O FILÓSOFO DO CONTRA

Entrevista de JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI a MARILIA PACHECO FIORILLO

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 30 de junho de 1985

Em 1969 ele foi cassado pelo regime militar. Em 1985 chamam-no de reacionário por suas posições contra o assembleísmo. Sua obra é fundamental para entender o marxismo, e original a ponto de ter posto no bolso Althusser quando este era um dos mestres-pensadores do Ocidente.
Há José Arthur GIANNOTTI para pelo menos dois gostos, neste final de junho - a editora Brasiliense lança seu "Filosofia Miúda", uma coletânea de textos em que o leigo pode se, e a L&PM gaúcha relança "Origens da Dialética do Trabalho", vinte anos após este estudo sobre a lógica do jovem Marx (e contra o humanismo) ter sacudido a província de São Paulo, apesar do próprio autor confessar que, na época, o livro foi recebido "com reverência e sem muito entendimento". Um dos maiores pensadores do país, cujo rigor e originalidade marcam internacionalmente a história da filosofia brasileira, GIANNOTTI também é conhecido pela absoluta independência de suas opiniões miúdas - sobre a crise do ensino, o papel do intelectual do 3° mundo ou o assembleísmo que pode por em risco a universidade brasileira. Esses são algumas dos temas desta entrevista.

Folhetim: Esse é seu primeiro livro reunindo miudezas, ensaios curtos?
GIANNOTTI: Não - nos anos 70, quando estávamos fora da universidade, publiquei também muitos textos de combate, alguns reunidos em "Exercícios de Filosofia", outros em jornais. Lembro de uma série de artigos para o "Jornal do Bairro", de Pinheiros - em particular um deles, inspirado num episódio com meu filho. Um dia estava lendo para ele uma historinha infantil chamada "Tigrinho Tristonho". Era sobre um tigre que sempre havia vivido na jaula e um dia escapa e passa uma fome desgraçada na floresta. E à noite, quando finalmente ouve os apelos do domador, volta e lambe-lhe as mãos. No meio da leitura fiquei tão apavorado que precisei inventar uma coisa a mais, então disse olha, quem nasce preso só com muito exercício é capaz de encontrar a liberdade. A partir daí saiu um artiguinho de crítica a esse tipo de publicação que estávamos fazendo no Brasil. E nessa época, como agora, eu estava fazendo circular "Origens da Dialética do Trabalho", que é de 1965, com meus textos de combate.
Folhetim: "Origens da Dialética do Trabalho" foi seu primeiro grande empreendimento teórico?
GIANNOTTI: Antes disso escrevi minha tese de doutoramento sobre Stuart Mill, o psicologismo e a fundamentação da Lógica, mas essa está enterrada. Foi preparada em Paris, mas defendida aqui na USP. Nunca mais li essa tese. Alias, nunca consigo reler textos meus.
Folhetim: Você detesta rever seus trabalhos, uma vez terminados?
GIANNOTTI: Acho a coisa mais cacete do mundo ler coisas que escrevi. Chatíssimo. Para mim um assunto, depois que ganhou forma escrita, morre. E por isso que meus livros estão cheios de erros, eu não consigo de forma alguma revisa-los.
Folhetim: Foi algo depois de estudos marxistas, alias o seminario pioneiro do Brasil sobre "O Capital", e que tinha entre seus participantes Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz?
GIANNOTTI: Isso foi exatamente entre 58 e 62, uma experiência que formou nossa geração. Logo depois saia "Origens...", com uma polêmica muito precisa na província de São Paulo, a polêmica contra o humanismo. Todo meu esforço era para mostrar como uma certa lógica que pensa o mundo capitalista a partir das essências genéricas do homem é obviamente uma lógica que não é capaz de conter a si mesma, uma lógica falha. No fundo, uma lógica que não faz senão revidar a lógica hegeliana.
Folhetim: Como este livro, que está sendo relançado vinte anos depois, foi recebido na época?
GIANNOTTI: Como um livro inteiramente acadêmico e muito erudito. Quer dizer, com reverência e sem muito entendimento.
Folhetim: Muito erudito para o padrão brasileiro anos 60?
