LÉVI-STRAUSS VOLTA A PENSAR NO BRASIL

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 3 de outubro de 1993


Antropólogo faz livro de fotos sobre sua visita ao país e defende direito dos índios à terra

Bernardo Carvalho
Enviado especial a Paris

Mal acaba de abrir a porta de seu apartamento, Claude Lévi-Strauss vira-se e pergunta se havia um partido fascista no Brasil na época de Getúlio Vargas. A razão da pergunta é simples: uma foto feita pelo próprio antropólogo durante expedição que fez a Santa Catarina em sua primeira visita ao Brasil em 1935. A foto mostra um garoto integralista, vestido de preto, com o braço esticado em saudação fascista para a objetiva. Lévi-Strauss quer saber o nome do movimento. Precisa desse tipo de informação para as legendas de um livro que está organizando com suas fotos realizadas no Brasil. O trabalho começa a amolar o antropólogo, hoje com 84 anos. Esteve no Brasil entre 1935 e 1936, quando veio ocupar uma das primeiras cadeiras de sociologia da recém-criada Universidade de São Paulo. Voltou em 1938, para sua célebre expedição ao Brasil Central e ao "país" dos nhambiquara. Dessas viagens restam-lhe três mil negativos, que incluem imagens de São Paulo (capital e interior) e das expedições, algumas publicadas no clássico "Tristes Trópicos". Após a entrevista, Lévi-Strauss vai buscar o álbum com algumas das ampliações sobre as quais zela como se fossem preciosidades arqueológicas. Há imagens de São Paulo, hoje irreconhecíveis. "Acho que esta é a continuação da avenida São João ainda não terminada. Esta aqui é o viaduto do Chá e o hotel Esplanada. Ele ainda existe?", pergunta o antropólogo. Lévi-Strauss é responsável por uma das obras mais importantes do pensamento contemporâneo. A série "Mythologiques", onde faz uma análise estrutural dos mitos indígenas da América, foi concluída há dois anos com a publicação do último volume, "História de Lince", lançado no Brasil no mês passado pela Companhia das Letras. O livro mostra, entre outras coisas, como a ideologia de diversas tribos ameríndias incorpora o estrangeiro a seus mitos, o que torna essas sociedades vulneráveis, podendo ocasionar sua destruição. Sobre os ianomâmis e os ameríndios em geral, diz que é importante devolver-lhes uma parte, ao menos, do território que lhes foi tomado. Em seu último livro, "Regarder, Écouter, Lire" (a ser lançado no Brasil, ainda sem data prevista, pela Companhia das Letras), Lévi-Strauss analisa música, pintura e literatura. Vai de Poussin a Rimbaud, passando por Rameau e André Breton, entre outros. Em sua estética, o antropólogo defende pontos de vista considerados em geral conservadores e aponta suas armas sobretudo contra Diderot e a arte moderna não-figurativa. Mas há algo de radical mesmo nessa estética conservadora: para o autor, a arte simplesmente não existe mais.

Folha — Por que o sr. decidiu concluir sua reflexão sobre o pensamento mitológico com "História de Lince"?


Claude Lévi-Strauss Era preciso decidir concluir em algum momento. Pensei que, se tinha conseguido mostrar alguma coisa sobre os mitos, o trabalho já tinha sido feito. Por que "História de Lince" em particular? Porque era um dossiê complicado, que eu carregava há muito tempo, mas tinha sempre deixado fora de meus livros, porque justamente colocava certos problemas de natureza muito específica que me teriam feito perder o fio da argumentação nos trabalhos anteriores. Era, portanto, o que chamamos em inglês "an unfinished business". Para fechar a minha reflexão era preciso não haver mais essa lacuna, que era evidente. Várias vezes, na série das "Mythologiques", tinha me referido a esse problema sem realmente tratá-lo.

Folha — A ideologia bipartida, o pensamento duplo dos ameríndios, que o sr. trata em "História de Lince", é o que permite a integração do inimigo entre os povos indígenas da América. Seria um germe suicida dessas sociedades?


Lévi-Strauss É um problema imenso. É evidente que os ameríndios tinham, em seu sistema de pensamento, um lugar livre para o que não era ameríndio precisamente. Tudo depende então do que pode surgir para preencher esse lugar vazio. É uma divagação, mas poderíamos imaginar muito bem que, quando os espanhóis e os portugueses chegaram ao México, ao Peru e ao Brasil, tivessem outras intenções. Poderíamos imaginar uma grande aliança que se teria produzido no século 16 entre os Habsburgos e os Astecas. Se tivesse havido tal aliança, ela teria mudado a face do mundo.

