O INTELECTUAL DA DISCORDÂNCIA


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995

VINICIUS TORRES FREIRE
De Paris

O filósofo Jacques Derrida, 63, que visita o Brasil esta semana, é tido por uma instituição francesa como o jornal ''Le Monde'' como ''um dos raros intelectuais franceses que tem o privilégio de ser lido, comentado e discutido em todos os cantos do planeta''.
Tão discutido que, em 1992, parte da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, se indignou contra a quase sempre diplomática e ritual concessão de um título de doutor ''honoris causa'' ao filósofo. Motivo: Derrida seria um irracionalista, alguém que relativiza e deprecia a herança cultural ocidental e que fornece munição a coisas como o politicamente correto.
De fato, os cantos do planeta onde se discute Derrida mais intensiva e significativamente ficam nos EUA. As idéias do filósofo francês inspiraram os adeptos da contracultura institucionalizada nos departamentos de teoria literária e ciências humanas de universidades americanas (como Yale, por exemplo).
Independentemente da polêmica, Derrida é o grande sobrevivente de uma geração de intelectuais franceses que ditou moda na filosofia, ciências humanas e crítica literária entre os anos 60 e 80 em boa parte do mundo ocidental.
Entre estes pensadores, estruturalistas e pós-estruturalistas, estão o antropólogo Claude Lévi-Strauss, hoje aposentado, Roland Barthes (1915-80), o filósofo Louis Althusser (1918-1990), o filósofo e historiador Michel Foucault (1926-1984) e o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981).
Publicou os livros fundamentais de sua obra nos anos 60 e começo dos 70: ''Gramatologia'', ''A Escritura e a Diferença'' e ''La Dissémination''. Também nesse momento começa a difusão do seu trabalho nos EUA e a colaboração com a revista ''Tel Quel''. O trimestral de filosofia, literatura e política publicado entre 1960 e 1982 era tido como a principal revista de vanguarda teórica e literária da época.
''Tel Quel'' foi uma espécie de cena na qual se desenrolou a superação do estruturalismo pelos pós-estruturalismos. Lançou críticos como Julia Kristeva e teve colaboradores como o poeta Francis Ponge, Barthes e Foucault. Derrida foi colaborador constante, amigo do escritor Phillipe Sollers, principal figura de "Tel Quel", e, uma certa época, teórico ''adotado'' pela casa, com a qual rompeu por questões políticas.
Até o começo dos anos 90, pelo menos, conceitos derridianos, como ''desconstrução'' e ''logocentrismo'' eram moeda corrente, quase única, naquela parte da universidade americana dedicada a criticar a tradição filosófica européia, o ''logocentrismo ocidental''. As idéias de verdade e razão seriam estratégias da uma civilização repressiva, etnocêntrica e antifeminina.
Não que Derrida seja um profeta do multiculturalismo ou coisa assim. Na verdade, o filósofo procurou fazer uma espécie de ''revisão'' da história da filosofia, uma ''desconstrução'' da razão. Isto é, colocar em questão a idéia de que se pode definir significados claros e estáveis para o que se pensa, de que a verdade e objetividade teriam significados fixos, de que há conhecimento desinteressado.
''Não há nenhum fora-do-texto'', há apenas o trabalho da interpretação permanente, o esforço em mostrar que em todo texto o seu contrário pode estar sendo dito e que talvez a razão e a verdade sejam um mito ocidental, ou vários mitos, na verdade, por vezes, discursos do poder.
Os ''textos'' são cadeias de significados que podem passar tanto por um poema como pela ''realidade'' social, por uma instituição. A desconstrução desses textos é tanto um processo como uma tarefa à qual está associada toda a obra de Derrida.
Desconstruir os limites conceituais de uma instituição como a ONU (Organização das Nações Unidas), por exemplo, seria mostrar o progresso que ela representa enquanto encarnação de uma idéia de progresso uma ordem jurídica internacional, ao mesmo tempo em que se critica e analisa o quanto ela representa a hegemonia de certos interesses.
Na entrevista que concedeu à Folha, o filósofo falou do seu interesse atual por este problema, a ordem internacional, que divide suas preocupações com o da monopolização da mídia e da relação desta com os intelectuais.
Apesar de requisitadíssimo pelas riquíssimas universidades americanas, Derrida mora numa casa modesta em Ris Orangis, a 40 minutos de trem de Paris. Foi buscar o repórter da Folha na estação, em um velho Citroen AX branco e encardido, um carro ''popular'' francês.
No caminho já se preocupava com o ''que poderia ser dito'' na entrevista. ''Do que vamos falar, quanto tempo nós temos? É difícil falar rapidamente sobre as coisas'', disse, sempre muito reticente em falar de sua filosofia e de seus conceitos.
''Política, seu percurso intelectual, um pouco da sua biografia'', propõe o repórter. ''Ah, mas você não quer que eu diga 'nasci-em-1930-na periferia-de-Argel-de-família-judaica-pobre-etc-etc-né?''.
Além de falar de como é seu relacionamento com a política, acabou falando um pouco de sua biografia: Jacques Derrida nasceu Jackie. ''Era um nome na moda. Havia um ator infantil americano muito popular na época, Jackie Koogan. Mas, como era um nome de menininho e um diminutivo de prenomes de meninas americanas, decidi mudar quando comecei a publicar livros'', conta.

