O maior escritor argentino vivo chega hoje a São Paulo,
a convite da Folha e do Instituto Cultural Brasil-Argentina
JOSÉ GERALDO COUTO
Enviado especial a Buenos Aires
Adolfo Bioy Casares, 80, que chega hoje a São Paulo, trazido
pela Folha e pelo Instituto Cultural Brasil-Argentina (leia programação
nesta página), é o mais importante escritor argentino
vivo.
Amigo e parceiro de Jorge Luis Borges (1899-1986), com quem escreveu
histórias policiais e editou coleções e antologias
de textos fantásticos, Bioy Casares é autor de alguns
livros fundamentais da ficção argentina moderna.
Entre eles, destacam-se os romances fantásticos "A
Invenção de Morel'', "Plan de Evasión''
e "O Sonho dos Heróis'', além de vários
volumes de contos, cujos temas oscilam entre o fantástico
e a história de amor, frequentemente combinando a ambos.
Considerado por seus colegas de ofício um narrador extremamente
refinado, Bioy Casares foi homenageado num conto de Julio Cortázar
("Diário para um Conto'', em "Fora de Hora'')
e em pelo menos dois de Borges ("Tlõn, Uqbar, Orbis
Tertius'', de "Ficções'', e "O Homem no
Umbral'', de "O Aleph'').
Em 1990, ganhou em Madri o Prêmio Cervantes, o mais importante
de língua espanhola.
Recentemente, publicou suas "Memorias'', pela editora Tusquets,
que deve lançar em 1996 um volume de contos inéditos
do autor, "Irse''.
Dois outros livros de Bioy Casares estão praticamente prontos
e devem ser lançados em breve: "En Viaje'', uma espécie
de diário de viagens do autor pela Europa; e um volume
de fotos feitas pelo próprio escritor, a ser organizado
por Daniel Martino.
Nos últimos anos, Bioy Casares sofreu dois duros golpes
em sua vida pessoal. Em 1993, morreu sua mulher, a escritora Silvina
Ocampo, com quem ele vivia desde 1940. No ano passado, num acidente
de carro, morreu sua única filha, Marta.
Hoje, Bioy Casares divide com dois de seus três netos um
amplo apartamento no elegante bairro da Recoleta, no centro de
Buenos Aires. Escreve todos os dias, à mão, desde
que escrever à máquina passou a lhe causar dores
na coluna.
Nesta entrevista, o escritor fala sobre Borges, cinema, literatura,
Argentina e Brasil.
Folha: O sr. descende de fazendeiros, e o campo foi muito importante
em sua infância e juventude. Por que o sr. praticamente
não escreveu ficção com ambientação
rural?
Adolfo Bioy Casares: Bem, eu escrevi um livro de ensaio
sobre o pampa e o gaúcho. Na ficção, não
sei por quê, nunca me senti à vontade para escrever
histórias rurais, preferi histórias urbanas. Mas
tenho vontade de escrever um conto sobre o campo, quem sabe eu
ainda o faça.
Folha: Quando o sr. e Borges se conheceram, em 32, ele já
havia participado do movimento ultraísta e do grupo da
revista "Martin Fierro''. Qual era, na época, a posição
de Borges com respeito ao ultraísmo e às vanguardas
em geral? E a sua?
Bioy Casares: Sentimos que havia uma afinidade entre nós,
porque tanto ele como eu renegávamos as vanguardas e o
ultraísmo.
Folha: Mas o sr. mantinha ainda elementos de proximidade
com as vanguardas, não?
Bioy Casares: É possível. Uma vez, disseram
que eu era um dos ultraístas mais conhecidos de Buenos
Aires, o que me envergonha um pouco (risos).
Folha: Em 1936, o sr. e Borges fundaram a revista "Destiempo''.
Gostaria que o sr. falasse um pouco sobre a revista e suas propostas.
Bioy Casares: A revista tinha um propósito muito
amplo, de receber o melhor da literatura. Não era uma revista
com uma tendência determinada. Foram publicados só
três números. E um deles vendeu-se muito bem, esgotou-se
rapidamente. Depois, descobrimos por quê. Porque era vendida
num estádio de futebol, e dizia-se: "'Destiempo',
a revista para o assento'' (risos).
Folha: Em suas memórias, o sr. diz que uma preocupação
da revista era atentar para o valor intrínseco das obras,
que muitas vezes era deixado em segundo plano pela crítica,
em favor de fatores exteriores...
Bioy Casares: Sim, claro, e foi por isso que colaboraram
nela escritores muito bons, como Alfonso Reyes, Fernandez Moreno,
os melhores escritores daquela época. Mas, como não
pagávamos as colaborações, não foram
muitos os que se animaram, e não foi possível seguir
com a publicação.
Folha: O sr. renega os livros que escreveu antes de "A
Invenção de Morel''. Por que eles lhe desagradam
tanto? Que tipo de livros eram?
Bioy Casares: São livros muito desagradáveis.
Creio que ninguém os pode ler numa atitude prazenteira.
Quando escrevi "A Invenção de Morel'', tentei
mudar de personalidade, ser outra pessoa, de tão ruins
que me pareciam os primeiros livros.
Folha: Mas o que eles tinham de tão ruim? Eram sentimentais?
Bioy Casares: Não, não creio. Eram, isso
sim, confusos, mal feitos. Não acho que se pode dizer que
fossem românticos, nem sentimentais, nem realistas, nem
nada. Eram livros de uma pessoa jovem, que tinha lido muito e
que não tinha ainda critério nem vivência
para fazer algo tão pretensioso.