Folha — O relativismo antropológico, do qual o sr. é um fundador...


Lévi-Strauss De jeito nenhum. Não sou fundador do relativismo antropológico. Ele existe desde Montaigne.

Folha — De qualquer jeito, o relativismo antropológico não teria reproduzido nas sociedades ocidentais contemporâneas um pensamento análogo, uma estrutura equivalente hoje à ideologia bipartida dos ameríndios, uma vez que propõe a co-habitação com culturas exteriores?


Lévi-Strauss Alguns podem fazê-lo e pensar dessa forma talvez. Mas não iria tão longe. Para mim, o relativismo cultural não tem um conteúdo positivo. É simplesmente a constatação de que não dispomos de nenhum critério absoluto para julgar uma cultura em relação a outra. Eu me atenho diante dessa incapacidade. Não tento substituí-la por algo positivo, como seria a doutrina da Unesco, por exemplo.

Folha — O sr. acha que o relativismo cultural corre perigo hoje com essa retomada das identidades nacionais?


Castoriadis De jeito nenhum. É natural eu diria quase o dever moral de cada cultura tentar continuar sendo o que é, preservando sua identidade.

Folha — Ao final de "Regarder, Écouter, Lire", o sr. diz que havia, entre tribos ameríndias, "mulheres criadoras" inspiradas pelos deuses. Uma idéia semelhante à noção romântica do gênio artístico, à forma como vemos os artistas e a arte nas sociedades ocidentais. O sr. acha que essa noção ocidental da arte existia já entre os povos ameríndios?


Lévi-Strauss Não podemos generalizar os ameríndios. As populações podem ser tão diferentes entre si quanto cada um de nós. Essa idéia existia incontestavelmente entre certos grupos. Particularmente as sociedades da costa oeste do Canadá, que eram sociedades um pouco à parte, por serem fortemente hierarquizadas não apenas do ponto de vista social mas econômico. Havia nobres, pessoas comuns, escravos, ricos e pobres. Para esses ricos, os artistas não eram muito diferentes do que foram na Itália durante o Renascimento e mesmo em contextos mais próximos de nós. Mas não podemos generalizar. Se você toma, por exemplo, os tinglit, do Alasca, e os tsimshian, da Columbia Britânica, os primeiros consideravam, com razão, que os segundos eram grandes artistas. Faziam encomendas de esculturas aos tsimshian, que iam até os tinglit para construir monumentos.

Folha — No mesmo livro, o sr. diz que só a progressão da história da arte mostra que algo aconteceu entre os homens, que houve uma civilização. Essa idéia não desvalorizaria a noção de arte e mito entre os índios, uma vez que, nesse caso, não há progressão?


Lévi-Strauss Você poderia generalizar mais uma vez o problema e dizer que se trata da questão dos povos com ou sem história, mas sempre me manifestei contra essa concepção. Nossa diferença em relação aos ameríndios ou aos melanésios ou africanos de outrora é que não damos a mesma importância, o mesmo lugar à história. Esse juízo que fiz é evidentemente subjetivo, o juízo de um membro de uma sociedade e civilização. Não estou generalizando, estou me referindo à arte na minha civilização.

Folha — Hoje, no Brasil, há um problema grave em relação à demarcação das terras indígenas. Há massacres de índios, como os ianomâmis. Há um conflito de interesses entre índios, militares, garimpeiros. Ao mesmo tempo, toda a sociedade brasileira está em estado de guerra civil. A polícia mata cidadãos a sangue frio, em suas próprias casas. Como defender a questão dos índios dentro desse contexto? Por que eles devem ter um status privilegiado em relação ao resto da sociedade?


Lévi-Strauss São problemas para os brasileiros. Dizer que demarcar as terras dos índios é lhes dar um direito excepcional me parece completamente contrário à realidade. Só há um meio de tentar remediar o enorme mal que lhes foi feito no momento da colonização, quando foram exterminados por meios diretos ou indiretos. É preciso lhes devolver uma parte, ainda que pequena, do que foi o território deles, isto é, a totalidade do continente. Se eu tivesse o poder, devolveria aos índios o máximo que pudesse, mas ao mesmo tempo reconheço que, do ponto de vista brasileiro, há problemas. Trata-se de um grande país, que tende a se modernizar até o seu interior mais profundo. Não tenho também argumentos decisivos a propor.

Folha — O que o sr. pensa das idéias ecológicas, que se tornaram fortes em todo o mundo e de particular importância em países como o Brasil?


