Renato Janine Ribeiro - Foucault tem às vezes, a um
só tempo, os discursos mais variados. Enquanto condena a
pena de morte e defende os presos, também justifica a "justiça
popular" da China. O que, nessas maneiras de pensar, constitui
realmente o seu pensamento? Ou estaria ele propondo muitas idéias
e valores ao mesmo tempo, para ver qual deles termina por dar certo?
Gérard Lebrun - O que recordo de Foucault a esse respeito
é que uma vez, em S. Paulo, me deu um livro de Pasqualini,
"Prisonnier de Mao", e me disse que o sistema concentracionário
chinês nada tinha a invejar ao Gulag. Deve ter sido antes
de 1968. É bem possível que, depois, ele tenha seguido
as tentações de um discurso um tanto frenético
(eu não diria demagógico). Mas o que mais lembro,
dele, no movimento sobre os presídios, é sua extrema
cautela. Talvez Foucault tivesse, de vez em quando, uma linguagem
pública radical, mas sempre guardava um certo recuo, uma
certa ironia.
Renato - Mas você não acha problemática
essa divergência entre um discurso "frenético"
em público e a moderação de Foucault na conversa
particular"?
Lebrun - Nunca li textos de Foucault "frenéticos".
Renato - Como fica então a questão das repressões:
de alguns textos de Foucault, e de suas tomadas de posição
públicas, ressalta uma imagem de alguém que se oporia
a toda forma de repressão. O que terminaria por fazer dele
um fiador de toda forma de violência privada, já que
condenaria qualquer espécie de sanção imposta
publicamente. E uma imagem corriqueira.
Lebrun - Foucault não é absolutamente responsável
por essa imagem. Nunca elogiou a violência dos "companheiros
bandidos", como alguns dizem hoje. Ao contrário: criticou
a ideologia "da repressão", que consiste em enxergar,
em todos os aspectos de manutenção da ordem pública,
uma vergonhosa repressão. É claro que uma leitura
superficial de "Vigiar e Punir" pode levar alguns leitores,
sobretudo jovens, a um certo anarquismo. Mas não era essa
a posição de Foucault. Veja-se, aliás, a acolhida
muito fria que foi reservada ao primeiro volume da "História
da Sexualidade": a crítica a W. Reich não agradou
à "inteligentsia". Não agradou que Foucault
sustentasse que a repressão não é fundamental
na questão da sexualidade, que ela constituía um falso
problema. Dizia: vocês denunciam o poder, a opressão
e a repressão (dois termos que ele distinguia cuidadosamente),
sob as suas formas mais superficiais. Chegou a dizer que certos
movimentos de libertação sexual caíam numa
armadilha, fortalecendo a estrutura dentro da qual se inseriam,
os desvios sexuais. Não vamos esquecer que Foucault sempre
se negou a firmar qualquer abaixo-assinado em favor do "gay
power"!
Renato - Depois das repressões, falemos das liberdades.
Foucault contesta que a cultura ocidental tenha tido, como principal
vetor nos últimos séculos, uma crescente "humanitarização"
(que seria a versão piegas da "racionalização"
weberiana). Em vez de uma leitura progressista, faz uma quase trágica
dos tempos modernos: a cada época se sofisticam as formas
de controle e dominação.
Ora, se assim for, como fica a questão da liberdades? As
"lutas pontuais" que ele defendia não passarão
de simples atos de defesa, passo a passo, incapazes de afirmar algo
política e socialmente? Teríamos de um lado o Poder
que não é só repressivo, tem efeitos positivos;
e, de outro, lutas de oposição, porém reduzidas
a uma política de negações. Uma política
do positivo seria apenas a do Poder, ou a das utopias (como a marxista),
que Foucault também desacredita. O que se pode fazer, então?
Lebrun - Você está me fazendo duas perguntas.
