MARGUERITE DURAS ANALISA O CRIME


Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 29 de abril de 1972

Neste texto foi mantida a grafia original

Marguerite Duras só se tornou mundialmente famosa quando escreveu o roteiro cinematográfico "Hiroshima Meu Amor", que foi rodado sob a direção de Alain Resnais. Porém, desde antes da guerra, depois de ter se formado em Direito, Marguerite já escrevia, principalmente romances. A partir de 1945, ligou-se a todos os movimentos da esquerda intelectual e tornou-se membro do partido comunista do qual foi expulsa em 1955, devido às suas divergências. Sua obra, influenciada por sua atuação política, transforma-se: ela se dedica à psicologia de seus personagens, deixando a intriga para um segundo plano. São desta época os romances "Moderato Cantabile", "O Vice-Consul", "O Marinheiro de Gibraltar", e outros. Marguerite Duras, mais tarde, tornou-se, ao lado de Alain Robbe-Grillet e Michel Butor, uma das principais integrantes do movimento literário criador do "nouveau roman". Escreveu diversas peças e teatro, mas a sua consagração, neste campo, aconteceu com "Os Amantes de Viorne" ("L'Amante Anglaise"). Este têxto foi baseado em um assassinato real, acontecido em Viorne, na França, e praticado por Claire Lannes uma pacata dona de casa. Nesta entrevista, Marguerite Duras explica como escreveu "Os Amantes de Viorne" e dá sua opinião sôbre o casamento e as relações da classe-média em geral.

O que a senhora pretende ao escrever "Os Amantes de Viorne"?


Marguerite Duras — Eu procuro quem é essa mulher, Claire Lannes. Ela cometeu um crime, não deu nenhuma explicação para esse crime. Então eu procuro essa explicação...

O que é que a senhora sabe sôbre ela, sôbre seu crime?


Marguerite Duras — Há vinte anos Claire morava em Viorne, desde o seu casamento com Pierre Lannes. Eles moravam na Rue de la Paix. Ela nunca teve filhos, nunca trabalhou. Pierre Lannes era duas vêzes aposentado: como militar e como funcionário da estrada de ferro. Dizem que êle era muito miserável. Claire Lannes deu-lhe uma cacetada na cabeça, enquanto êle estava lendo o jornal. Depois, com uma machadinha de cozinha, cortou-o em pedaços. O primeiro pedaço foi descoberto no dia 30 de dezembro de 1949, em um trem. Os outros pedaços foram aparecendo em outros trens, nos mais variados pontos da França. A primeira delegacia de Paris, que dirigia as investigações, acabou descobrindo que os trens que carregavam esses pedaços do corpo humano passavam todos, não importando seus destinos, pelo Viaduto da Montanha, em Viorne. Quando Claire se viu frente a frente com a policia, confessou imediatamente o seu crime. Mas nunca deu explicação nenhuma. O relatório da policia, depois de ter interrogado os vizinhos de Claire Lannes, concluia que a acusada parecia ter atingido o "mais alto grau da aversão humana" quando cometeu o crime. Ela foi condenada a cinco anos de prisão. Parece que voltou a Viorne depois de ter sido sôlta. Há dois anos foi vista novamente na cidade. Estava esperando o ônibus na rodoviária.

Por que na sua versão da história, Claire Lannes mata a sua prima-irmã surda-muda de nascimento?


Marguerite Duras — Porque eu queria saber quem foi Pierre Lannes e ter o seu testemunho sôbre a mulher. Tirei-o do túmulo para que fôsse ouvido por todos, pelo menos uma vez na vida. Êle, também, era surdo-mudo, assim como a vitima: êle representava. Êle é a pequena burguesia francesa, morta viva assim que chega na idade de "pensar". Assassinada pela herança ancestral do formalismo. No lugar desta "pedra", fiz Claire Lannes matar uma verdadeira surda-muda. Aliás, se ela soubesse dar suas razões, constatariamos que eram as mesmas, fôsse o crime êste ou aquêle, pois na realidade o que ela matou foi a própria morte.

A senhora não acha que esta burguesia poderá ficar chocada com os sinais exteriores do crime de Claire Lannes?


