'A EUROPA ESTÁ DOENTE', DIZ EDGAR MORIN

O filósofo francês vai participar de um seminário em Porto Alegre, ao lado de Baudrillard e Maffesoli


Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 2 de novembro de 1993

BERNARDO CARVALHO
Da Reportagem Local

O homem imaginário Edgar Morin, 72, vem ao Brasil para explicar "como sair do século 20". Filósofo e sociólogo, autor de "O Cinema ou o Homem Imaginário", "Para Sair do Século 20" e "Terre-Patrie" (recentemente publicado na França), entre outros, Morin participa do seminário "A Decadência do Futuro, a Construção do Presente", na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, do dia 8 ao 10 (informações tel. 051 227-1120). Além dele, os sociólogos Jean Baudrillard e Michel Maffesoli também estarão no evento. Morin falou à Folha por telefone sobre algumas preocupações de seu novo livro, "Terre-Patrie", como Europa, ecologia e incerteza.

Folha — Qual a dificuldade de pensar a Europa hoje?

Edgar Morin Por um lado houve um processo muito lento de formação da Comunidade Européia, que foi desembocar no mercado comum. Por outro, a queda do império soviético, com todos os problemas nacionais, étnicos, de crise política e econômica nesses países. É uma crise terrível, com um lento processo de associação do lado ocidental e um processo de dissociação e guerra do lado oriental. O agravamento da crise econômica e monetária relançou tentativas de se encontrar soluções no plano nacional, com uma renovação do nacionalismo e do protecionismo. A própria Comunidade Européia está doente. A crise atual é a incerteza. Será que as forças de associação permitirão uma grande comunidade européia? Ou serão as forças de desintegração, de barbárie? O problema europeu se integra a um problema mais vasto, que é a fé no futuro. Pensávamos que o progresso estava automaticamente garantido pelo desenvolvimento das ciências, da razão, da sociedade. Hoje tudo isso se dissolveu. A tendência nesse clima de incerteza é se voltar para o passado, as raízes étnicas e nacionais.

Folha — As ciências humanas, as ciências sociais, não desabam junto com essa crise, uma vez que pensaram os fascismos por anos e anos, inutilmente, já que eles voltam hoje sem qualquer constrangimento?

Morin
Não são as ciências sociais que podem liquidar o fascismo.

Folha — Para que servem as ciências sociais?

Morin
Tentam fazer diagnósticos para que possamos ver as coisas claras. Se as ciências sociais são mal feitas, você terá maus diagnósticos. Defendo a idéia de um pensamento complexo, onde só podemos pensar as coisas se as colocamos dentro de contextos e situações globais. As ciências sociais pertinentes permitem elaborar estratégias. Mas elas não fazem estratégias. Se você só vê fragmentos da realidade, só faz pesquisas parciais, você tem uma razão cega. Não são as ciências sociais que devem ser colocadas em questão. Hoje, trata-se de um problema de reforma de pensamento. Não um pensamento que isola os objetos de seus contextos, mas um pensamento complexo. É preciso mudar a estrutura de pensamento.

Folha
Seu último livro, "Terre-Patrie", é uma tentativa de sair dessa cegueira, dessa obsessão nacional, para algo mais complexo e abrangente?

Morin
Nesse livro, digo que todos os recursos à identidade nacional, familiar, regional ou religiosa são legítimos, com a condição de que sejam acompanhados de recursos mais profundos e amplos de uma identidade terrestre, que é a da humanidade. No fundo, temos uma comunidade de origem. Temos uma mesma natureza em relação ao sofrimento, à felicidade. Defendo a idéia de que há também, cada vez mais, uma comunidade de destino da humanidade inteira. Por mais diversos que sejamos, há as mesmas ameaças para todos, as mesmas doenças, a mesma ameaça ecológica, a Aids, a droga, os mesmos problemas econômicos.

Folha — Como o sr. vê, dentro desse ponto de vista, toda a questão do protecionismo cultural francês e europeu?


Morin No caso da cultura, há um único problema, que é econômico. Por exemplo, os seriados americanos são revendidos a preços muito baixos, porque já foram pagos na origem e chegam aqui sem nenhuma taxação. Essa produção barata impede que haja uma produção francesa e européia, porque ela é mais cara. Deveriam adotar medidas alfandegárias específicas de controle de preços. É ridículo dizer que o cinema americano é "business" e que o cinema francês é arte. Há arte e "business" em ambos. Não se pode fazer uma barreira cultural. Deve-se suscitar a criação e a inventividade pelo intercâmbio. Adoro as novelas brasileiras. Sou um grande admirador de "Dona Beja".

Folha — Por quê?

Morin Por um lado, me fez conhecer o Brasil colonial do século passado. Por outro lado, acho que é uma história extraordinária. Sou fascinado pelo personagem. Sou um espectador normal.

Folha — O que o sr. pensa da ecologia como pensamento?


Morin
O problema ecológico tornou-se um problema político em todos os níveis. Não podemos dosar a ameaça do futuro. O temor é exagerado? Ou é legítimo? De qualquer jeito, temos que ser prudentes e lutar contra tudo o que degrada o mundo natural. A ecologia é uma dimensão que deve fazer parte da política, mas você não pode reduzir a política à ecologia. Ela não responde às questões sobre a democracia, a justiça, a verdade e a liberdade. Não é observando os ecossistemas que você conseguirá definir os direitos dos indivíduos.

Folha — O sr. se refere a uma "ecologia da ação". O que isso significa?

Morin Desde que você começa uma ação, política por exemplo, ela vai escapar progressivamente ao seu controle para entrar num jogo de interação e retroação no meio em que ela se produz. O sentido da ação vai ser determinado mais pelas condições onde se situa a ação que pela vontade de seu autor. O primeiro movimento da Revolução Francesa veio da aristocracia que, tentando reconquistar uma parte do poder da monarquia absoluta que tinha perdido, aproveitou a crise e a fraqueza de Luís 16 para lançar a convocação dos Estados Gerais. Foi o que deu início a todo o processo que derrubou a aristocracia. Ninguém pode determinar as consequências futuras da ação. Há um princípio de incerteza fundamental.

Folha — Essa idéia a priori não pode levar a um conformismo e a uma passividade?

Morin Se o sentido da incerteza, da aposta, da estratégia não tiver importância para você, sim. O medo predomina nesse caso. Mas a humanidade sempre viveu sob a incerteza. Vivemos fazendo apostas. Para mim, é uma incitação à vontade, à vigilância e à consciência. Dizer que basta a boa vontade para conduzir a história no bom sentido é também um convite ao cretinismo.


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