GIANNOTTI: Há um caso interessante a este respeito. No final da década de 60 o livro do Althusser tinha acabado de sair ("Por Marx" é de 1965 e "Lire le Capital" de 1967), e como eu estava afiado no assunto escrevi rapidamente uma resposta, num artigo intitulado "Contra Althusser", que teve uma série de repercussões, porque afinal brigar com parisiense sempre vai bem. Aí resolvi traduzir o texto para o francês e mandá-lo ao próprio Althusser - que, depois eu soube através de terceiros, gostou muitíssimo. Fiquei esperando então que o artigo saísse no "Temps Modernes", mas ele simplesmente desapareceu. Pensei: bom, seria um artigo pequeno, provavelmente sem muita importância para a discussão toda. Mas veja que engraçado: há um ano atrás estive em Paris e jantei com o Balibar (famoso teórico marxista-estrutralista), que me conhecia exatamente através do tal artigo, e comentou que tinha lido na época, achado muito interessante, e coisa e tal. Isso me levou a pensar no que significa, exatamente, realizar um trabalho intelectual na periferia da cultura.
Folhetim: O intelectual da periferia estaria condenado a participar sempre com atraso no debate de idéias?
GIANNOTTI: Você é capaz de trabalhar as coisas do modo o mais rigoroso possível, de estar acompanhando a bibliografia internacional, mas há uma diferença enorme entre a produção de um texto e sua divulgação. Para a divulgação, é preciso estar presente nos meios de circulação das idéias.
Folhetim: Você não acha que há uma certa hierarquia nesta circulação de temas no exterior? Por exemplo, se for um estudo sobre a classe operária latino-americana, ou assuntos passíveis de folclorização, que não toquem tão diretamente no que é patrimônio da cultura do 1° mundo, eles não circulam mais fácil?
GIANNOTTI: Não se trata nem de temas folclóricos, mas dos que dizem respeito à nossa especificidade. Se for assim, a cultura metropolitana consome esses textos como parte de sua reflexão sobre o Terceiro Mundo, sobre o Segundo Mundo, e assim por diante. Mas quando você começa a falar uma linguagem mais abstrata em que os temas não têm, pelo menos à primeira vista, uma raiz específica, e quando você começa a debater com aquelas pessoas que querem pensar filosoficamente o mundo, então ou você vira francês, ou norte-americano, inglês, alemão.
Folhetim: Quer dizer, muda-se para Nova York, Paris, etc.?
GIANNOTTI: Ou mora lá, ou viaja sistematicamente, ou participa dos debates importantes, das publicações - senão, você não tem vez. Esse meu texto sobre Althusser era contemporâneo, mas como eu não estava no circuito virou algo a ser discutido por um ou dois especialistas. Nossa cultura acaba sofrendo um tempo de retardo.
Folhetim: Curioso que você, que reclama dessa discriminação, seja dos poucos intelectuais brasileiros a dialogar de igual para igual com seus pares metropolitanos.
GIANNOTTI: Isso é puro preconceito. Essa dupla titulação (nacional e internacional) é apenas um elemento de compensação imaginária do nosso retardo. Vou contar uma passagem: certa vez estava na Assembléia Legislativa com um grupo de intelectuais, para uma palestra. Cada vez que apresentavam um dos participantes diziam: fulano de tal, professor de Universidade de Campinas e de Columbia, beltrano, professor da USP e da Sorbone. Uns tinham passado meses, anos, fora - outros só alguns dias. E os únicos que se apresentaram sem "dupla titulação", como apenas da Universidade de São Paulo, fomos eu e o Antonio Candido. O nosso retardo é inevitável enquanto nossa cultura não começa a participar em grande estilo da cultura internacional. Até aí é melhor a gente cultivar nosso jardim.
Folhetim: Trata-se então de moderar a influência do Velho Mundo, controlando a alfândega das idéias?
GIANNOTTI: Nós dizíamos, somos diferentes, não somos uma Repiblica de Banana. Mas comemos bananas durante esses últimos vinte anos... E recentemente percebemos que o ciclo da nossa política segue mais ou menos o da política latino-americana. Somos diferentes, mas nem tanto, e é bom que comecemos a manter contatos maios íntimos com os nossos colegas de desgraça, em vez de grandes mestres da metrópole.
Folhetim: Mas você não acha perigoso falar numa unidade latino-americana?
GIANNOTTI: Eu não estou propondo que se fechem fronteiras. Já nos fecharam tantas, basta ir a uma livraria e perceber que não há mais livros estrangeiros. E longe de pensar que devemos lutar por uma cultura nacional, ou regional, e que esta cultura nasce do povo e os intelectuais são seu reflexo. Sou inteiramente contrário à cultura do jabá. Acho, aliás, que vamos resolver nossos problemas através de uma ciência muito avançada, que esteja debatendo com o pensamento da metrópole, mas a partir de nós mesmos. Para empregar esse mundão de gente que está por aí é necessário combinar altas tecnologias e tecnologia própria. A mesma coisa no debate de idéias; precisamos estar afinados com o que está acontecendo internacionalmente em nossas áreas, mas ao mesmo tempo formar nosso público. Temos que falar linguagens diferentes: de um lado escrever teses acadêmicas, ensaios profundos, chatíssimos mas importantes, e de outro participar da comunicação de massa. E isso encerra algum perigo, também: ao entrarmos nos meios de comunicação de massa podemos ser triturados.
