O FOUCAULT: O PODER É POSITIVO

RENATO JANINE RIBEIRO ENTREVISTA GÉRARD LEBRUN

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 14 de abril de 1985

Renato Janine Ribeiro - Foucault tem às vezes, a um só tempo, os discursos mais variados. Enquanto condena a pena de morte e defende os presos, também justifica a "justiça popular" da China. O que, nessas maneiras de pensar, constitui realmente o seu pensamento? Ou estaria ele propondo muitas idéias e valores ao mesmo tempo, para ver qual deles termina por dar certo?

Gérard Lebrun - O que recordo de Foucault a esse respeito é que uma vez, em S. Paulo, me deu um livro de Pasqualini, "Prisonnier de Mao", e me disse que o sistema concentracionário chinês nada tinha a invejar ao Gulag. Deve ter sido antes de 1968. É bem possível que, depois, ele tenha seguido as tentações de um discurso um tanto frenético (eu não diria demagógico). Mas o que mais lembro, dele, no movimento sobre os presídios, é sua extrema cautela. Talvez Foucault tivesse, de vez em quando, uma linguagem pública radical, mas sempre guardava um certo recuo, uma certa ironia.

Renato - Mas você não acha problemática essa divergência entre um discurso "frenético" em público e a moderação de Foucault na conversa particular"?

Lebrun - Nunca li textos de Foucault "frenéticos".

Renato
- Como fica então a questão das repressões: de alguns textos de Foucault, e de suas tomadas de posição públicas, ressalta uma imagem de alguém que se oporia a toda forma de repressão. O que terminaria por fazer dele um fiador de toda forma de violência privada, já que condenaria qualquer espécie de sanção imposta publicamente. E uma imagem corriqueira.

Lebrun - Foucault não é absolutamente responsável por essa imagem. Nunca elogiou a violência dos "companheiros bandidos", como alguns dizem hoje. Ao contrário: criticou a ideologia "da repressão", que consiste em enxergar, em todos os aspectos de manutenção da ordem pública, uma vergonhosa repressão. É claro que uma leitura superficial de "Vigiar e Punir" pode levar alguns leitores, sobretudo jovens, a um certo anarquismo. Mas não era essa a posição de Foucault. Veja-se, aliás, a acolhida muito fria que foi reservada ao primeiro volume da "História da Sexualidade": a crítica a W. Reich não agradou à "inteligentsia". Não agradou que Foucault sustentasse que a repressão não é fundamental na questão da sexualidade, que ela constituía um falso problema. Dizia: vocês denunciam o poder, a opressão e a repressão (dois termos que ele distinguia cuidadosamente), sob as suas formas mais superficiais. Chegou a dizer que certos movimentos de libertação sexual caíam numa armadilha, fortalecendo a estrutura dentro da qual se inseriam, os desvios sexuais. Não vamos esquecer que Foucault sempre se negou a firmar qualquer abaixo-assinado em favor do "gay power"!

Renato - Depois das repressões, falemos das liberdades. Foucault contesta que a cultura ocidental tenha tido, como principal vetor nos últimos séculos, uma crescente "humanitarização" (que seria a versão piegas da "racionalização" weberiana). Em vez de uma leitura progressista, faz uma quase trágica dos tempos modernos: a cada época se sofisticam as formas de controle e dominação.
Ora, se assim for, como fica a questão da liberdades? As "lutas pontuais" que ele defendia não passarão de simples atos de defesa, passo a passo, incapazes de afirmar algo política e socialmente? Teríamos de um lado o Poder que não é só repressivo, tem efeitos positivos; e, de outro, lutas de oposição, porém reduzidas a uma política de negações. Uma política do positivo seria apenas a do Poder, ou a das utopias (como a marxista), que Foucault também desacredita. O que se pode fazer, então?

Lebrun - Você está me fazendo duas perguntas. Vamos por partes. Começo pela leitura que Foucault faz da modernidade, a partir do século XVIII. Essa única questão mereceria uma longa entrevista. Foucault sempre foi muito coerente e consciente de que seu enfoque o força a ressaltar os aspectos negativos, p. ex. na libertação dos loucos por Pinel e na humanização da justiça, apresentando-os como formas mais sutis de enquadramento dos cidadãos pelo poder. Uma vez, numa conversa, chamei sua atenção para esse ponto; chocava-me que ele acentuasse a severidade presente no humanismo burguês, e atenuasse a existência de formas repressivas cruéis e bárbaras na idade clássica. Afinal, no século XVIII - assinalava Voltaire - ainda se queimavam homossexuais em Paris! "Oh, mas tão poucos", um repente de Foucault, e a discussão parava por aí mesmo. Mas uma posição se prestava a críticas; porém, seria preciso discutir a fundo seus pressupostos, para entender as consequências, até mesmo desconcertantes, que eles implicavam.

Renato - Mas será que nas obras anteriores à "História da Sexualidade" o próprio Foucault não acentuou mais os aspectos "repressivos" do poder?