Folha — Diz-se que o sr. raramente torna públicas suas posições políticas. O sr. responde que por vezes nada tem de especial a dizer. Como o Derrida filósofo se relaciona com a política?

Jacques Derrida O que na verdade costumo explicar é que meus gestos políticos públicos podem parecer relativamente raros, mas que isto é uma ilusão. Qualquer um que preste atenção ao que escrevo poderá perceber que sou obcecado pela política. Mas, quando não tenho nada a dizer que considere específico, não falo, quer dizer, tenho apenas uma atitude de cidadão.
Mas minhas opções são conhecidas: são opções de esquerda (ri). Em geral, tento falar ou agir politicamente apenas quando tenho algo mais agudo a dizer: algo ''inoportuno''. Isto é, não se juntar simplesmente à maioria, ao que é conveniente. Trata-se então de deslocar o código político, falar uma linguagem política que não seja imediatamente traduzível pelo código dominante. Tento analisar a linguagem política, a retórica política, os signos políticos dominantes. Tento modificar estes signos e, assim, politizar outras áreas do discurso, mostrar que há política lá onde não se a procura, onde não se a vê. Isto é: politizar de outra maneira o discurso.

Folha — Politizar o discurso...

Derrida Sim, mas há depois o trabalho institucional. Bom, poderia lembrar aqui o que tenho feito, acredito que não seja o lugar... Fundei com amigos o Greph (Grupo de Pesquisas sobre o Ensino Filosófico, em 1974), para transformar o ensino da filosofia, para analisar e transformar na prática o ensino da filosofia. Houve a luta ao lado dos dissidentes thcecos e, por causa disso, fui preso na Tchecoslováquia... (Em 1981, Derrida foi co-fundador da Associação Jan-Hus, de ajuda aos intelectuais tchecos dissidentes e perseguidos. No mesmo ano, numa visita ao país para participar de um seminário, foi preso no aeroporto, acusado de tráfico de drogas. Derrida foi fichado na polícia, fotografado em uniforme de presidiário e passou um dia na cadeia. Foi libertado depois da intervenção do então presidente francês François Mitterrand.)
Mas houve também a luta contra o apartheid etc. Atualmente, há o trabalho no Parlamento Internacional dos Escritores, fundado recentemente para marcar uma solidariedade com escritores, intelectuais e jornalistas perseguidos. E há também os textos que considero muito políticos...

Folha — Por exemplo?

Derrida "Espectros de Marx". É uma afirmação de fidelidade a um certo marxismo, a certas contradições postas por Marx e também é um livro cheio de questões dirigidas a Marx. Foi escrito num momento muito inoportuno, num momento em que todo mundo dizia "Marx está morto" etc. Tentei mostrar o legado de Marx.

Folha — Mas, enfim, quando a filosofia de Derrida encontra o cidadão...