Folhetim: Como seria esse massacre pelos meios de comunicação?
GIANNOTTI: O grande perigo do jornal - e eu tenho participado dele - é que de repente começam a pedir coisas sistematicamente a você. Daí você começa a escrever de acordo com o pedido, e, se faz assim, escreve de acordo com o efeito que vai produzir entre os leitores - daqui a pouco estará escrevendo o que as pessoas querem ouvir, não o que você quer falar. Para o intelectual isso é muito fácil porque pode-se pegar qualquer idéias que esteja circulando e legitimá-la através da citação de um filósofo. E gosto não se discute. Então o que acabamos fazendo é pegar um conceito popular e conferir-lhe um pseudo estatuto cientifico - e com isso as pessoas que estão nos ouvindo ficam absolutamente felizes porque dizem, ah, pois não é exatamente o que eu estava pensando... Resultado: nos tornamos ecos do senso comum, que é o da mistificação. Temos que pensar popularmente, mas dispensando o senso comum. Somos intelectuais da miséria mas não queremos ser intelectuais miseráveis.
Folhetim: Você acredita que com a Nova República a produção intelectual vá se dinamizar?
GIANNOTTI: Nós esperávamos que quando as gavetas dos censores se abrissem teríamos uma produção extraordinária. Pois bem, as gavetas se abriram, e o que temos? Um cinema nacional que é muitíssimo inferior ao cinema novo. O teatro desapareceu. Livros, produzidos aos montes, mas em grande parte são pálidas imagens do que se está fazendo no exterior.
Folhetim: E a universidade?
GIANNOTTI: Ela se burocratizou de tal maneira que está correndo um risco enorme. A universidade hoje não sabe mais qual é o jogo universitário: e a questão da democratização pode implicar numa espécie de "igualamento" de todos, pondo em risco a convivência da democracia com relações assimétricas. A universidade é um lugar onde a competência tem que valer. Mas o assembleísmo, que é natural numa situação de reivindicação como a nossa, pode acabar liquidando com ela.
Folhetim: Quais os riscos desse assembleísmo?
GIANNOTTI: Outro dia estava assistindo à primeira conferência de um ciclo sobre Foucault na USP. O Lébrun fazia uma palestra, extraordinariamente bem feita, aliás. Só que ele tem sotaque francês - mas as pessoas a meu lado, colegas, estudantes, acompanhavam bem a exposição. Mal a conferência termina levanta-se um rapaz e põe-se a discutir o colonialismo. Depois, aparece outro que começa a contar suas recentes experiências no Juqueri, onde havia sido internado e passado os piores vexames. Inicia-se então uma discussão sobre a validade ou não do internamento psiquiátrico, coisa que não tinha absolutamente nada a ver com a conferência. Eu então propus uma questão de ordem, pedindo para restabelecer o diálogo universitário.
Folhetim: E questão de ordem foi aceita?
GIANNOTTI: Foi simplesmente tida como impertinência minha, na medida em que impedia que as pessoas falassem. Mas a questão não é fazer com as pessoas falem - embora tenham sido caladas durante tanto tempo. A questão é falar pertinentemente. Nós estamos simplesmente confundindo USP com PUTUSP.
Folhetim: Mas consta que de uns tempos para cá até mesmo os estudantes voltaram a estudar.
GIANNOTTI: Sim, mas os estudantes que estão voltando a estudar, que pedem aos professores para chegar na hora certa, exigem bibliografia e correção dos seus textos, esses alunos são apontados em muitos institutos como a nova-direta. Outra vez passamos pelo problema da defasagem no tempo: no momento em que estoura o envelope da ditadura (só o envelope, porque os mecanismo continuam aí) o pessoal entra numa fase 68, quando 68 já acabou no mundo inteiro.
Folhetim: Um anti-autoritarismo de segunda, então?
GIANNOTTI: O professor hoje tem vergonha de dizer ao aluno "O senhor está reprovado". E se é assim, a universidade está em risco. De um lado temos a enorme crise institucional, e de outro esse liberalismo. O processo de dissolução de antigas regras pode adquirir uma lógica perversa, não só na universidade, mas em toda a sociedade, na medida em que o populismo renasce. Não das cinzas, mas de uma crise que pode ser instrumentalizada.
Folhetim: Você está pensando na candidatura de Jânio Quadros?