Lebrun - É verdade, houve uma guinada. A idéia de que o poder não se caracteriza basicamente pela coerção é posterior às "Palavras e as Coisas", quando ele dizia, justamente, que seria impossível escrever uma história sexualidade.

Renato - Vamos, então, às liberdades.

Lebrun - Isso remete às posições políticas de Foucault - ele não gostaria que falassem de um "pensamento político" dele. Isso pode não agradar à esquerda, mas ele apreciava citar um aforismo de Nietzsche sobre a utilidade das pequenas ações - Foucault falava em "ações pontuais". Isso poderia substituir uma militância? Numa entrevista que deu aos professores americanos Rabinow e Dreyfus, autores de uma obra recente (e excelente) sobre ele, foi-lhe perguntado: "o seu ponto de vista permitiria uma ação política contínua?" Nesses termos, sua resposta só poderia ser não.
Também aqui, há pressupostos importantes. Lembre a página densa e difícil das "Palavras e as Coisas", em que diz que hoje em dia o pensamento não é mais teoria, e por isso se tornou impossível a moral. Poderia talvez acrescentar que a política, hoje, também é impossível - a política entendida no sentido clássico, como uma região separada do pensamento. Desse viés ele era bastante nietzschiano: o pensamento por ser pensamento, é problematização e crítica contínua; Foucault não podia ter pensamento político, porque para ele a filosofia política era uma disciplina obsoleta, mas ao mesmo tempo considerava que o pensamento, por ser pensamento, é político de ponta a ponta. Isso pode esclarecer por que se dedicava a ações pontuais, sem propor uma filosofia política.
As consequências dessa politização do pensamento podem parecer-me contestáveis, mas comprovam que Foucault se mantinha coerente com seus pressupostos, assim como Sartre.

Renato - Pressupostos intelectuais, filosóficos e mesmo morais: de ação.

Lebrun - Sim. Ele se orientava para a redação de uma moral, no tomo 3 da "História da Sexualidade"; e, na última entrevista com Rabinow e Dreyfus, já propunha um estilo de moral.

Renato - Já se discutiu muito se Foucault seria filósofo ou historiador.

Lebrun - Essa alternativa não teria sentido para ele. No começo do "Uso dos Prazeres" recusa o nome de historiador. O de filósofo também não aceitava. Tem páginas muito severas, na "Arqueologia do Saber", até para autores que estimava muito, como Merleau-Ponty, que tanto o influenciou na juventude. Mas atenção! O que ele não entendia, desde que se tornou arqueólogo, é que os filósofos continuassem a falar atendendo a exigências que só cabiam na "idade da representação". Que a fenomenologia não tomasse consciência de que o interessante, nela, era o fato de ela pertencer à "idade do homem". Permita-me uma comparação: essa crítica me recorda a que Kant dirigiu aos dogmáticos - essa gente não fez a pergunta fundamental, continua na idade pré-crítica (diria Kant) ou pré-arqueológica (diria Foucault).

Renato - Lendo-se Foucault, nota-se uma oscilação entre duas posturas. No "Nascimento da Clínica" e nas "Palavras e as Coisas", o que ele quer é entender a lógica subjacente aos textos que examina, a rede que os fundamenta. Nas primeiras páginas de "Vigiar e Punir", porém, tem uma humildade, a meu ver até exagerada ou fingida, pela qual diz que o fim dos suplícios é um lado pouco trabalhado, mas também pequeno, do novo sistema penal dos fins do século XVIII. Você acha que ocorreu uma mudança em Foucault? Que ele teria passado de uma proposta mais ambiciosa, a da arqueologia, para outra mais humilde, nominalista e empirista, inglesa até, poderíamos dizer?

Lebrun
- Que há uma diferença entre a "arqueologia" anterior e a "genealogia" do corpo que aparece em "Vigiar e Punir", eu concordo. Como dizem os dois americanos, na arqueologia Foucault toma uma posição de neutralidade, mas do alto, que recorda a posição do fenomenólogo. Isso vai até a "Arqueologia do Saber". Quais são as condições metodológicas para ter a certeza de que se reconstituiu corretamente uma episteme, as estratégias... A arqueologia era um empreendimento muito ambicioso. Depois, o que Foucault vai dizer é que seu problema desde os anos 60 foi o da constituição do sujeito - os diversos modos de objetivação pelos quais o homem se torna sujeito. O que requer método bem diferente do que aparecia no "Nascimento da Clínica" e nas "Palavras". Houve uma mudança profunda, depois da "Arqueologia do Saber", e que constituiu talvez uma volta do espírito da "História da Loucura" (é essa a tese de Pierre Macherey); a "arqueologia" seria um parêntese brilhante. Sem concordar com Rabinow e Dreyfus, que falam em fracasso metodológico de Foucault, é possível que ele tenha tomado consciência de que havia uma ambição desmedida em seu projeto arqueológico.

Renato - É importante, em Foucault, o caráter literário de sua escrita - e também a inspiração que busca na literatura e na pintura, para pensar (Borges, Velazquez, D. Quixote). Contudo, o recurso ao literário e às figuras será para ele mais do que uma ilustração adornando o seu texto? Com o quadro de Velazquez, ele não faz o mesmo que Guéroult, lendo Descartes, faz com as imagens e metáforas - reduzi-las a suportes do discurso, decifrá-las em conceitos?