Derrida É uma distinção que não posso aceitar deste modo. Em primeiro lugar, não sou simplesmente um filósofo. Na instituição trabalho, ensino, como filósofo. E meu trabalho é um questionamento da filosofia e não apenas, ou não totalmente, filosofia. As questões políticas que procuro elaborar dizem respeito à nacionalidade, à cidadania, ao direito de asilo, ao direito internacional, às instituições internacionais etc. _e neste caso não intervenho apenas como cidadão. Quer dizer, a reflexão sobre a cidadania não é conduzida apenas por um cidadão...

Folha — Então, o filósofo trabalha hoje em quais questões?

Derrida Há um tema ao qual me dedico... Mas é difícil falar disso diante de um microfone, rapidamente... Uma das questões que me parecem mais urgentes, e da qual hoje me ocupo mais, é a relação entre o intelectual e a mídia.
Minha obsessão pela política é minha obsessão pela mídia, como regular essa relação com a mídia.
Cada vez mais tenho a impressão de que o ambiente da mídia, o ritmo da mídia, tem um efeito sobre o que é dito. Não posso falar do modo e no ritmo que gostaria de falar. Em geral prefiro me calar. Minhas entrevistas são extremamente raras.
Não que seja a favor de me distanciar, de evitar a mídia, mas eu sou por uma transformação do espaço da mídia, da relação do intelectual com a mídia. Procuro também lutar contra o fenômeno da homogeneização, da apropriação da mídia pelas grandes corporações e grandes monopólios.

Folha
É quase impossível então dar entrevistas, as necessidades da concorrência mundial fazem com que existam monopólios, ou quase, por toda a parte, o sr. só poderia dar entrevistas então pela Internet...

Derrida (risos) Claro, a concorrência provoca a criação de grandes jornais, grandes cadeias de televisão, a mídia clássica é o grande problema de hoje. A Internet é um novo e grande concorrente temível, me interessa muito, mas é muito difícil falar tão rapidamente sobre isso...

Folha — O sr. se conecta à Internet?

Derrida Não. Gostaria, mas isso ocupa muito tempo. Sei que existe até um grupo de discussões sobre meu trabalho, ''Desconstrução e Derrida'', na Internet. São discussões muito sérias, mas às quais só tenho acesso por meio de páginas impressas que alguns colegas me fornecem.

Folha — Existe um pensamento derridiano, com implicações...

Derrida — O que quer dizer implicações?

Folha — Um exemplo. Diz-se que o relativismo de Foucault (Michel Foucault, filósofo e historiador francês, 1926-1984), o teria levado a não ter um juízo crítico sobre o regime de Khomeini, que ele a princípio apoiou... (o aiatolá Ruhollah Khomeini tomou o poder no Irã em 1979, por meio de uma revolução fundamentalista islâmica e anti-ocidental).

Derrida No que se refere a Foucault acho que não se pode tratar a questão desse modo, dizer que o que um dia ele falou sobre Khomeini seja uma consequência direta do que ele pensava... Acho que ele cometeu uma imprudência da qual ele se deu conta muito rapidamente, acho que não se deve tomar Foucault pela sua posição no episódio Khomeini. No que me diz respeito, não acho que seja possível deduzir uma política do que escrevo ou ensino. Em ''Espectros de Marx'', há uma tentativa de definir o que está em jogo na desconstrução do político e do jurídico, mas é difícil resumir meu trabalho de desconstrução política e filosófica...

Folha — Mas então, voltando a sua obsessão, a transformação da mídia. Qual é essa transformação que o sr. defende?

Derrida Uma das coisas que me parecem desejáveis é evitar a concentração e monopolização do capital, da propriedade da mídia. Hoje em dia vemos uma concentração inaudita, transnacional. É preciso tentar multiplicar os lugares de mediatização minoritários.
Mas, a este respeito, insisto em especial numa contradição na qual estamos presos, e que é preciso tomar como contradição. De um lado, não se pode deixar que se estabeleça o domínio de mídias muito poderosas, como a CNN, por exemplo. Mas, por outro lado, não se deve também multiplicar infinitamente pequenas empresas de mídia marginais, que não intervenham no grande debate mundial.

Folha — Não entendi. Por quê?

