FERNANDA
SCALZO
De Paris
O filósofo Claude Lefort faz no dia 12 de abril, em São
Paulo, e no dia 13, no Rio, uma palestra sobre o escritor, músico
e artista plástico Henri Michaux (1899-1984), dentro do ciclo
"Artepensamento", organizado por Adauto Novaes. Para Lefort,
autor de "As Formas da História" (Brasiliense),
entre outras obras, Michaux representa a corrente do pensamento
contemporâneo que caminha na direção de uma
eliminação das fronteiras entre as artes e entre estas
e a filosofia.
Em seu escritório do Centro de Estudos Raymond Aron, em Paris,
Lefort também falou à Folha sobre o "politicamente
correto" na sua opinião, herdeiro de uma
"tradição de seitas" americana
e a crítica contemporânea, que ele considera cada
vez mais vaga e preocupada com o espetacular.
Folha Por que o sr. escolheu Henri Michaux como tema de sua
conferência no Brasil?
Claude Lefort Escrevi há um tempo
um artigo sobre Michaux e sempre fui muito atraído por ele.
Adauto Novaes me sugeriu esse tema, já que essa série
de encontros será sobre arte e pensamento. Para mim, Michaux
é justamente um dos escritores que nos introduz de uma forma
muito forte no enigma de um pensamento que se faz linguagem, que
se faz pintura, que se faz música. Então é
uma coisa interessante voltar a Michaux e tentar mostrar que para
ele existe não só o desejo de ultrapassar a linguagem
falada, desejo de romper as grades do real e do tempo, através
da música, mas também que ele encontra justamente
na música as oposições que ele acreditou ter
banido da linguagem falada.
Além disso, o que Michaux faz perceber é que no seu
uso das palavras as palavras que são para ele
sempre decepcionantes e que guardam significações
que poderiam liberá-lo, ele ganha o que chama
de "passagem". Uma passagem para fora do real, do tempo.
Ele imprime uma fluência, um ritmo, e encontra nas palavras
o timbre de sua própria voz.
Enfim, há uma música na própria palavra. É
precisamente na escritura que ele experimenta a maior tensão
entre essas amarras ao espaço e ao tempo, essa limitação
que é para ele dolorosa, e a possibilidade de escapar de
si mesmo. E chega a alcançar nessa tensão um conhecimento,
que para ele é um conhecimento místico.
Isso tudo me interessa porque há precisamente uma fronteira
entre a filosofia que se apresenta como a tentativa
de dar conta pelo pensamento do ser, da história e da natureza,
a literatura em que se confia a invenção
do pensamento através da palavra, a música,
e as outras artes. Mas essas fronteiras, que são tão
sensíveis àquele que tenta se pôr como filósofo,
músico, pintor ou escritor, não são separações
entre diferentes modos de se relacionar com o mundo. Essas fronteiras,
que cada um experimenta seja na escrita ou na música, atestam
sempre uma mesma relação, uma mesma tentativa de expressão.
De modo que há música não somente na literatura
e na pintura, mas há também no interior da própria
filosofia. Há um movimento do pensamento, como há
um movimento da literatura e da pintura. Pode-se mesmo dizer que
há uma dança que acontece para aquele que acredita
ter criado apenas um conceito, para aquele que acha que fixou numa
tela apenas algumas linhas. Há uma dança que é
sem dúvida constitutiva de todo modo de expressão.
Folha Nesse sentido, Michaux pode ser visto como predecessor
de um modo de expressão muito contemporâneo...
Lefort Não sei se ele pode ser visto
como um predecessor de um modo de expressão, mas o vejo sem
dúvida como um contemporâneo. Porque, precisamente,
ele é alguém que nos tira a ilusão da separação
entre os gêneros e que nos revela o que há de artificial
na oposição entre o sensível e o inteligível.
Para Michaux, não há lugares circunscritos. Para começar,
não há o corpo de um lado e o espírito de outro.
Tudo o que ele diz a respeito de seu próprio corpo faz entrever
uma gestação de nossa relação com o
mundo exterior. Nesse sentido, ele marca uma ruptura na história
intelectual dos últimos 50 anos.
O que é também admirável e muito moderno em
Michaux é que ele levou o mais longe possível a noção
do indivíduo e, de uma maneira mais geral, do singular, do
acontecimento que pode ser aparentemente insignificante. Como por
exemplo, a descoberta que ele faz constantemente de que há
nele um homem direito e um esquerdo, que há uma maneira de
se ligar às coisas pela esquerda ou pela direita. Ou que
o corpo não é único, mas múltiplo. E
também uma atenção à "rêverie"
(devaneio), que quebra as fronteiras entre o que caracterizamos
como real ou como imaginário. Ele é muito atento ao
que acontece a ele, a seu corpo e a seu pensamento. Mas não
é seu ego que ele quer descrever. O que permite que nos encontremos
ao encontrá-lo.
