VINICIUS
TORRES FREIRE
De Paris
O filósofo Jacques Derrida, 63, que visita o Brasil esta
semana, é tido por uma instituição francesa
como o jornal ''Le Monde'' como ''um dos raros intelectuais franceses
que tem o privilégio de ser lido, comentado e discutido
em todos os cantos do planeta''.
Tão discutido que, em 1992, parte da Universidade de Cambridge,
na Inglaterra, se indignou contra a quase sempre diplomática
e ritual concessão de um título de doutor ''honoris
causa'' ao filósofo. Motivo: Derrida seria um irracionalista,
alguém que relativiza e deprecia a herança cultural
ocidental e que fornece munição a coisas como o
politicamente correto.
De fato, os cantos do planeta onde se discute Derrida mais intensiva
e significativamente ficam nos EUA. As idéias do filósofo
francês inspiraram os adeptos da contracultura institucionalizada
nos departamentos de teoria literária e ciências
humanas de universidades americanas (como Yale, por exemplo).
Independentemente da polêmica, Derrida é o grande
sobrevivente de uma geração de intelectuais franceses
que ditou moda na filosofia, ciências humanas e crítica
literária entre os anos 60 e 80 em boa parte do mundo ocidental.
Entre estes pensadores, estruturalistas e pós-estruturalistas,
estão o antropólogo Claude Lévi-Strauss,
hoje aposentado, Roland Barthes (1915-80), o filósofo Louis
Althusser (1918-1990), o filósofo e historiador Michel
Foucault (1926-1984) e o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981).
Publicou os livros fundamentais de sua obra nos anos 60 e começo
dos 70: ''Gramatologia'', ''A Escritura e a Diferença''
e ''La Dissémination''. Também nesse momento começa
a difusão do seu trabalho nos EUA e a colaboração
com a revista ''Tel Quel''. O trimestral de filosofia, literatura
e política publicado entre 1960 e 1982 era tido como a
principal revista de vanguarda teórica e literária
da época.
''Tel Quel'' foi uma espécie de cena na qual se desenrolou
a superação do estruturalismo pelos pós-estruturalismos.
Lançou críticos como Julia Kristeva e teve colaboradores
como o poeta Francis Ponge, Barthes e Foucault. Derrida foi colaborador
constante, amigo do escritor Phillipe Sollers, principal figura
de "Tel Quel", e, uma certa época, teórico
''adotado'' pela casa, com a qual rompeu por questões políticas.
Até o começo dos anos 90, pelo menos, conceitos
derridianos, como ''desconstrução'' e ''logocentrismo''
eram moeda corrente, quase única, naquela parte da universidade
americana dedicada a criticar a tradição filosófica
européia, o ''logocentrismo ocidental''. As idéias
de verdade e razão seriam estratégias da uma civilização
repressiva, etnocêntrica e antifeminina.
Não que Derrida seja um profeta do multiculturalismo ou
coisa assim. Na verdade, o filósofo procurou fazer uma
espécie de ''revisão'' da história da filosofia,
uma ''desconstrução'' da razão. Isto é,
colocar em questão a idéia de que se pode definir
significados claros e estáveis para o que se pensa, de
que a verdade e objetividade teriam significados fixos, de que
há conhecimento desinteressado.
''Não há nenhum fora-do-texto'', há apenas
o trabalho da interpretação permanente, o esforço
em mostrar que em todo texto o seu contrário pode estar
sendo dito e que talvez a razão e a verdade sejam um mito
ocidental, ou vários mitos, na verdade, por vezes, discursos
do poder.
Os ''textos'' são cadeias de significados que podem passar
tanto por um poema como pela ''realidade'' social, por uma instituição.
A desconstrução desses textos é tanto um
processo como uma tarefa à qual está associada toda
a obra de Derrida.
Desconstruir os limites conceituais de uma instituição
como a ONU (Organização das Nações
Unidas), por exemplo, seria mostrar o progresso que ela representa
enquanto encarnação de uma idéia de progresso
uma ordem jurídica internacional,
ao mesmo tempo em que se critica e analisa o quanto ela representa
a hegemonia de certos interesses.
Na entrevista que concedeu à Folha, o filósofo
falou do seu interesse atual por este problema, a ordem internacional,
que divide suas preocupações com o da monopolização
da mídia e da relação desta com os intelectuais.