Derrida Porque acho que uma certa, como dizer, um certo agrupamento, por meio dos monopólios, um certo espaço comum de grandes jornais, de grandes cadeias de televisão, de alcance mundial, é também um lugar de debate democrático. Então, essa contradição, a qual é preciso olhar de frente, é que, de um lado, não se deve renunciar a grandes órgãos da mídia, televisões, jornais, e mesmo à Internet, porque são lugares de discussão, debate, do qual todo mundo pode esperar participar. Isso é uma exigência democrática. Mas, em nome da mesma exigência democrática, é preciso evitar essa monopolização.
Acredito que seja uma das nossas responsabilidades de manter as duas exigências ao mesmo tempo. Não deixar os espaços de mídia minoritários, heterogêneos, segundo a língua, origem, dos pequenos países, culturas diversas etc, serem absorvidos pela hegemonia de grandes Estados, de grandes monopólios da mídia. Mas, ao mesmo tempo, não se deve também renunciar às grandes vias do debate mundial, transnacional.

Folha — De qualquer modo seria preciso uma intervenção no mercado mundial de mídia, talvez regulamentá-lo, intervir na concorrência, que é o que provoca as fusões, os monopólios...

Derrida Exatamente. E por isso que é preciso, sem estatismo, haver intervenção do Estado ou das instituições internacionais. No horizonte desse debate está a questão do direito internacional, da transformação das instituições internacionais. Sou a favor do desenvolvimento das instituições internacionais, em torno da ONU, por exemplo, mesmo sabendo de sua impotência atual.

Folha — A que se deve a impotência?

Derrida Em primeiro lugar, as instituições internacionais ainda são muito dependentes de alguns Estados muito poderosos, os que estão no Conselho de Segurança, por exemplo (EUA, Rússia, França, Inglaterra e China). Em segundo lugar, os conceitos de direito internacional, os da carta da ONU, são conceitos ainda limitados.
É aí que acho que a intervenção filosófica é necessária, pois refletir sobre o direito internacional, sobre os conceitos que constituem a carta da ONU, por exemplo, é um trabalho propriamente filosófico não que ele esteja reservado aos filósofos profissionais. É um trabalho de natureza filosófica, ética e jurídica o debate dos conceitos de Estado, de soberania, o conceito de ingerência externa etc.

Folha — Mas quem serão os sujeitos dessas transformações? O sr. fala do filósofo num espaço vazio de interesses...

Derrida Por enquanto estamos num mundo, como dizer, que se divide em Estados-nações, que estão representados na ONU. Então é preciso que os cidadãos em cada país, que intervenham e façam com que seus representantes na ONU ajam, por exemplo.

Folha — O sr. concorda que há uma competição homicida, que provoca a criação de monopólios, que por sua vez querem uma desregulamentação cada vez mais ampla do mercado, que ignora Estados e instituições internacionais? Quem, e como, vai se opor a isso?

Derrida Claro, há a desregulamentação, sim. Mas vou lembrar de novo ''Espectros de Marx'', isso é consequência de um certo modo de gestão capitalista do mercado. Mas sabe-se agora que não se pode simplesmente abolir as leis do mercado. Experiências terríveis mostraram que não se pode fazê-lo. É preciso controlar o mercado de uma maneira diferente daquela em que se acreditou numa certa fase do socialismo e do marxismo. Atualmente, mesmo dentro das democracias liberais, tenta-se reexaminar esse entusiasmo pelo mercado, que ocorreu em seguida ao desmoronamento das sociedades comunistas.
A oposição a esta monopolização pode se dar desde já por meio do direito. Em certos países há leis, certamente insuficientes, que limitam o direito de apropriação a certo número de jornais e TVs. Mas, claro, isso é mais do que insuficiente. A própria concorrência provoca a homogeneização, faz com que as redes de TV se pareçam umas com as outras. Estamos fazendo uma entrevista sobre a mídia! (risos)

Folha — Então, voltando aos intelectuais e à política. O que o sr. pensa da atitude de Sartre, que anda meio esquecido?