GIANNOTTI: O Jânio pode por em risco o pouco instrumental institucional democrático que se criou nesse país. É o populismo pela direita, com espaço nos jornais, TVs, e muito dinheiro. O Brizola também pode ser instrumentalizado, mas não pela direita, que ele detesta - apesar de ter feito o possível para dela se aproximar, resta saber até que ponto ele poderia conquistar as direitinhas.
Folhetim: Em seu último livro, "Filosofia Miúda", você diz que a antiga distinção entre sábio e sofista passou a ser, no Brasil, entre sábio e sabido.
GIANNOTTI: A produção científica brasileira é, em grande parte, uma falsa produção, um fazer de conta. É muito comum se fazer uma tese sem a menor relevância, mas que serve para a pessoa pular de um cargo para outro na universidade. É enorme a quantidade de trabalhos acadêmicos não publicados. E como a universidade em sua estrutura burocrática exerce uma avaliação canhestra e não exige dos pesquisadores trabalhos relevantes, acaba não havendo grande distinção entre sábio e o sabido.
Folhetim: Qual seria uma forma de avaliação menos canhestra nas universidades?
GIANNOTTI: Conselhos de avaliação das pesquisas que tragam gente de fora para avaliar os departamentos e institutos. A partir daí você poderia ter uma expansão não só do departamento, como das verbas. A situação na universidade é a seguinte: salários absolutamente de miséria, o que em geral corresponde a serviços de miséria, e está formado o círculo vicioso. Hoje se instituíram agentes financiadores, como Fapesp e Capes, que passam a financiar isoladamente indivíduos e grupos. Isso é uma experiência de certo modo válida, a Capes é melhor do que nada. Mas o que estou propondo, tanto na USP como na Comissão de Alto Nível para a Reforma Universitária, é que a universidade seja capaz de internalizar e externalizar esse processo. Por exemplo, que o departamento seja avaliado como um todo e não em seus indivíduos - porque o que ocorre muitas vezes num departamento é uma espécie de acordo, um arreglo entre colegas, você não mete a mão na minha cumbuca que eu não meto na sua. Com isso, cada um faz absolutamente o que quer, sem ouvir as demandas dos alunos ou da sociedade, e muitas vezes sem ouvir mesmo as demandas do próprio grupo. Fica uma relação de Felipe com Felipe. É preciso que a avaliação seja feita por pares, mas que não precisam ser do mesmo departamento nem da mesma universidade. E quando não tivermos especialistas nacionais, traremos gente de fora.
Folhetim: Isto não seria colocar de ponta cabeça a comunidade universitária?
GIANNOTTI: De ponta cabeça não, mas numa pirâmide, onde a competência se faça valer. Precisamos disso também na política, competência mais democratização, com voto para analfabeto, partidos etc.
Folhetim: E Constituinte?
GIANNOTTI: O mais depressa possível, desde que essa Constituinte não seja uma forma de sacanear a vontade popular. E, pelo jeito, ela pode perfeitamente virar uma espécie de véu que quer cobrir a nudez de Maja. O que é fundamental, creio, é a participação política, o pluralismo, a verdade que nasça do embate. Porisso vamos combater desde logo os que se propõem a varrer os partidos. O Jânio não é um devorador de partidos? O Brizola não tem sido também um comedor de partidos?
Folhetim: E qual seria o mecanismo devorador da democracia na universidade?
GIANNOTTI: Outro dia eu gramei cinco horas de carro para ir até Jaboticabal para um congresso da UNESP, onde havia uma assembléia com professores e funcionários para a preparação do estatuto daquela universidade. Logo de início comecei com a exposição de minhas idéias reacionárias. Em primeiro lugar, que a Universidade não é a soma dos interesses de seus pares - é um mecanismo da sociedade e a ela deve prestar contas. Em função disso, que a universidade deve ser organizada não para exprimir sindicalmente os interesses de seus melhores, embora estes também devam ser expressos. E, finalmente, que o funcionário que nela trabalha tem vinculações muito específicas. Por exemplo, um funcionário que serve café deve ter todos seus direitos trabalhistas assegurados, e é uma peça fundamental, mesmo porque sem café a universidade não funciona. Mas não há razão alguma para que esse funcionário participe de maneira constante e maciça num departamento ou órgão técnico da universidade. E mesmo num órgão político como o Conselho Universitário, sua participação deve ser menor. Quando eu dizia isso um funcionário se levantou e protestou veementemente dizendo "é bom que o senhor fique lá na USP e não venha para a UNESP, que é democrática, porque esta universidade não teria lugar para pessoas como o senhor". Esse homem estava querendo me cassar pela segunda vez. Eu tenho esse azar de ser homem do contra - durante a ditadura eu falava contra, e fui cassado. Agora, na democracia, falo contra o populismo e me tacham de reacionário.



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