Apesar de requisitadíssimo pelas riquíssimas universidades
americanas, Derrida mora numa casa modesta em Ris Orangis, a 40
minutos de trem de Paris. Foi buscar o repórter da Folha
na estação, em um velho Citroen AX branco e encardido,
um carro ''popular'' francês.
No caminho já se preocupava com o ''que poderia ser dito''
na entrevista. ''Do que vamos falar, quanto tempo nós temos?
É difícil falar rapidamente sobre as coisas'', disse,
sempre muito reticente em falar de sua filosofia e de seus conceitos.
''Política, seu percurso intelectual, um pouco da sua biografia'',
propõe o repórter. ''Ah, mas você não
quer que eu diga 'nasci-em-1930-na periferia-de-Argel-de-família-judaica-pobre-etc-etc-né?''.
Além de falar de como é seu relacionamento com a
política, acabou falando um pouco de sua biografia: Jacques
Derrida nasceu Jackie. ''Era um nome na moda. Havia um ator infantil
americano muito popular na época, Jackie Koogan. Mas, como
era um nome de menininho e um diminutivo de prenomes de meninas
americanas, decidi mudar quando comecei a publicar livros'', conta.
Folha Diz-se que o sr. raramente torna públicas
suas posições políticas. O sr. responde que
por vezes nada tem de especial a dizer. Como o Derrida filósofo
se relaciona com a política?
Jacques Derrida O que na verdade costumo
explicar é que meus gestos políticos públicos
podem parecer relativamente raros, mas que isto é uma ilusão.
Qualquer um que preste atenção ao que escrevo poderá
perceber que sou obcecado pela política. Mas, quando não
tenho nada a dizer que considere específico, não
falo, quer dizer, tenho apenas uma atitude de cidadão.
Mas minhas opções são conhecidas: são
opções de esquerda (ri). Em geral, tento falar ou
agir politicamente apenas quando tenho algo mais agudo a dizer:
algo ''inoportuno''. Isto é, não se juntar simplesmente
à maioria, ao que é conveniente. Trata-se então
de deslocar o código político, falar uma linguagem
política que não seja imediatamente traduzível
pelo código dominante. Tento analisar a linguagem política,
a retórica política, os signos políticos
dominantes. Tento modificar estes signos e, assim, politizar outras
áreas do discurso, mostrar que há política
lá onde não se a procura, onde não se a vê.
Isto é: politizar de outra maneira o discurso.
Folha Politizar o discurso...
Derrida Sim, mas há depois o trabalho
institucional. Bom, poderia lembrar aqui o que tenho feito, acredito
que não seja o lugar... Fundei com amigos o Greph (Grupo
de Pesquisas sobre o Ensino Filosófico, em 1974), para
transformar o ensino da filosofia, para analisar e transformar
na prática o ensino da filosofia. Houve a luta ao lado
dos dissidentes thcecos e, por causa disso, fui preso na Tchecoslováquia...
(Em 1981, Derrida foi co-fundador da Associação
Jan-Hus, de ajuda aos intelectuais tchecos dissidentes e perseguidos.
No mesmo ano, numa visita ao país para participar de um
seminário, foi preso no aeroporto, acusado de tráfico
de drogas. Derrida foi fichado na polícia, fotografado
em uniforme de presidiário e passou um dia na cadeia. Foi
libertado depois da intervenção do então
presidente francês François Mitterrand.)
Mas houve também a luta contra o apartheid etc. Atualmente,
há o trabalho no Parlamento Internacional dos Escritores,
fundado recentemente para marcar uma solidariedade com escritores,
intelectuais e jornalistas perseguidos. E há também
os textos que considero muito políticos...
Folha Por exemplo?
Derrida "Espectros de Marx". É
uma afirmação de fidelidade a um certo marxismo,
a certas contradições postas por Marx e também
é um livro cheio de questões dirigidas a Marx. Foi
escrito num momento muito inoportuno, num momento em que todo
mundo dizia "Marx está morto" etc. Tentei mostrar
o legado de Marx.
Folha Mas, enfim, quando a filosofia de Derrida encontra
o cidadão...