Derrida Não acho que Sartre esteja esquecido. Acho que sua literatura e filosofia, curiosamente, foram esquecidas. É paradoxal, mas Sartre, o personagem, o ideólogo, o intelectual, o porta-voz, não foi esquecido de modo algum.
Sartre foi muito importante na minha juventude, dos meus 17 aos 20 anos, quando ele era ''o'' modelo e me interessava ainda mais por ser filósofo e escritor. Em seus livros, descobri Ponge, Blanchot, Bataille. Depois me distanciei, mas sempre mantive muita admiração e simpatia por ele. Distanciei-me de sua filosofia, achava suas leituras de Husserl e Heidegger insuficientes. Distanciei-me também de seu modelo de romance. Acho que ele não compreendeu grande coisa da literatura de seu tempo, de Joyce, Artaud, Bataille, Mallarmé, ele não foi um inventor de formas literárias.

Folha — O que sobrou então?

Derrida Mas Sartre era um fenômeno para mim, e não só para mim, muito enigmático, pois filosoficamente sua obra não é muito forte e do ponto de vista político ele errou muito. Apesar disso, foi uma figura que dominou a cena francesa, e mesmo parte da mundial. Havia alguma coisa nele, um desejo de justiça, uma generosidade, que não foram obliterados por esses fracassos que mencionei. E essa exigência de justiça, de verdade, sua militância de rua em 68 e depois, na defesa de causas mundiais, tudo isso era mais forte e maior que sua obra.

Folha — O sr. mencionou Sartre em 1968. Maio de 1968 foi importante para o sr.? Diz-se muito que o sr. não se manifestou sobre a revolta.

Derrida Mas sim, falei muito disso, aqui e lá. Mas, agora, o que posso dizer rapidamente sobre isso.... Foi um abalo considerável. No momento dos acontecimentos, efetivamente, não tive a noção dos efeitos desse abalo. Nunca fui um ''soixante-huitard'' (um ''meia-oito''), mas participei dos acontecimentos. Não estava nas barricadas, mas fui a passeatas, organizei a primeira assembléia na École Normale Supérieure (centro de formação dos principais intelectuais franceses, no qual Derrida é professor). Desconfiava de um certo ânimo espontaneísta, um certo utopismo naturalista, de idéias como ''a palavra estava sendo libertada''...

Folha — Havia ingenuidade?

Derrida — Sim eles eram um pouco ingênuos, sim. Pensava na época no que aquilo daria. Como você sabe, a sequência imediata de maio de 68 foram as eleições de resultado mais direitista que jamais tivemos, não somente no parlamento, mas também na universidade. Após maio de 1968 a universidade ficou mais reacionária...

Folha — Foi uma consequência perversa...

Derrida Sim, consequências perversas. Só depois tirei as lições de maio de 68, quando vi, em particular, a universidade se tornar mais conservadora do que nunca, foi que eu tirei as lições de 68. Meu engajamento institucional, em especial a criação do Grupo de Pesquisa sobre Ensino Filosófico, isso foi para mim o pós-68, uma luta contra o novo poder asfixiante que se instalou na universidade.
Percebi então a transformação profunda de mentalidades, da atmosfera entre os estudantes, da relação com os estudantes, da transformação da cultura. Isto coincidiu também, para voltarmos ao primeiro tema da nossa conversa, com uma aceleração da atividade da mídia. Foi nestes anos que houve um avanço do poder da mídia, que transformou também os costumes políticos, a relação entre os intelectuais e a mídia. Houve uma tendência, uma exigência de que os intelectuais falassem mais rapidamente, que estabelecessem compromissos com a mídia.

Folha — O sr. era próximo do Partido Comunista, nesta época?

Derrida Não. Jamais fui do PC, nem fui isso que se chama de ''próximo'' do PC. Quando era estudante, não era comunista, era, digamos, de esquerda, de extrema-esquerda não-comunista. Sempre estive à esquerda, mas jamais entrei em um partido político.

Folha — Por que o sr. se distanciou de ''Tel Quel'' e de Philippe Sollers? Foi uma diferença política?

Derrida Bom, por que eles não suportavam minha independência. Quem era próximo do PC eram eles, quem estava junto do PC quando este apoiava as intervenções da Rússia no leste europeu eram eles, não eu (irritado). Depois, eles passaram a adotar posições maoístas, ali no começo dos anos 70. Mas não me interesso apenas por política...

Folha — O sr. se interessa muito por Paul Celan (1920-1970, poeta de língua alemã considerado um dos maiores da segunda metade do século). Quais outros poetas o sr. lê hoje? Ainda há poetas? Estão acabando?