Vamos por partes. Começo pela leitura que Foucault faz da
modernidade, a partir do século XVIII. Essa única
questão mereceria uma longa entrevista. Foucault sempre foi
muito coerente e consciente de que seu enfoque o força a
ressaltar os aspectos negativos, p. ex. na libertação
dos loucos por Pinel e na humanização da justiça,
apresentando-os como formas mais sutis de enquadramento dos cidadãos
pelo poder. Uma vez, numa conversa, chamei sua atenção
para esse ponto; chocava-me que ele acentuasse a severidade presente
no humanismo burguês, e atenuasse a existência de formas
repressivas cruéis e bárbaras na idade clássica.
Afinal, no século XVIII - assinalava Voltaire - ainda se
queimavam homossexuais em Paris! "Oh, mas tão poucos",
um repente de Foucault, e a discussão parava por aí
mesmo. Mas uma posição se prestava a críticas;
porém, seria preciso discutir a fundo seus pressupostos,
para entender as consequências, até mesmo desconcertantes,
que eles implicavam.
Renato - Mas será que nas obras anteriores à
"História da Sexualidade" o próprio Foucault
não acentuou mais os aspectos "repressivos" do
poder?
Lebrun - É verdade, houve uma guinada. A idéia
de que o poder não se caracteriza basicamente pela coerção
é posterior às "Palavras e as Coisas", quando
ele dizia, justamente, que seria impossível escrever uma
história sexualidade.
Renato - Vamos, então, às liberdades.
Lebrun - Isso remete às posições políticas
de Foucault - ele não gostaria que falassem de um "pensamento
político" dele. Isso pode não agradar à
esquerda, mas ele apreciava citar um aforismo de Nietzsche sobre
a utilidade das pequenas ações - Foucault falava em
"ações pontuais". Isso poderia substituir
uma militância? Numa entrevista que deu aos professores americanos
Rabinow e Dreyfus, autores de uma obra recente (e excelente) sobre
ele, foi-lhe perguntado: "o seu ponto de vista permitiria uma
ação política contínua?" Nesses
termos, sua resposta só poderia ser não.
Também aqui, há pressupostos importantes. Lembre a
página densa e difícil das "Palavras e as Coisas",
em que diz que hoje em dia o pensamento não é mais
teoria, e por isso se tornou impossível a moral. Poderia
talvez acrescentar que a política, hoje, também é
impossível - a política entendida no sentido clássico,
como uma região separada do pensamento. Desse viés
ele era bastante nietzschiano: o pensamento por ser pensamento,
é problematização e crítica contínua;
Foucault não podia ter pensamento político, porque
para ele a filosofia política era uma disciplina obsoleta,
mas ao mesmo tempo considerava que o pensamento, por ser pensamento,
é político de ponta a ponta. Isso pode esclarecer
por que se dedicava a ações pontuais, sem propor uma
filosofia política.
As consequências dessa politização do pensamento
podem parecer-me contestáveis, mas comprovam que Foucault
se mantinha coerente com seus pressupostos, assim como Sartre.
Renato - Pressupostos intelectuais, filosóficos e
mesmo morais: de ação.
Lebrun - Sim. Ele se orientava para a redação
de uma moral, no tomo 3 da "História da Sexualidade";
e, na última entrevista com Rabinow e Dreyfus, já
propunha um estilo de moral.
Renato - Já se discutiu muito se Foucault seria filósofo
ou historiador.
Lebrun - Essa alternativa não teria sentido para ele.
No começo do "Uso dos Prazeres" recusa o nome de
historiador. O de filósofo também não aceitava.
Tem páginas muito severas, na "Arqueologia do Saber",
até para autores que estimava muito, como Merleau-Ponty,
que tanto o influenciou na juventude. Mas atenção!
O que ele não entendia, desde que se tornou arqueólogo,
é que os filósofos continuassem a falar atendendo
a exigências que só cabiam na "idade da representação".