Lévi-Strauss Sou a favor e de uma maneira tão extrema, que acaba se tornando puramente teórica. O que norteia o pensamento ecológico é que ele proclama a vontade de defender solidariamente a natureza e o homem. Defender a natureza para as necessidades e dentro dos interesses do homem. Estou convencido de que as coisas são profundamente contraditórias. Se tivesse que tomar posições ecológicas, diria que o que me interessa são as plantas e os animais, e danem-se os homens. É óbvio que se trata de uma posição indefendável, por isso guardo-a para mim.

Folha — Na introdução de "História de Lince", o sr. diz que é a ciência que faz o mito reviver hoje, que é pelos paradoxos científicos que vemos o equivalente do pensamento mítico nas sociedades contemporâneas. Mas a ciência não seria antes o contrário da mitologia?


Lévi-Strauss Claro. Ela é o contrário da mitologia. Nunca quis desvalorizar o pensamento científico, que respeito profundamente. Não falei da ciência mas da maneira como os cientistas tentam fazer os leigos compreenderem o trabalho científico e como os leigos apreendem o que se passa na área da ciência. Atribuo um parentesco entre essa passagem de conhecimento e o mito. Não se trata da ciência tal qual os cientistas a praticam.

Folha — O sr. sempre tomou o partido da ciência mas, na releitura de Montaigne que faz em "História de Lince", mostra também suas distâncias em relação a uma fé no conhecimento. O sr. se tornou mais cético em relação à ciência?


Lévi-Strauss A lição que tirei de Montaigne é que estamos condenados a viver e pensar simultaneamente em vários níveis e esses níveis são incomensuráveis. Há saltos existenciais para se passar de um a outro. O último nível é um ceticismo integral. Mas não se pode viver com um ceticismo integral. Seria preciso se suicidar ou se refugiar nas montanhas. Somos obrigados a viver ao mesmo tempo em outros níveis em que esse ceticismo está moderado ou totalmente esquecido. Para fazer ciência é preciso fazer como se o mundo exterior tivesse uma realidade e como se a razão humana fosse capaz de compreendê-lo. Mas é "como se".

Folha — Cada vez mais, questões que eram tratadas pelas ciências humanas, pela sociologia, pela psicanálise, ganham respostas e soluções pela biologia, pela neurobiologia etc. O sr. acha que outros discursos científicos, mais precisos, estão tomando o lugar das ciências humanas?


Lévi-Strauss Isso sempre aconteceu na história da ciência. Continua acontecendo de uma forma muito lenta e restrita. Estou convencido de que muito de nossas pesquisas, da psicologia, da sociologia, são modos provisórios de apreender fenômenos que tratamentos mais sérios vão acabar solucionando. Auguste Comte já tinha dito isso antes de mim.

Folha — O sr. diria então que ciências como a antropologia podem desaparecer de uma hora para a outra?


Lévi-Strauss Não podemos desaparecer, porque não somos uma ciência (risos). A biologia e a neurobiologia poderão explicar muitas coisas que a antropologia estuda há anos. Por exemplo, quando compreendermos exatamente o que é a linguagem, compreenderemos muita coisa que não entendemos da cultura. Mas a antropologia continuará a existir. Quando todos os povos exóticos que a antropologia estuda tiverem desaparecido, não fisicamente mas a partir do momento em que entrarem no curso da civilização mundial, forem assimilados, teremos em relação a eles um ponto de vista equivalente ao que mantemos hoje com a civilização egípcia, os gregos ou os romanos. Trabalharemos sobre documentos. A massa de documentos antropológicos existente e ainda virgem é absolutamente fabulosa. Há material para vários séculos de estudo.

Folha — O sr. escreveu em "Regarder, Écouter, Lire" que há momentos na história da arte em que a qualidade estética diminui quando crescem o saber e a habilidade técnica. É o que acontece hoje?


Lévi-Strauss Não. Quando escrevi isso, estava pensando na história da tapeçaria. A mais bela tapeçaria que conhecemos é a dos séculos passados em que o tapeceiro dispunha de um número limitado de cores. Esse número de cores só aumentou nos séculos 18 e 19. Ao invés de cem cores, hoje temos 10 mil ou 100 mil. A qualidade se enfraquece. O problema da arte moderna, ao menos nas artes plásticas, não é um enriquecimento dos meios técnicos mas, ao contrário, um considerável empobrecimento. Isso é verdada as artes plásticas, mas não para a música, que se torna cada vez mais erudita. Não gosto nem um pouco da música contemporânea mas reconheço que ela é extremamente erudita.

Folha — Para que serve a crítica de arte hoje?


