Lebrun critica os 'tecnófobos' e defende os testes
nucleares franceses
A verdadeira crítica à técnica e à ciência
ainda deve ser feita
VINICIUS TORRES FREIRE
De Paris
O filósofo Gérard Lebrun, do conselho da École
Normale Supérieur de Paris, é um dos principais historiadores
contemporâneos da filosofia. Por muitos anos foi professor
na Universidade de São Paulo. Publicou grandes livros sobre
a filosofia alemã, como "Kant e o Fim da Metafísica''
(Martins Fontes) e "O Avesso da Dialética: Hegel à
Luz de Nietzsche'' (Companhia das Letras).
No curso da Funarte, Lebrun fará duas conferências,
em novembro: "O Subsolo da Crítica'' e "Sobre a
Tecnofobia''. Foi principalmente sobre este segundo tema que ele
falou à Folha, em Paris.
Lebrun pretende analisar na segunda conferência o pensamento
que "amaldiçoa'' a técnica e a ciência
ou, pelo menos, a forma que elas assumiram hoje. Para os "os
dois grandes partidos dos intelectuais tecnófobos'', segundo
Lebrun, a técnica teria deformado um "projeto autêntico''
da ciência ou seria uma vocação antiga do pensamento
para a dominação e controle (tanto da natureza como
dos seres humanos).
Folha O sr. diz na apresentação de sua conferência
sobre a "tecnofobia'' que a técnica está na base
do que se chama hoje a crise da razão. O que o sr. chama
de "tecnofobia''?
Gérard Lebrun A tecnofobia é esta desconfiança
que se tem da técnica, do seu avanço, especialmente
das técnicas que colocam em perigo o equilíbrio ecológico,
como as tecnologias nucleares. Tecnofobia é essa desconfiança
a priori, esse ódio contra a técnica.
Folha Quem são os tecnófobos? Filósofos,
ambientalistas?
Lebrun O Greenpeace (risos).
Folha O sr. acha ridículas as manifestações
do Greenpeace? E os filósofos tecnófobos?
Lebrun Claro, os filósofos também. Não
diria que as manifestações do Greenpeace são
ridículas, mas acho que seus membros escolhem bem os adversários.
Eles demoraram a se manifestar contra os testes nucleares chineses
e o fizeram de maneira modesta. É uma associação
que não leva em conta os aspectos que estão em jogo,
certos imperativos políticos que pesaram na decisão
francesa de retomar os testes nucleares.
Você deve estar percebendo que sou a favor destes testes.
Há uma nova situação internacional, que é
preciso levar em conta. Claro, não existe mais risco imediato
de uma guerra atômica, mas há Saddam Hussein, que desenvolvia
uma bomba nuclear antes da guerra do Golfo, e hoje em dia há
15 países que têm ou podem desenvolver armas atômicas.
E, se nós pensamos que essas armas podem estar nas mãos
de gente como Khadafi ou Hussein, é preciso tomar certas
precauções, não é?
Folha É a mesma posição de Jacques
Chirac.
Lebrun Mas, você sabe, a posição
de Chirac é orientada pelo seu conselho diplomático,
que tem estudos e trabalhos notáveis sobre a situação
internacional. São analistas muito sérios. É
muito fácil para Hussein obter armas bacteriológicas.
E, depois que a URSS foi desmantelada, aumentou muito o perigo de
que grupos terroristas possam obter armas miniaturizadas. Chernobyl
dá motivos para todo mundo se tornar tecnófobo.
Folha Gostaria de voltar aos filósofos tecnófobos.
Em seu texto, o sr. diz que alguns dos tecnófobos consideram
que a simbiose moderna entre ciência e técnica seria
reveladora de uma vocação antiga do pensamento. O
sr. está falando dos filósofos de Frankfurt?
Lebrun Sim, você tem razão em mencionar
esses pensadores. Eu não pensava exatamente em Adorno, mas
em Marcuse. Pensava ainda em gente como Oswald Spengler, cujos trabalhos
fizeram bastante barulho nos anos 30.
Foram os cientistas que começaram a pensar a questão.
A relação entre técnica e ciência é
um problema sobre o qual gente como Einstein, Oppenheimer e mesmo
Teller (cientistas nucleares, que desenvolveram ou trabalharam no
projeto da bomba americana) já havia refletido de maneira
muito séria. A reflexão sobre os perigos do avanço
técnico começou seriamente neste momento. Você
sabe que Oppenheimer não queria que fosse construída
a bomba de hidrogênio. Foi Teller, que conhecia bem a URSS
de Stalin, que colocou o projeto para funcionar.
Folha Teller era um tanto paranóico.
Lebrun Sim, as pessoas de esquerda têm um péssima
opinião sobre ele. Mas era um homem muito impressionante,
se correspondia com as pessoas importantes da época. Falou-se
muito de suas posições contrárias às
de Oppenheimer, de como era orientado por motivos ideológicos
na sua decisão favorável à bomba de hidrogênio,
mas pode-se dizer que Teller era mais realista em relação
aos problemas, era um judeu de Budapeste que teve uma juventude
muito movimentada, digamos...
O que queria dizer, enfim, é que naquele momento se perguntava
se essa ciência a serviço de uma técnica que
pode ser radicalmente destrutiva era um desvio do projeto científico.
Será que a ciência foi absorvida por uma tecnologia
que deforma seu projeto, sua vocação autêntica?