Folha: Gostaria que o sr. falasse um pouco sobre a realização
de "A Invenção de Morel''. Como surgiu a história,
como se estruturou?
Bioy Casares: Como em todas as histórias que eu
faço, me veio primeiro a idéia do relato. Eu o fui
construindo, contei-o a mim mesmo e depois, quando o escrevi,
tentei não cometer erros. Eu não aspirava ao acerto,
mas a não cometer erros. Por isso cometi o erro de escrever
com frases muito curtas. Porque eu achava que nas frases longas
havia mais possibilidade de me equivocar. Mas uma sucessão
de frases curtas não é muito agradável. É
o que se chama um estilo de "pão cortado''. Esse estilo
é o estilo de "A Invenção de Morel''.
Folha: Enquanto escrevia, o sr. mostrava os rascunhos a Borges
ou a Silvina Ocampo?
Bioy Casares: Não, não mostrei a ninguém.
Quando o concluí, mostrei a Borges. Ele gostou e por isso
escreveu o prólogo.
Folha: E como o sr. vê o fato de que só hoje,
quase meio século depois de "A Invenção
de Morel'', a tecnologia, com a chamada "realidade virtual'',
aproxima-se do prodígio imaginado no romance?
Bioy Casares: Isso me surpreendeu muito. Encontrei
pessoas que me dizem que sou como que um chefe desse movimento,
mas na verdade não tenho nenhuma opinião a respeito.
Não sei muito bem o que é isso de realidade virtual
e não tenho maior interesse em saber.
Folha: De todo modo, parece-me que seu interesse ao escrever
o livro não era tanto científico, mas lógico,
e até metafísico. E o mesmo se pode dizer de seu
romance seguinte, "Plan de Evasión''.
Bioy Casares: Sim, é verdade. E "Plan
de Evasión'', eu imaginei como um romance que fosse publicado
quase ao mesmo tempo que "A Invenção de Morel''.
Mas, como sou muito lento para escrever, publiquei-o três
anos depois.
Folha: Costuma-se dizer que o filme "O Ano Passado em
Marienbad'', de Alain Resnais, é inspirado em "A Invenção
de Morel''. O que o sr. acha do filme e sobretudo do fato
de que deixou de lado toda explicação do mistério?
Bioy Casares: Eu temia que o filme me parecesse pior do
que me pareceu. Na verdade, achei o filme bastante bom, mas não
me interessou demasiado. Li, com gratidão, que Alain Resnais
disse que meu livro lhe havia sugerido o tema, mas não
reconheço muito o livro no filme. Nunca cheguei a falar
com Resnais, infelizmente.
Folha: Como o sr. concebe, desenvolve e escreve suas histórias?
Bioy Casares: Estou conversando com uma pessoa, ouvindo
o que ela me diz e, de repente, sinto que ali há a possibilidade
de uma história. Guardo aquilo na memória. Depois,
conto esta história primeiro para mim mesmo, em seguida
para uma amiga...
Folha: Sempre uma mulher?
Bioy Casares: Quase sempre. Depois disso, se me dou por
satisfeito, escrevo. Até então, não escrevo
nada, mas vou resolvendo mentalmente os problemas da narração.
Claro que, quando começo a escrever, percebo que há
outros problemas ainda não resolvidos, que me tomam mais
tempo de reflexão.
Folha: O sr. diz, em suas memórias, que ainda quer escrever
alguma coisa sobre Borges, para "corrigir erros que se cometeram
sobre ele''. Que erros seriam esses?
Bioy Casares: Não tenho idéia. Essa frase
me assombra, parece que foi dita por outra pessoa.
Folha: Mas está aqui, no seu livro "Memorias'',
página 115.
Bioy Casares - Sim, não estou duvidando. É que não
me lembro de havê-la escrito. Que vergonha (risos). Bem,
acho que as pessoas simplificam Borges, vêem-no como uma
pessoa desumanizada, que não gostava da vida. Não
é verdade. Borges era uma pessoa que gostava de rir, era
muito alegre e tinha também uma grande tristeza no fundo
da alma, por dramas pessoais, seguramente. Não era nada
inumano, Borges. Pelo contrário, era muito humano.
Folha: O sr. já disse que Borges vivia apaixonado pelas
mulheres. Mas eram sempre amores platônicos ou os realizava?
Bioy Casares: Sobre essas coisas, não sei. Borges
e eu não tínhamos confidências dessa ordem.
Mas sei que esteve muito apaixonado, que amou mulheres e que por
elas esteve desesperado. Parece que a sua vida amorosa foi muito
infeliz.
Folha: Ao contrário da sua. Como o sr. resumiria as
afinidades e diferenças entre o sr. e Borges?
Bioy Casares: Não sei o que dizer. Sei que ele influiu
sobre mim e que eu influí sobre ele. Tivemos boas influências
recíprocas. Em seus primeiros livros, ele escrevia de um
modo barroco, enquanto eu predicava a simplicidade, e Borges acabou
escrevendo num estilo muito simples. E a mim, ele ensinou muitíssimas
coisas. Quando estivemos juntos no campo, para escrever um folheto
sobre iogurte (foi nosso primeiro trabalho em parceria), falávamos
de literatura, e eu ainda acreditava no surrealismo, na liberdade
absoluta, e Borges me respondia que a liberdade estava limitada
pela inteligência, que havia que controlar as coisas, e
não deixá-las transbordar. Graças a esses
conselhos, pude escrever os livros que escrevi.