Folha Na corrente contrária, há hoje o movimento
do "politicamente correto". Como o sr. vê esse movimento?
Lefort Acho que felizmente essa noção
não teve nenhuma repercussão na França. É
um fenômeno americano, anglo-saxônico, que é
insuportável, mas que é interessante na medida em
que parece traduzir algo de muito antigo em uma certa tradição
de seita nos Estados Unidos. Como se tudo precisasse passar por
regras para poder existir. Há esse povo que parece tão
pragmático, mas ao mesmo tempo um povo para o qual o discurso
sobre aquilo que se deve fazer ou não, pensar ou não,
é um discurso muito exigente. Há um discurso sobre
a alimentação, o sexo, a maneira de manter o corpo.
Um discurso que se encontra até no conformismo do pensamento.
A força dessa idéia de que há algo que é
"politicamente correto" faz parte de uma tendência
a um conformismo de seita que Tocqueville já notara no século
19.
Folha Como o "politicamente correto" pode ser
determinante de um modo de expressão?
Lefort Sem dúvida a moda está
em todos os lugares, digamos uma atração por um certo
tipo de expressão. Mas nos EUA há uma rigidez maior,
ainda que os imperativos daquilo que é bom ou mau em pintura,
por exemplo, mudem. Mas, pelo menos durante um tempo, temos a impressão
de que tudo se passa dentro de um círculo, que há
uma maneira de fazer que se impõe e que testemunha um conformismo
extraordinário.
Folha E as novas mídias, elas podem influir no
modo de pensar a arte?
Lefort No sentido de fazer a arte conhecida
por público maior, as mídias podem ser algo positivo.
Por outro lado, o triste é ver que aquilo que antigamente
era a crítica literária e de arte tendem a perder
suas exigências de antes. Fala-se de um livro, de uma pintura,
para fazer valer seu próprio conhecimento, tentando seduzir
o público por sua própria opinião pelo
menos é assim na França.
É uma crítica de opinião e há cada vez
menos a tentativa de desaparecer no trabalho do outro para conhecê-lo.
A crítica se torna cada vez mais vaga e preocupada com o
espetacular. Mas nós estamos diante de um fenômeno
que é inevitável e que se decidiu muito cedo. Desde
o começo do século 19 há uma crítica
de arte e literária que é importante e difundida pelos
jornais. É um fenômeno que já se vê naquela
época. Há cada vez mais autores que escrevem em função
daquilo que eles acham que os leitores esperam. E o que eles acham
que os leitores esperam vem em função da crítica,
que valida o bom gosto ou, mais simplesmente, a modernidade.
O conceito do que é a vanguarda ajuda a decidir o que se
vai criar, sobretudo para fazer parte da vanguarda. É um
fenômeno antigo, que se desenvolveu muito com a cultura de
massa, que é essa espécie de novo conformismo de um
suposto anticonformismo. Mas eu acredito que ainda hoje existam
artistas que trabalham segundo suas próprias exigências
e não são motivados por um reconhecimento público
imediato. Eu não acredito que as mídias possam algum
dia suprimir ou diminuir a exigência de alguém para
quem escrever é mais importante do que viver.
Folha A informática pode interferir na criação?
Lefort Olha, pode haver efeitos muito ambíguos
sobre o desenvolvimento da informática. Mas até agora
uma coisa certa é que ela engendra um fantasma bem razoável,
que nos faz tremer, com medo que a informática substitua
o exercício do pensamento ou da arte. Esse é um fantasma
que encanta de uma certa maneira e que dá medo. Fantasma
muito característico da nossa sociedade, que por um lado
adora a novidade e por outro adora a idéia da catástofre.
Nós somos fascinados por uma idéia de ruptura definitiva
com todo o passado e pela idéia de uma crise derradeira.
Folha Sobre quais outros temas o sr. está trabalhando?
Lefort Eu procuro interrogar o novo estado
do mundo, depois do fim do comunismo. Principalmente pensar o liberalismo
selvagem, que se espalhou, e também o nacionalismo. São
as novas questões que apareceram e que mostram a que ponto
nós temos necessidade de pensar por nossos meios uma nova
democracia. Com o fim do comunismo, o que mobiliza as pessoas é
a economia de mercado ou o nacionalismo. É uma tentativa
de pensar, para além dessas falsas questões, o que
pode ser um caminho para a sociedade.
Folha O filósofo Jacques Derrida escreveu recentemente
um livro sobre Marx, "Espectros de Marx". Há uma
retomada de Marx na França?
Lefort Na minha opinião isso não
tem interesse. Há intelectuais que procuram sempre uma vaga.
Nós falávamos há pouco de conformismo e anticonformismo...
Derrida, que eu saiba, nunca falou de Marx. É surpreendente,
é insólito, ele começar a falar de Marx. O
que há hoje em certos meios é uma nostalgia do tempo
em que podíamos falar do comunismo. Mas daí a dizer
que há uma volta a Marx, não dá.
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