Derrida É uma distinção
que não posso aceitar deste modo. Em primeiro lugar, não
sou simplesmente um filósofo. Na instituição
trabalho, ensino, como filósofo. E meu trabalho é
um questionamento da filosofia e não apenas, ou não
totalmente, filosofia. As questões políticas que
procuro elaborar dizem respeito à nacionalidade, à
cidadania, ao direito de asilo, ao direito internacional, às
instituições internacionais etc. _e neste caso não
intervenho apenas como cidadão. Quer dizer, a reflexão
sobre a cidadania não é conduzida apenas por um
cidadão...
Folha Então, o filósofo trabalha hoje em
quais questões?
Derrida Há um tema ao qual me dedico...
Mas é difícil falar disso diante de um microfone,
rapidamente... Uma das questões que me parecem mais urgentes,
e da qual hoje me ocupo mais, é a relação
entre o intelectual e a mídia.
Minha obsessão pela política é minha obsessão
pela mídia, como regular essa relação com
a mídia.
Cada vez mais tenho a impressão de que o ambiente da mídia,
o ritmo da mídia, tem um efeito sobre o que é dito.
Não posso falar do modo e no ritmo que gostaria de falar.
Em geral prefiro me calar. Minhas entrevistas são extremamente
raras.
Não que seja a favor de me distanciar, de evitar a mídia,
mas eu sou por uma transformação do espaço
da mídia, da relação do intelectual com a
mídia. Procuro também lutar contra o fenômeno
da homogeneização, da apropriação
da mídia pelas grandes corporações e grandes
monopólios.
Folha É quase impossível então
dar entrevistas, as necessidades da concorrência mundial
fazem com que existam monopólios, ou quase, por toda a
parte, o sr. só poderia dar entrevistas então pela
Internet...
Derrida (risos) Claro, a concorrência
provoca a criação de grandes jornais, grandes cadeias
de televisão, a mídia clássica é o
grande problema de hoje. A Internet é um novo e grande
concorrente temível, me interessa muito, mas é muito
difícil falar tão rapidamente sobre isso...
Folha O sr. se conecta à Internet?
Derrida Não. Gostaria, mas isso ocupa
muito tempo. Sei que existe até um grupo de discussões
sobre meu trabalho, ''Desconstrução e Derrida'',
na Internet. São discussões muito sérias,
mas às quais só tenho acesso por meio de páginas
impressas que alguns colegas me fornecem.
Folha Existe um pensamento derridiano, com implicações...
Derrida O que quer dizer implicações?
Folha Um exemplo. Diz-se que o relativismo de Foucault
(Michel Foucault, filósofo e historiador francês,
1926-1984), o teria levado a não ter um juízo crítico
sobre o regime de Khomeini, que ele a princípio apoiou...
(o aiatolá Ruhollah Khomeini tomou o poder no Irã
em 1979, por meio de uma revolução fundamentalista
islâmica e anti-ocidental).
Derrida No que se refere a Foucault acho
que não se pode tratar a questão desse modo, dizer
que o que um dia ele falou sobre Khomeini seja uma consequência
direta do que ele pensava... Acho que ele cometeu uma imprudência
da qual ele se deu conta muito rapidamente, acho que não
se deve tomar Foucault pela sua posição no episódio
Khomeini. No que me diz respeito, não acho que seja possível
deduzir uma política do que escrevo ou ensino. Em ''Espectros
de Marx'', há uma tentativa de definir o que está
em jogo na desconstrução do político e do
jurídico, mas é difícil resumir meu trabalho
de desconstrução política e filosófica...
Folha Mas então, voltando a sua obsessão,
a transformação da mídia. Qual é essa
transformação que o sr. defende?
Derrida Uma das coisas que me parecem desejáveis
é evitar a concentração e monopolização
do capital, da propriedade da mídia. Hoje em dia vemos
uma concentração inaudita, transnacional. É
preciso tentar multiplicar os lugares de mediatização
minoritários.
Mas, a este respeito, insisto em especial numa contradição
na qual estamos presos, e que é preciso tomar como contradição.
De um lado, não se pode deixar que se estabeleça
o domínio de mídias muito poderosas, como a CNN,
por exemplo. Mas, por outro lado, não se deve também
multiplicar infinitamente pequenas empresas de mídia marginais,
que não intervenham no grande debate mundial.
Folha Não entendi. Por quê?