Que a fenomenologia não tomasse consciência de que
o interessante, nela, era o fato de ela pertencer à "idade
do homem". Permita-me uma comparação: essa crítica
me recorda a que Kant dirigiu aos dogmáticos - essa gente
não fez a pergunta fundamental, continua na idade pré-crítica
(diria Kant) ou pré-arqueológica (diria Foucault).
Renato - Lendo-se Foucault, nota-se uma oscilação
entre duas posturas. No "Nascimento da Clínica"
e nas "Palavras e as Coisas", o que ele quer é
entender a lógica subjacente aos textos que examina, a rede
que os fundamenta. Nas primeiras páginas de "Vigiar
e Punir", porém, tem uma humildade, a meu ver até
exagerada ou fingida, pela qual diz que o fim dos suplícios
é um lado pouco trabalhado, mas também pequeno, do
novo sistema penal dos fins do século XVIII. Você acha
que ocorreu uma mudança em Foucault? Que ele teria passado
de uma proposta mais ambiciosa, a da arqueologia, para outra mais
humilde, nominalista e empirista, inglesa até, poderíamos
dizer?
Lebrun - Que há uma diferença entre a "arqueologia"
anterior e a "genealogia" do corpo que aparece em "Vigiar
e Punir", eu concordo. Como dizem os dois americanos, na arqueologia
Foucault toma uma posição de neutralidade, mas do
alto, que recorda a posição do fenomenólogo.
Isso vai até a "Arqueologia do Saber". Quais são
as condições metodológicas para ter a certeza
de que se reconstituiu corretamente uma episteme, as estratégias...
A arqueologia era um empreendimento muito ambicioso. Depois, o que
Foucault vai dizer é que seu problema desde os anos 60 foi
o da constituição do sujeito - os diversos modos de
objetivação pelos quais o homem se torna sujeito.
O que requer método bem diferente do que aparecia no "Nascimento
da Clínica" e nas "Palavras". Houve uma mudança
profunda, depois da "Arqueologia do Saber", e que constituiu
talvez uma volta do espírito da "História da
Loucura" (é essa a tese de Pierre Macherey); a "arqueologia"
seria um parêntese brilhante. Sem concordar com Rabinow e
Dreyfus, que falam em fracasso metodológico de Foucault,
é possível que ele tenha tomado consciência
de que havia uma ambição desmedida em seu projeto
arqueológico.
Renato - É importante, em Foucault, o caráter
literário de sua escrita - e também a inspiração
que busca na literatura e na pintura, para pensar (Borges, Velazquez,
D. Quixote). Contudo, o recurso ao literário e às
figuras será para ele mais do que uma ilustração
adornando o seu texto? Com o quadro de Velazquez, ele não
faz o mesmo que Guéroult, lendo Descartes, faz com as imagens
e metáforas - reduzi-las a suportes do discurso, decifrá-las
em conceitos?
Lebrun - A análise sobre "Las meninas",
é bom saber, foi acrescentada às "Palavras e
as Coisas" depois de terminado o texto. Não faz parte
do original. Você tem razão: ele extrai do quadro,
de maneira algo artificial, um significado. Por outro lado, porém,
ele era profundamente impregnado pela cultura literária e
também artística, especialmente pictórica.
Lembro uma visita que fizermos juntos à Bienal de S. Paulo
- ele passou um dia inteiro a discutir as obras. Dada a importância
que a arte tinha para ele, é de se estranhar que em sua obra
não haja mais ensaios dedicados a ela.
Renato - Nas "Palavras", e sobretudo em "Vigiar
e Punir", certas palavras voltam muito - "espetáculo",
"festa", "carnaval do suplício". Esses
termos o fascinam, mas ele não chega a refletir sobre eles,
a pensar o que dizem - funcionam como palavras-ônibus, como
palavras mágicas.