Marguerite Duras — Isto nunca seria razão suficiente para escondê-los. A burguesia sempre fica horrorizada pelo sangue quando a gente fala nêle. Essa burguesia vai passar férias sob o sol da Grécia dos coronéis que assassinam os "subversivos" nas suas prisões, bem fechadas, sem deixar marcas de sangue. Mas falar do crime de Claire Lannes lhe dá ânsias. Acredito que os Lannes eram proletários. Rebaixei-os à condição de burgueses, para que seus pares se reconheçam nêles. Falo de Pierre Lannes. Claire Lannes, devido à sua loucura e ao crime que ela cometeu, é uma desclassificada. Êsse crime existiu, ninguem o inventou. As pessoas podem escolher entre tomar ou não conhecimento dêle. É só escolher.


Quem frequentava a casa dos Lannes?


Marguerite Duras — Ninguem. Na vida das cidades pequenas, ninguem vai a casa dos outros. Só a familia. O que não impede que todos saibam de tudo sôbre todos
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Como a senhora vê Pierre Lannes?


Marguerite Duras — Êle teve ambições politicas. Apresentou-se para vereador em Viorne. Não foi eleito e isto foi uma grande decepção para êle. Se êle tivesse tido instrução suficiente e os meios financeiros necessários, Pierre Lannes teria se candidato a deputado pelo partido dominante. Provavelmente teria sido eleito. Eu o vejo nacionalista, sentimental, legicista, falso, dissimulador: o perfeito jesuita
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Como a senhora vê Claire Lannes?


Marguerite Duras — Sentada no banco do jardim. Erecta. Fixa. Entregue aos seus pensamentos contraditorios. Ela fazia tudo em casa, matando, Claire Lannes manda a casa para os ares, devolvendo-a ao seu destino.


O que é que a senhora sabe sôbre o passado de Claire Lannes, antes dela ir para Viorne?


Marguerite Duras — Quase nada. Ela nasceu e viveu em Cahors. Era filha de comerciantes muito ricos. Era muito dada a aventuras. Depois, encontrou o guarda de Cahorse, então, conheceu o "amor feito para durar sempre". O fato dêste amor não ter continuado nas sua manifestações é secundário
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Pierre Lannes envergonha-se de sua mulher?


Marguerite Duras — Devia recear muito que os estranhos a considerassem louca. A loucura, assim como a sifilis, são causas de vergonha para os burgueses. A noite, êle costumava ir ao bar Le Balto. Claire ia com êle. Era amigo do dono e ela de Alfonso Rigieri, um operário agricola, de origem italiana, considerado um tanto retardado, mas que era amigo dela. Alfonso era o único que sabia escutar o que Claire Lannes contava
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O que ela contava?


Marguerite Duras — O que ela via na televisão. Dez coisas ao mesmo tempo. Era uma enxurrada de palavras. E, de repente, o silêncio
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Ela nunca falava da vida das pessoas de Viorne?


Marguerite Duras — Não. Só do que ela acreditava ter lido no jornal ou visto na televisão. Nunca fazia reflexões sôbre a vida
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A senhora acredita que existiu relações entre Alfonso e Claire?


Marguerite Duras — Só sei o que êle disse: que há dez anos atrás êle sentiu alguma coisa por ela e que se não fosse o Pierre, com quem mantinha boas relações, a teria levado para viver com êle em seu barraco
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Ele sentiu remorsos por não ter feito isso?


Marguerite Duras — Êle não falou em remorsos. A noite, Alfonso e Claire passeavam por Viorne. Ninguém na cidade sabia
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A senhora acha que o que existia entre os dois era amor?


Marguerite Duras — Como se pode chamar a uma simpatia tão grande? Mas essa pode tomar tantas outras formas..
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Quais por exemplo?


Marguerite Duras — Uma cumplicidade secreta que leva a ações noturnas - sabotagens por exemplo - terrorismo localizado
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Alfonso sabe que Claire Lannes matou o marido?


Marguerite Duras — É impossivel saber ou resolver. O processo só fala em passeios noturnos "tranquilos" em Viorne. Tenho certeza que Alfonso sabe qualquer coisa a êste respeito. Só não sei o que. Êle é daqueles homens que ficam calados porque vivem apavorados pela policia, que prezam a liberdade acima de tudo. Trabalha só para comer. Não amam o dinheiro e levam a vida na mais completa pobreza. Cantam operas italianas e depois, um dia, são encontrados mortos pelo frio, no meio da floresta
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