Derrida Porque acho que uma certa, como dizer,
um certo agrupamento, por meio dos monopólios, um certo
espaço comum de grandes jornais, de grandes cadeias de
televisão, de alcance mundial, é também um
lugar de debate democrático. Então, essa contradição,
a qual é preciso olhar de frente, é que, de um lado,
não se deve renunciar a grandes órgãos da
mídia, televisões, jornais, e mesmo à Internet,
porque são lugares de discussão, debate, do qual
todo mundo pode esperar participar. Isso é uma exigência
democrática. Mas, em nome da mesma exigência democrática,
é preciso evitar essa monopolização.
Acredito que seja uma das nossas responsabilidades de manter as
duas exigências ao mesmo tempo. Não deixar os espaços
de mídia minoritários, heterogêneos, segundo
a língua, origem, dos pequenos países, culturas
diversas etc, serem absorvidos pela hegemonia de grandes Estados,
de grandes monopólios da mídia. Mas, ao mesmo tempo,
não se deve também renunciar às grandes vias
do debate mundial, transnacional.
Folha De qualquer modo seria preciso uma intervenção
no mercado mundial de mídia, talvez regulamentá-lo,
intervir na concorrência, que é o que provoca as
fusões, os monopólios...
Derrida Exatamente. E por isso que é
preciso, sem estatismo, haver intervenção do Estado
ou das instituições internacionais. No horizonte
desse debate está a questão do direito internacional,
da transformação das instituições
internacionais. Sou a favor do desenvolvimento das instituições
internacionais, em torno da ONU, por exemplo, mesmo sabendo de
sua impotência atual.
Folha A que se deve a impotência?
Derrida Em primeiro lugar, as instituições
internacionais ainda são muito dependentes de alguns Estados
muito poderosos, os que estão no Conselho de Segurança,
por exemplo (EUA, Rússia, França, Inglaterra e China).
Em segundo lugar, os conceitos de direito internacional, os da
carta da ONU, são conceitos ainda limitados.
É aí que acho que a intervenção filosófica
é necessária, pois refletir sobre o direito internacional,
sobre os conceitos que constituem a carta da ONU, por exemplo,
é um trabalho propriamente filosófico não
que ele esteja reservado aos filósofos profissionais. É
um trabalho de natureza filosófica, ética e jurídica
o debate dos conceitos de Estado, de soberania, o conceito de
ingerência externa etc.
Folha Mas quem serão os sujeitos dessas transformações?
O sr. fala do filósofo num espaço vazio de interesses...
Derrida Por enquanto estamos num mundo, como
dizer, que se divide em Estados-nações, que estão
representados na ONU. Então é preciso que os cidadãos
em cada país, que intervenham e façam com que seus
representantes na ONU ajam, por exemplo.
Folha O sr. concorda que há uma competição
homicida, que provoca a criação de monopólios,
que por sua vez querem uma desregulamentação cada
vez mais ampla do mercado, que ignora Estados e instituições
internacionais? Quem, e como, vai se opor a isso?
Derrida Claro, há a desregulamentação,
sim. Mas vou lembrar de novo ''Espectros de Marx'', isso é
consequência de um certo modo de gestão capitalista
do mercado. Mas sabe-se agora que não se pode simplesmente
abolir as leis do mercado. Experiências terríveis
mostraram que não se pode fazê-lo. É preciso
controlar o mercado de uma maneira diferente daquela em que se
acreditou numa certa fase do socialismo e do marxismo. Atualmente,
mesmo dentro das democracias liberais, tenta-se reexaminar esse
entusiasmo pelo mercado, que ocorreu em seguida ao desmoronamento
das sociedades comunistas.
A oposição a esta monopolização pode
se dar desde já por meio do direito. Em certos países
há leis, certamente insuficientes, que limitam o direito
de apropriação a certo número de jornais
e TVs. Mas, claro, isso é mais do que insuficiente. A própria
concorrência provoca a homogeneização, faz
com que as redes de TV se pareçam umas com as outras. Estamos
fazendo uma entrevista sobre a mídia! (risos)
Folha Então, voltando aos intelectuais e à
política. O que o sr. pensa da atitude de Sartre, que anda
meio esquecido?
Derrida Não acho que Sartre esteja
esquecido. Acho que sua literatura e filosofia, curiosamente,
foram esquecidas. É paradoxal, mas Sartre, o personagem,
o ideólogo, o intelectual, o porta-voz, não foi
esquecido de modo algum.