Lebrun - A análise sobre "Las meninas", é bom saber, foi acrescentada às "Palavras e as Coisas" depois de terminado o texto. Não faz parte do original. Você tem razão: ele extrai do quadro, de maneira algo artificial, um significado. Por outro lado, porém, ele era profundamente impregnado pela cultura literária e também artística, especialmente pictórica. Lembro uma visita que fizermos juntos à Bienal de S. Paulo - ele passou um dia inteiro a discutir as obras. Dada a importância que a arte tinha para ele, é de se estranhar que em sua obra não haja mais ensaios dedicados a ela.

Renato - Nas "Palavras", e sobretudo em "Vigiar e Punir", certas palavras voltam muito - "espetáculo", "festa", "carnaval do suplício". Esses termos o fascinam, mas ele não chega a refletir sobre eles, a pensar o que dizem - funcionam como palavras-ônibus, como palavras mágicas.

Lebrun - Não sei se a noção de espetáculo é apenas uma bela metáfora para Foucault - porque, nas "Palavras e as Coisas", ele efetua análise cerrada dessa metáfora contínua, presente na filosofia clássica e especialmente em Descartes, que é o paralelo entre o conhecimento e a visão: o mundo como algo transparente, como espetáculo ou quadro. Nisso teve a influência de Merleau-Ponty que, ao morrer, pensava escrever um livro sobre a "Dióptrica" de Descartes. Espetáculo e quadro, mais que metáforas, são temas de investigações apoiadas na leitura dos textos clássicos.

Renato - Mas digamos que o "espetáculo" das "Palavras e as Coisas" se concentra nas questões do conhecimento; em "Vigiar e Punir", porém, quando Foucault tratar do suplício, este será espetáculo mais no sentido de festa. E por isso também me parece contestável o termo "idade clássica", que Foucault tanto emprega. Afinal, o "clássico" cobre apenas parcialmente a cultura dos séculos XVII e XVIII, e os estudos de Philippe Beaussant mostram que nesse tempo, mesmo na França, a festa é basicamente barroca.

Lebrun - Pode ser contestado o recorte pelo qual Foucault desenha essa noção de "idade clássica". Já na "História da Loucura" me parece que ele está relegando o barroco ao século XVI - a Jerônimo Bosch, até...E a idade clássica é para ele o tempo da representação - no sentido cartesiano: a comunicação imediata entre a representação e o ser, o fato de que o ser vai-se anunciando imediatamente na representação cuidadosamente percorrida pelo método. É claro que essa idade clássica é algo restrita, porque no século XVII houve, em boa parte da Europa mas também na França, uma importante participação do barroco na cultura - que Foucault minimiza, ao constituir o seu conceito de idade clássica para opô-la à era das positividades. Não esqueça que "As Palavras e as Coisas", se teve sucesso, também sofreu muitas críticas de especialistas, das quais algumas pertinentes. Críticas eram inevitáveis, num empreendimento desse porte.
A arqueologia foi um empreendimento que ele abandonou - até no seu estilo. Nas "Palavras", faz poucas citações. Mas tome os dois últimos volumes da "História da Sexualidade": são muito mais sóbrios. São obras quase universitárias, na frequentação que têm dos textos.

Renato - Você não acha que Foucault, largando a pretensão do quadro, do panorama, da racionalização mais vasta, em favor da minúcia, adquire um tom algo inglês, empirista, nominalista?

Lebrun - Essa mudança metodológica e até de escrita (nos últimos livros ele abandonou as metáforas) corresponde a uma mudança de atitude. Um filósofo francês me dizia há pouco tempo que "As Palavras e as Coisas" não passava de uma brilhante retomada do que fazia Brunschvicg - as etapas do conhecimento. Não concordo, mas é certo que aquele afresco era extremamente ambicioso. Essa ambição, aliás, já explica o recuo metodológico da Arqueologia do Saber": o que me permite fazer estas "cartografias" (como as chamou Deleuze)? Assim, a essas panorâmicas vai suceder uma investigação muito mais próxima dos fatos e, sobretudo, dos textos. Na austeridade das últimas obras de Foucault, pode-se ver que ele renuncia a uma maneira de filosofar à francesa. Talvez, como você diz, ele se aproximasse mais de uma averiguação empirista. Mas é preciso acrescentar que Foucault sempre gostou da minúcia. Sua cultura não era de segunda mão; lia realmente, por inteiro, as inúmeras obras que localizava na Biblioteca Nacional (de Paris). E também não deve ser julgado, apenas, enquanto filósofo, pelo vasto panorama das "Palavras e as Coisas".



Lista das obras de Foucault citadas: "História da loucura" (1961), "Nascimento da Clínica" (1963), "As Palavras e as coisas" (1966), "Vigiar e punir" (1975), "Historia da sexualidade" - tomo I, "A vontade de saber" (1976), tomo II, "O uso dos prazeres" (1984).


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