Lebrun - Não sei se a noção de espetáculo
é apenas uma bela metáfora para Foucault - porque,
nas "Palavras e as Coisas", ele efetua análise
cerrada dessa metáfora contínua, presente na filosofia
clássica e especialmente em Descartes, que é o paralelo
entre o conhecimento e a visão: o mundo como algo transparente,
como espetáculo ou quadro. Nisso teve a influência
de Merleau-Ponty que, ao morrer, pensava escrever um livro sobre
a "Dióptrica" de Descartes. Espetáculo e
quadro, mais que metáforas, são temas de investigações
apoiadas na leitura dos textos clássicos.
Renato - Mas digamos que o "espetáculo"
das "Palavras e as Coisas" se concentra nas questões
do conhecimento; em "Vigiar e Punir", porém, quando
Foucault tratar do suplício, este será espetáculo
mais no sentido de festa. E por isso também me parece contestável
o termo "idade clássica", que Foucault tanto emprega.
Afinal, o "clássico" cobre apenas parcialmente
a cultura dos séculos XVII e XVIII, e os estudos de Philippe
Beaussant mostram que nesse tempo, mesmo na França, a festa
é basicamente barroca.
Lebrun - Pode ser contestado o recorte pelo qual Foucault
desenha essa noção de "idade clássica".
Já na "História da Loucura" me parece que
ele está relegando o barroco ao século XVI - a Jerônimo
Bosch, até...E a idade clássica é para ele
o tempo da representação - no sentido cartesiano:
a comunicação imediata entre a representação
e o ser, o fato de que o ser vai-se anunciando imediatamente na
representação cuidadosamente percorrida pelo método.
É claro que essa idade clássica é algo restrita,
porque no século XVII houve, em boa parte da Europa mas também
na França, uma importante participação do barroco
na cultura - que Foucault minimiza, ao constituir o seu conceito
de idade clássica para opô-la à era das positividades.
Não esqueça que "As Palavras e as Coisas",
se teve sucesso, também sofreu muitas críticas de
especialistas, das quais algumas pertinentes. Críticas eram
inevitáveis, num empreendimento desse porte.
A arqueologia foi um empreendimento que ele abandonou - até
no seu estilo. Nas "Palavras", faz poucas citações.
Mas tome os dois últimos volumes da "História
da Sexualidade": são muito mais sóbrios. São
obras quase universitárias, na frequentação
que têm dos textos.
Renato - Você não acha que Foucault, largando
a pretensão do quadro, do panorama, da racionalização
mais vasta, em favor da minúcia, adquire um tom algo inglês,
empirista, nominalista?
Lebrun - Essa mudança metodológica e até
de escrita (nos últimos livros ele abandonou as metáforas)
corresponde a uma mudança de atitude. Um filósofo
francês me dizia há pouco tempo que "As Palavras
e as Coisas" não passava de uma brilhante retomada do
que fazia Brunschvicg - as etapas do conhecimento. Não concordo,
mas é certo que aquele afresco era extremamente ambicioso.
Essa ambição, aliás, já explica o recuo
metodológico da Arqueologia do Saber": o que me permite
fazer estas "cartografias" (como as chamou Deleuze)? Assim,
a essas panorâmicas vai suceder uma investigação
muito mais próxima dos fatos e, sobretudo, dos textos. Na
austeridade das últimas obras de Foucault, pode-se ver que
ele renuncia a uma maneira de filosofar à francesa. Talvez,
como você diz, ele se aproximasse mais de uma averiguação
empirista. Mas é preciso acrescentar que Foucault sempre
gostou da minúcia. Sua cultura não era de segunda
mão; lia realmente, por inteiro, as inúmeras obras
que localizava na Biblioteca Nacional (de Paris). E também
não deve ser julgado, apenas, enquanto filósofo, pelo
vasto panorama das "Palavras e as Coisas".
Lista
das obras de Foucault citadas: "História da loucura"
(1961), "Nascimento da Clínica" (1963), "As
Palavras e as coisas" (1966), "Vigiar e punir" (1975),
"Historia da sexualidade" - tomo I, "A vontade de
saber" (1976), tomo II, "O uso dos prazeres" (1984).
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