivo por que me decidi a aceitar o reitorado
está formulado em minha conferência "O Que É
a Metafísica", que dei em Friburgo em 1929: "As
ciências estão separadas cada uma em seu campo. A
forma de tratar suas matérias é completamente diferente.
Esta desgarrada diversidade de disciplinas adquire hoje uma significação
junto à organização técnica das universidades
e faculdades através dos objetivos práticos dos
especialistas. Ao contrário, o enraizamento das diversas
ciências em sua base fundamental terminou"; durante
o meu reitorado o que tentei sobre a situação da
universidade, hoje degenerada ao extremo, está exposto
no meu discurso do reitorado.
Pergunta - Bem, compreendemos. Cremos perceber um novo tom
em seu discurso de reitorado quando o senhor, quatro meses depois
da nomeação de Hitler como chanceler, fala da grandeza
e magnificência da reabilitação nacional.
Heidegger - Sim, estava convencido disto.
Pergunta - Pode explicar-nos um pouco?
Heidegger - Sim, com muito gosto. Não via outra
alternativa. Entre a confusão geral de opiniões
e tendências de 22 partidos, me parecia válida uma
atitude nacional, e sobretudo social, no sentido do ensaio de
Friedrich Naumann.
Pergunta - Agora, a democracia é um conceito que engloba
diferentes concepções. O problema que se coloca
é se ainda é possível uma transformação
desta forma política. Depois de 1945 o senhor se referiu
às tentativas do mundo ocidental em matéria política,
e também falou sobre a democracia, as concepções
cristãs do mundo e também do Estado de direito,
que o senhor denominou imperfeições.
Heidegger - Em primeiro lugar, quero pedir-lhe que me diga
se o senhor é capaz de mencionar onde falei sobre a democracia.
Como insuficiências, quero indicar que não vejo conflito
real com o mundo técnico, já que existe a convicção
de que a essência da técnica é uma coisa que
está nas mãos do homem. Na minha opinião
isto não é possível. A técnica em
sua essência é algo que o homem não pode dominar.
Pergunta - É evidente que o homem, com os meios técnicos
de que dispõe na atualidade, não estará disposto
a se fazer de aprendiz de feiticeiro. Não é algo
pessimista afirmar que ainda com este grandes meios, a técnica
moderna não está concluída?
Heidegger - Pessimismo, não. No terreno dos conhecimentos
atuais, pessimismo ou otimismo são posições
que duram pouco. Mas, sobretudo a técnica moderna não
é um utensílio e nada tem a ver com os utensílios.
Pergunta - Porque devemos estar tão poderosamente dominados
pela técnica?
Heidegger - Não disse dominados. Disse que não
temos ainda um método que responda à essência
da técnica.
Pergunta - Pode-se objetar ingenuamente: que há que
dominar? Tudo funciona. Constroem-se mais e mais obras elétricas.
Produzir-se-á cada vez mais inteligentemente. Os homens
estão bem abastecidos, na parte altamente tecnificada da
Terra. Vivemos um bem estar geral. O que falta aqui?
Heidegger - Tudo funciona, isto é o inquietante,
que funcione e que o funcionamento nos impede sempre a um maior
funcionamento e que a técnica dos homens separa-os da terra
e os desarraiga sempre mais. Não sei se os senhores estão
assustados, em todo caso eu me assusto ao ver as fotos da Terra
vista da lua. Não precisamos de bombas atômicas,
o desenraizamento dos homens é um fato. Temos apenas puras
relações técnicas. Não há um
só canto da Terra em que o homem, hoje, possa viver. Tive
uma longa conversa na Provença com René Char, como
o senhor sabe, poeta e combatente da resistência. Na Provença
construíram-se bases para foguetes e o campo será
devastado de forma inimaginável. O poeta me disse que o
desenraizamento que isso acarreta é o fim, a não
ser que o pensar e o poetar logrem uma potência sem violência.
Pergunta - O homem pode influir ainda na rede deste processo
forçado, pode a filosofia influir ou ambos de uma vez,
dado que a filosofia de um ou de vários conduz a uma ação
determinada?
Heidegger - A filosofia não pode realizar imediatamente
uma mudança no atual estado do mundo. Isto vale não
somente para a filosofia, mas para todos os sentimentos e aspirações
humanas. Só um deus pode salvar-nos ainda. Resta-nos a
única possibilidade de prepararmo-nos, pelo pensar e poetar,
para a aparição de um deus ou sua ausência
no ocaso. Frente a ausência de um deus, nos afundamos.
Pergunta - Podemos ajudar-nos?
Heidegger - A preparação para essa espera
é a primeira ajuda. O mundo, o que é e como é,
não pode ser só para os homens, mas tampouco sem
eles. Ao que me parece tudo isso está relacionado com a
palavra tradicional, equívoca e agora muita gasta, que
eu nomeei Ser; os homens precisam dela para sua manifestação,
estruturação e conservação. A essência
da técnica eu vejo no que chamei de armação,
uma expressão frequentemente risível e talvez inapropriada.
O mecanismo atuante da armação enuncia: o homem
está sitiado, intimado e desafiado por uma potência,
claramente a essência da técnica, e que ele mesmo
não pode dominar. Ao pensamento só se pode pedir
que ajude a compreender. É o fim da filosofia.