Lévi-Strauss Desde sempre o papel da crítica é tanto traduzir, por meios literários, a emoção do espectador diante da obra, quanto tentar compreender justamente as razões e os mecanismos dessa emoção. O problema é que acho que não existe mais arte hoje. Há alguns modos de expressão, que continuamos chamando por nomes tradicionais, pintura, música, literatura, mas creio que sejam outras coisas. Não são mais as mesmas artes.

Folha — O sr. escreveu que a grandeza de Poussin vem em parte do "segundo grau" —é um pintor que pinta a partir de maquetes, por exemplo, e não diretamente da realidade. Não seria exatamente uma exacerbação desse "segundo grau", um esquecimento do real, o problema da arte hoje, com o pós-modernismo, a arte como um "segundo grau" de si mesma?


Lévi-Strauss Você está misturando duas coisas. O fenômeno da criação de uma forma profunda, como em Poussin e outros, e o fenômeno epidérmico a que você faz referência. A grandeza de Poussin vem do fato de ele ser um gênio e não de outra coisa. Mas isso não é suficiente para explicar a obra. É preciso saber como funciona a obra e o gênio. O "segundo grau" permite compreender o modo como ele trabalha e o tipo de emoção que sentimos diante de seus quadros. Diante de uma tela de Poussin, temos a impressão de estarmos na frente de um pequeno teatro. Essa impressão vem da maneira como o quadro é composto. Mas não basta isso para fazer um grande quadro.

Folha — O sr. define a arte moderna não-figurativa como um naufrágio. Por que a questão do realismo e da verossimilhança lhe interessa tanto?


Lévi-Strauss O mundo é de uma tal riqueza e estamos tão longe de esgotar todas essas virtualidades, que me parece ingênuo querer criar fora disso. Quando vejo um quadro não-figurativo, penso que ele é sempre menos belo que o espetáculo não-figurativo que me oferece a natureza, sob a forma de um cristal, um jogo de luz etc.

Folha — O sr. trata também da representação do sobrenatural em Poussin. Aonde foi parar o sobrenatural na arte contemporânea? O sr. acha que a representação do sobrenatural ainda existe na arte?


Lévi-Strauss Quando falei do sobrenatural em Poussin, estava me referindo a suas paisagens. Uma paisagem de Poussin não parece com as de Pisarro ou Sisley. É uma paisagem monumental, que é mais bela que qualquer paisagem real que possamos observar.

Folha — Mas o sr. analisa a representação da morte e do sobrenatural em Poussin também, com a imagem do crânio, por exemplo. A arte abstrata hoje não poderia ser a representação desse sobrenatural, do invisível, no mundo contemporâneo?


Lévi-Strauss Deixo essa questão aos amantes da arte abstrata.

Folha — Por que o sr. despreza a fotografia?


Lévi-Strauss Digamos que isso vem de uma pequena exasperação diante dessa espécie de veneração da fotografia que vimos aparecer há alguns anos. Fiz milhares de fotografias ao longo de minha vida. Algumas são bastante belas. Mas não se deve exagerar. A mais bela fotografia não existirá jamais diante de um belo quadro. Esse meu desprezo foi mais um movimento de mau-humor.

Folha — O sr. está trabalhando num livro de fotografia sobre o Brasil?


Lévi-Strauss Trabalhando é exagero. Quero selecionar de três mil negativos que fiz durante minha estada no Brasil cerca de 200 ou 300 fotos e publicá-las de maneira mais apresentável do que em "Tristes Trópicos". São fotos de expedição e muitas da cidade de São Paulo, que não consigo mais situar. Manuela Carneiro da Cunha teve a gentileza de me trazer mapas de São Paulo da época para que eu consiga localizar onde essas fotos foram feitas. É muito difícil. Temo que essas imagens tenham perdido o interesse. Não consigo dar início ao trabalho. Elas me chateiam.

Folha — O sr. acredita que todas as artes podem ser interpretadas pelo estruturalismo, pela linguagem, que toda arte é linguagem?


Lévi-Strauss Em todas as artes há autores e obras que se prestam melhor a uma análise estruturalista e outros que são, digamos, mais rebeldes. Se me pedissem para fazer uma análise estrutural de "Em Busca do Tempo Perdido", acho que me veria em maus lençóis. Não digo que seja impossível, mas seria uma tarefa imensa.

Folha — O sr. disse numa entrevista recente a Catherine Clément que todos os autores de verdade, em arte, são estruturalistas.


Lévi-Strauss Não me lembro de ter dito isso. Creio que uma das formas de interpretar e compreender a criação artística é abordá-la sob o ângulo estruturalista. Mas não me lembro de ter dito que todos os verdadeiros autores são estruturalistas. Você me desculpe eu lhe dizer isso, mas quando dou uma entrevista respondo qualquer coisa (risos).


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