Derrida Conheci pessoalmente Paul Celan, ele era meu amigo e colega também, ensinávamos juntos na École Normale Superieur. Escrevi um livro sobre ele (''Shibboleth''). Era um poeta-pensador. Escrevia numa língua que não era a sua, o alemão, era um poeta judeu que teve sua família exterminada nos campos nazistas. Mesmo assim, escreveu na língua alemã, marcando a língua, procurando enxugá-la, essa língua esgotada por causa de Auschwitz. Mas seria injusto dizer de Paul Celan que ele é apenas um poeta judeu alemão, que fala, que pensa a Shoah. Claro, ele tem essa dimensão inapagável. É um poeta inventor, é muito difícil traduzir sua língua secreta.

Folha — Perguntei de suas leituras hoje porque se diz que ''há uma grande crise na poesia'', que não se escreve mais, que há cada vez menos leitores...

Derrida Sempre se disse isso. Na França, pelo menos. Mas acho que é muito diferente a situação de um país para outro. Há países em que a poesia é popular.

Folha — O sr. não tem a impressão de que se vive num mundo em que a idéia de ler mesmo um poema ou se relacionar seriamente com obras de arte se torna cada vez mais um exotismo, cada vez mais uma atividade minoritária? É como se as pessoas que se dedicam a ler os poemas se dedicassem a algo que perdeu sentido nesta civilização, como se tivessem se tornado especialistas numa arte morta. Como se se tornassem especialistas em heráldica...

Derrida Acho que isso é verdade, por um lado, e não só para a poesia, mas para todas as formas da cultura, não é específico da arte literária. Mas, ao mesmo tempo, acho é possível que se desenvolva algo através de formas aparentemente mais facilmente decifráveis, mais facilmente mediatizáveis. Há outras intervenções, a poesia é mais do que o que está no livro. Há certamente esse desenvolvimento heráldico, precioso, mas também pode haver poesia, o poético, nos espaços tecno-mediáticos, muito mais abertos, nos quais outras coisas serão inventadas. Não quero acreditar que a filosofia, ou a poesia, ou a literatura, serão cada vez mais assunto de bibliófilos. Certo, acho que isso vai ocorrer, em parte, mas, ao lado disso, acho que é preciso inventar, criar, filosofemas, poemas, de obras artísticas que saiam desse círculo precioso. Acho que está se fazendo isso e isso será feito. Mas as novas formas não serão nem previsíveis nem semelhantes às da tradição, que também é preciso preservar. Sim, eu multiplico proposições contraditórias. Sou a favor que se salve a cultura do livro, pois é disso que se trata quando se fala de literatura e poesia. A cultura do livro está muito ameaçada, pode estar começando a desaparecer, a se tornar minoritária. Não quero que se renuncie à cultura do livro. Mas, salvando o livro, não quero abandonar os outros meios, os outros suportes, quaisquer que sejam, a Internet, a televisão. Sou tanto hiperconservador como pela revolução.

Folha — Mas o estado da arte hoje permite dizer que há invenção? Nos EUA ocorre há um certo tempo uma espécie de retomada de uma espécie de arte engajada, mas engajada em questões como gênero, sexualidade, etnia, uma ''arte do conteúdo'', o que é reacionário...

Derrida — De quem você está falando?

Folha — De Robert Mapplethorpe, no pior dos casos mais reputados, por exemplo...

Derrida Sim, mas acho isso muito bom! Acabaram de me pedir que eu prefacie um livro de Mapplethorpe que vai sair na França. Acho que Mapplethorpe não é apenas isso, se você diz que ele quer passar teses sóciopolíticas. Não acho que o engajamento do artista, do escritor, do filósofo, possa dizer respeito apenas ao conteúdo, o que seria reacionário, deixaria as coisas no seu lugar. Como dizia Benjamin, que cito muito a respeito desse assunto, é preciso transformar, de algum modo, os meios de produção sobre as formas, a recepção, sobre os meios de recepção da arte. Mapplethorpe passa um pouco por aí. Mas, claro, ele também não é meu ídolo, mas não é justo dizer que ele não se interessa por forma! (risos).


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