BERNARDO
CARVALHO
Da Reportagem Local
O
homem imaginário Edgar Morin, 72, vem ao Brasil para explicar
"como sair do século 20". Filósofo e sociólogo,
autor de "O Cinema ou o Homem Imaginário", "Para
Sair do Século 20" e "Terre-Patrie" (recentemente
publicado na França), entre outros, Morin participa do seminário
"A Decadência do Futuro, a Construção do
Presente", na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, do
dia 8 ao 10 (informações tel. 051 227-1120). Além
dele, os sociólogos Jean Baudrillard e Michel Maffesoli também
estarão no evento. Morin falou à Folha por telefone
sobre algumas preocupações de seu novo livro, "Terre-Patrie",
como Europa, ecologia e incerteza.
Folha Qual a dificuldade de pensar a Europa hoje?
Edgar Morin Por um lado houve um processo muito
lento de formação da Comunidade Européia, que
foi desembocar no mercado comum. Por outro, a queda do império
soviético, com todos os problemas nacionais, étnicos,
de crise política e econômica nesses países.
É uma crise terrível, com um lento processo de associação
do lado ocidental e um processo de dissociação e guerra
do lado oriental. O agravamento da crise econômica e monetária
relançou tentativas de se encontrar soluções
no plano nacional, com uma renovação do nacionalismo
e do protecionismo. A própria Comunidade Européia
está doente. A crise atual é a incerteza. Será
que as forças de associação permitirão
uma grande comunidade européia? Ou serão as forças
de desintegração, de barbárie? O problema europeu
se integra a um problema mais vasto, que é a fé no
futuro. Pensávamos que o progresso estava automaticamente
garantido pelo desenvolvimento das ciências, da razão,
da sociedade. Hoje tudo isso se dissolveu. A tendência nesse
clima de incerteza é se voltar para o passado, as raízes
étnicas e nacionais.
Folha As ciências humanas, as ciências sociais,
não desabam junto com essa crise, uma vez que pensaram os
fascismos por anos e anos, inutilmente, já que eles voltam
hoje sem qualquer constrangimento?
Morin Não são as ciências
sociais que podem liquidar o fascismo.
Folha Para que servem as ciências sociais?
Morin Tentam fazer diagnósticos para que
possamos ver as coisas claras. Se as ciências sociais são
mal feitas, você terá maus diagnósticos. Defendo
a idéia de um pensamento complexo, onde só podemos
pensar as coisas se as colocamos dentro de contextos e situações
globais. As ciências sociais pertinentes permitem elaborar
estratégias. Mas elas não fazem estratégias.
Se você só vê fragmentos da realidade, só
faz pesquisas parciais, você tem uma razão cega. Não
são as ciências sociais que devem ser colocadas em
questão. Hoje, trata-se de um problema de reforma de pensamento.
Não um pensamento que isola os objetos de seus contextos,
mas um pensamento complexo. É preciso mudar a estrutura de
pensamento.
Folha Seu último livro, "Terre-Patrie",
é uma tentativa de sair dessa cegueira, dessa obsessão
nacional, para algo mais complexo e abrangente?
Morin Nesse livro, digo que todos os recursos
à identidade nacional, familiar, regional ou religiosa são
legítimos, com a condição de que sejam acompanhados
de recursos mais profundos e amplos de uma identidade terrestre,
que é a da humanidade. No fundo, temos uma comunidade de
origem. Temos uma mesma natureza em relação ao sofrimento,
à felicidade. Defendo a idéia de que há também,
cada vez mais, uma comunidade de destino da humanidade inteira.
Por mais diversos que sejamos, há as mesmas ameaças
para todos, as mesmas doenças, a mesma ameaça ecológica,
a Aids, a droga, os mesmos problemas econômicos.
Folha Como o sr. vê, dentro desse ponto de vista, toda
a questão do protecionismo cultural francês e europeu?
Morin No caso da cultura, há um único
problema, que é econômico. Por exemplo, os seriados
americanos são revendidos a preços muito baixos, porque
já foram pagos na origem e chegam aqui sem nenhuma taxação.
Essa produção barata impede que haja uma produção
francesa e européia, porque ela é mais cara. Deveriam
adotar medidas alfandegárias específicas de controle
de preços. É ridículo dizer que o cinema americano
é "business" e que o cinema francês é
arte. Há arte e "business" em ambos. Não
se pode fazer uma barreira cultural. Deve-se suscitar a criação
e a inventividade pelo intercâmbio. Adoro as novelas brasileiras.
Sou um grande admirador de "Dona Beja".
Folha Por quê?
Morin Por um lado, me fez conhecer o Brasil
colonial do século passado. Por outro lado, acho que é
uma história extraordinária. Sou fascinado pelo personagem.
Sou um espectador normal.
Folha O que o sr. pensa da ecologia como pensamento?
Morin O problema ecológico tornou-se um
problema político em todos os níveis. Não podemos
dosar a ameaça do futuro. O temor é exagerado? Ou
é legítimo? De qualquer jeito, temos que ser prudentes
e lutar contra tudo o que degrada o mundo natural. A ecologia é
uma dimensão que deve fazer parte da política, mas
você não pode reduzir a política à ecologia.
Ela não responde às questões sobre a democracia,
a justiça, a verdade e a liberdade. Não é observando
os ecossistemas que você conseguirá definir os direitos
dos indivíduos.
Folha O sr. se refere a uma "ecologia da ação".
O que isso significa?
Morin Desde que você começa uma
ação, política por exemplo, ela vai escapar
progressivamente ao seu controle para entrar num jogo de interação
e retroação no meio em que ela se produz. O sentido
da ação vai ser determinado mais pelas condições
onde se situa a ação que pela vontade de seu autor.
O primeiro movimento da Revolução Francesa veio da
aristocracia que, tentando reconquistar uma parte do poder da monarquia
absoluta que tinha perdido, aproveitou a crise e a fraqueza de Luís
16 para lançar a convocação dos Estados Gerais.
Foi o que deu início a todo o processo que derrubou a aristocracia.
Ninguém pode determinar as consequências futuras da
ação. Há um princípio de incerteza fundamental.
Folha Essa idéia a priori não pode levar
a um conformismo e a uma passividade?
Morin Se o sentido da incerteza, da aposta,
da estratégia não tiver importância para você,
sim. O medo predomina nesse caso. Mas a humanidade sempre viveu
sob a incerteza. Vivemos fazendo apostas. Para mim, é uma
incitação à vontade, à vigilância
e à consciência. Dizer que basta a boa vontade para
conduzir a história no bom sentido é também
um convite ao cretinismo.
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