Sartre foi muito importante na minha juventude, dos meus 17 aos
20 anos, quando ele era ''o'' modelo e me interessava ainda mais
por ser filósofo e escritor. Em seus livros, descobri Ponge,
Blanchot, Bataille. Depois me distanciei, mas sempre mantive muita
admiração e simpatia por ele. Distanciei-me de sua
filosofia, achava suas leituras de Husserl e Heidegger insuficientes.
Distanciei-me também de seu modelo de romance. Acho que
ele não compreendeu grande coisa da literatura de seu tempo,
de Joyce, Artaud, Bataille, Mallarmé, ele não foi
um inventor de formas literárias.
Folha O que sobrou então?
Derrida Mas Sartre era um fenômeno
para mim, e não só para mim, muito enigmático,
pois filosoficamente sua obra não é muito forte
e do ponto de vista político ele errou muito. Apesar disso,
foi uma figura que dominou a cena francesa, e mesmo parte da mundial.
Havia alguma coisa nele, um desejo de justiça, uma generosidade,
que não foram obliterados por esses fracassos que mencionei.
E essa exigência de justiça, de verdade, sua militância
de rua em 68 e depois, na defesa de causas mundiais, tudo isso
era mais forte e maior que sua obra.
Folha O sr. mencionou Sartre em 1968. Maio de 1968 foi
importante para o sr.? Diz-se muito que o sr. não se manifestou
sobre a revolta.
Derrida Mas sim, falei muito disso, aqui
e lá. Mas, agora, o que posso dizer rapidamente sobre isso....
Foi um abalo considerável. No momento dos acontecimentos,
efetivamente, não tive a noção dos efeitos
desse abalo. Nunca fui um ''soixante-huitard'' (um ''meia-oito''),
mas participei dos acontecimentos. Não estava nas barricadas,
mas fui a passeatas, organizei a primeira assembléia na
École Normale Supérieure (centro de formação
dos principais intelectuais franceses, no qual Derrida é
professor). Desconfiava de um certo ânimo espontaneísta,
um certo utopismo naturalista, de idéias como ''a palavra
estava sendo libertada''...
Folha Havia ingenuidade?
Derrida Sim eles eram um pouco ingênuos, sim.
Pensava na época no que aquilo daria. Como você sabe,
a sequência imediata de maio de 68 foram as eleições
de resultado mais direitista que jamais tivemos, não somente
no parlamento, mas também na universidade. Após
maio de 1968 a universidade ficou mais reacionária...
Folha Foi uma consequência perversa...
Derrida Sim, consequências perversas.
Só depois tirei as lições de maio de 68,
quando vi, em particular, a universidade se tornar mais conservadora
do que nunca, foi que eu tirei as lições de 68.
Meu engajamento institucional, em especial a criação
do Grupo de Pesquisa sobre Ensino Filosófico, isso foi
para mim o pós-68, uma luta contra o novo poder asfixiante
que se instalou na universidade.
Percebi então a transformação profunda de
mentalidades, da atmosfera entre os estudantes, da relação
com os estudantes, da transformação da cultura.
Isto coincidiu também, para voltarmos ao primeiro tema
da nossa conversa, com uma aceleração da atividade
da mídia. Foi nestes anos que houve um avanço do
poder da mídia, que transformou também os costumes
políticos, a relação entre os intelectuais
e a mídia. Houve uma tendência, uma exigência
de que os intelectuais falassem mais rapidamente, que estabelecessem
compromissos com a mídia.
Folha O sr. era próximo do Partido Comunista,
nesta época?
Derrida Não. Jamais fui do PC, nem
fui isso que se chama de ''próximo'' do PC. Quando era
estudante, não era comunista, era, digamos, de esquerda,
de extrema-esquerda não-comunista. Sempre estive à
esquerda, mas jamais entrei em um partido político.
Folha Por que o sr. se distanciou de ''Tel Quel'' e
de Philippe Sollers? Foi uma diferença política?
Derrida Bom, por que eles não suportavam
minha independência. Quem era próximo do PC eram
eles, quem estava junto do PC quando este apoiava as intervenções
da Rússia no leste europeu eram eles, não eu (irritado).
Depois, eles passaram a adotar posições maoístas,
ali no começo dos anos 70. Mas não me interesso
apenas por política...
Folha O sr. se interessa muito por Paul Celan (1920-1970,
poeta de língua alemã considerado um dos maiores
da segunda metade do século). Quais outros poetas o sr.
lê hoje? Ainda há poetas? Estão acabando?