Este é o primeiro diagnóstico dos tecnófobos.
A ciência de hoje é a realização de um
projeto da verdadeira ciência, do saber, que vem desde os
gregos, ou, ao contrário, é uma deformação
monstruosa? Estes são os dois partidos que distingo, em geral,
entre os filósofos que chamo de "tecnófobos''.
Talvez o termo seja muito forte. Podemos chamá-los também
de misotécnicos.
Folha Mas, voltando aos frankfurtianos...
Lebrun É um pensamento frequentemente confuso
o de Adorno e o de Marcuse. Tenho uma tendência a preferir
o de Horkheimer e o de Habermas... Não digo que Marcuse seja
desinteressante. Eles tiveram o mérito de perceber, de sentir
coisas que iriam se tornar importantes, como a questão da
técnica. Mas o marxismo de Marcuse era muito pouco marxista.
Como ser marxista condenando a razão técnica? Isso
me parece incompatível com o pressuposto de Marx. A condenação
marcuseana do maquinismo, da razão técnica, vai muito
longe. Pode-se perguntar o que ele iria colocar no lugar, na sua
utopia, se não se quisesse voltar à selvageria original.
Folha Não seria possível então uma
outra ciência, um outro destino da ciência?
Lebrun Mas no país das fadas tudo é
possível. Pode ser que me falte imaginação,
mas não vejo como possa haver. Se falamos de ciências
determinadas, o que pode ser uma outra mecânica quântica?
Marcuse ia a estes extremos, que não podem ser chamados de
outra coisa que utópicos, no sentido pejorativo do termo.
Folha Quando o sr. falava do perigo da técnica,
o exemplo era sempre o perigo nuclear. E a informatização?
Lebrun Sou cada vez mais sensível ao problema
da intervenção, hoje sacralizada, da informática
em toda a administração, inclusive a da universidade.
Percebi há uns anos o quanto isso modificou a vida profissional
na universidade e mesmo a pedagogia. E a mudança não
é para melhor.
A informatização traz grandes perigos. Sou particularmente
sensível aos perigos da indiscrição que a informatização
traz, a carteira de identidade eletrônica. Isso modifica completamente
a noção que temos da liberdade individual.
Folha O sr. tem computador ou já se conectou a
alguma rede eletrônica?
Lebrun Não, Deus me livre. Para que me serviria?
Para procurar todas as definições que Kant dá
de idealismo transcendental? Se eu tivesse um computador, discaria
3615 Descartes? (risos) (Lebrun faz referência ao terminal
de serviços e informações da companhia telefônica
francesa, que dispõe também de correio eletrônico).
Pergunto se isso modifica profundamente o sentido da pesquisa. Acho
que não. Talvez economize tempo de trabalho.
Folha Penso mais na relação das redes de
computador com o espaço público.
Lebrun Penso mais na TV, na influência que ela
pode exercer. Há o risco de morte da imprensa escrita. Será
a morte de toda a cultura. Compare as informações
dos jornais da TV e os escritos. A TV dá a informação
em função do impacto visual. Não há
nenhum esforço de análise, de ponderação,
do que é a informação importante. Qual é
o efeito desse bombardeio de informações sem seleção
alguma? Embrutecimento e despolitização, analfabetismo
e incultura. Gente inculta, uma espécie de atores de "A
Laranja Mecânica''.
Folha Então os tecnófobos têm razão?
Lebrun Não, não. É ridículo querer
enterrar a técnica. Eles têm razão em assinalar
o problema. Mas estão errados em lançar o opróbrio
sobre a ciência, sobre a técnica moderna. A tecnofobia
é a crítica sistemática da ciência, a
crítica reacionária da ciência enquanto tal,
com posições utopistas. Claro, há uma crise
da ciência e da técnica, e os filósofos de Frankfurt
tiveram o mérito de percebê-la antes dos outros. Mas
a verdadeira crítica, no sentido que Kant deu ao termo, ainda
está por ser feita.
As maldições lançadas contra a técnica
apenas retardam essa tarefa, que é necessária. Acho
que todas as posições ideológicas extremas,
assim como o utopismo descabelado, podem levar a posições
tão contestáveis, como as de Spengler ou Heidegger.
Folha O que o sr. pensa da voga linguística e pragmática
na filosofia? O professor brasileiro José Arthur Giannotti
publicou um livro sobre Wittgenstein que provocou polêmica,
polêmica relacionada a esta voga.
Lebrun Mas o livro, que eu pude ler, não é
de modo algum de filosofia analítica. Ele não analisa
proposições. Ele tenta apresentar Wittgenstein...
Folha Mas não é um livro de história
da filosofia...
Lebrun Não, ele se proíbe isso. Ele
tenta relacionar esta reflexão sobre Wittgenstein com as
que fez antes sobre condutas sociais, com sua sociologia. O que
você queria de Giannotti? É sua maneira de se livrar
do marxismo. Não acho que tenha havido um "tournant
linguistique'' (virada linguística) na sua filosofia. Isso
é apenas um rótulo.
Sobre a filosofia analítica, eu a conheço muito mal
porque ela me chateia (risos). Aristóteles fez melhor que
os filósofos analíticos. Eles são frequentemente
muito ignorantes da história da filosofia, pensam coisas
que já estavam em Aristóteles... Não podemos
generalizar, mas alguns falam demais, muitas vezes à toa.
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