Derrida Conheci pessoalmente Paul Celan,
ele era meu amigo e colega também, ensinávamos juntos
na École Normale Superieur. Escrevi um livro sobre ele
(''Shibboleth''). Era um poeta-pensador. Escrevia numa língua
que não era a sua, o alemão, era um poeta judeu
que teve sua família exterminada nos campos nazistas. Mesmo
assim, escreveu na língua alemã, marcando a língua,
procurando enxugá-la, essa língua esgotada por causa
de Auschwitz. Mas seria injusto dizer de Paul Celan que ele é
apenas um poeta judeu alemão, que fala, que pensa a Shoah.
Claro, ele tem essa dimensão inapagável. É
um poeta inventor, é muito difícil traduzir sua
língua secreta.
Folha Perguntei de suas leituras hoje porque se diz
que ''há uma grande crise na poesia'', que não se
escreve mais, que há cada vez menos leitores...
Derrida Sempre se disse isso. Na França,
pelo menos. Mas acho que é muito diferente a situação
de um país para outro. Há países em que a
poesia é popular.
Folha O sr. não tem a impressão de que
se vive num mundo em que a idéia de ler mesmo um poema
ou se relacionar seriamente com obras de arte se torna cada vez
mais um exotismo, cada vez mais uma atividade minoritária?
É como se as pessoas que se dedicam a ler os poemas se
dedicassem a algo que perdeu sentido nesta civilização,
como se tivessem se tornado especialistas numa arte morta. Como
se se tornassem especialistas em heráldica...
Derrida Acho que isso é verdade, por
um lado, e não só para a poesia, mas para todas
as formas da cultura, não é específico da
arte literária. Mas, ao mesmo tempo, acho é possível
que se desenvolva algo através de formas aparentemente
mais facilmente decifráveis, mais facilmente mediatizáveis.
Há outras intervenções, a poesia é
mais do que o que está no livro. Há certamente esse
desenvolvimento heráldico, precioso, mas também
pode haver poesia, o poético, nos espaços tecno-mediáticos,
muito mais abertos, nos quais outras coisas serão inventadas.
Não quero acreditar que a filosofia, ou a poesia, ou a
literatura, serão cada vez mais assunto de bibliófilos.
Certo, acho que isso vai ocorrer, em parte, mas, ao lado disso,
acho que é preciso inventar, criar, filosofemas, poemas,
de obras artísticas que saiam desse círculo precioso.
Acho que está se fazendo isso e isso será feito.
Mas as novas formas não serão nem previsíveis
nem semelhantes às da tradição, que também
é preciso preservar. Sim, eu multiplico proposições
contraditórias. Sou a favor que se salve a cultura do livro,
pois é disso que se trata quando se fala de literatura
e poesia. A cultura do livro está muito ameaçada,
pode estar começando a desaparecer, a se tornar minoritária.
Não quero que se renuncie à cultura do livro. Mas,
salvando o livro, não quero abandonar os outros meios,
os outros suportes, quaisquer que sejam, a Internet, a televisão.
Sou tanto hiperconservador como pela revolução.
Folha Mas o estado da arte hoje permite dizer que há
invenção? Nos EUA ocorre há um certo tempo
uma espécie de retomada de uma espécie de arte engajada,
mas engajada em questões como gênero, sexualidade,
etnia, uma ''arte do conteúdo'', o que é reacionário...
Derrida De quem você está falando?
Folha De Robert Mapplethorpe, no pior dos casos mais
reputados, por exemplo...
Derrida Sim, mas acho isso muito bom! Acabaram
de me pedir que eu prefacie um livro de Mapplethorpe que vai sair
na França. Acho que Mapplethorpe não é apenas
isso, se você diz que ele quer passar teses sóciopolíticas.
Não acho que o engajamento do artista, do escritor, do
filósofo, possa dizer respeito apenas ao conteúdo,
o que seria reacionário, deixaria as coisas no seu lugar.
Como dizia Benjamin, que cito muito a respeito desse assunto,
é preciso transformar, de algum modo, os meios de produção
sobre as formas, a recepção, sobre
os meios de recepção da arte. Mapplethorpe passa
um pouco por aí. Mas, claro, ele também não
é meu ídolo, mas não é justo dizer
que ele não se interessa por forma! (risos).