"ELA ERA UMA DISCORDÂNCIA TOTAL"
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Publicado
na Folha de São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1978.
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Octávio Ribeiro encontrou João Antônio no Rio. Aquele, autor de
"Barra Pesada" - seu primeiro livro, até agora - e este, autor
de "Leão de Chácara", "Malagueta, Perus e Bacanaço". "Lambões
de Caçarola", "Casa de Loucos", "Malhação de Judas Carioca" e
"Calvário Torres de Pingente Afonso Lima Almeida Barreto". O assunto
dos dois: Clarice Lispector, recentemente falecida, e o drama
do escritor num país de analfabetos.
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Octávio - Há quanto tempo você conhecia Clarice Lispector, heim,
João Antônio?
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João Antônio - Olha, eu conhecia
a Clarice Lispector desde 1963 quando ela lançou, incrivelmente
só, naquela época, a segunda edição de "Perto do Coração Selvagem",
em São Paulo, na Livraria Francisco Alves, rua Líbero Badaró, numa
noite. Nessa época era uma mulher de uma beleza inquietante, uma
beleza muito pessoal, muito marcada, singular, uma beleza quase
selvagem. Ela tinha uma beleza loura e ao mesmo tempo meio tomada
de certa tropicalidade. E, ao lado disso, uma escritora que tinha
essa mesma personalidade escrevendo. Quer dizer, talvez tenha sido
uma das grandes escritoras brasileiras e quem sabe do mundo todo,
principalmente hoje, por ser uma das mulheres de escritura mais
feminina.
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Octávio - Na sua opinião qual foi o melhor livro dela?
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João Antônio - Bom, o grande livro da Clarice,
a meu ver, é o "Laço de Família", uma coletânea de contos... Porque
se a Clarice foi uma artista fazendo romance, ela era muito mais
artista fazendo conto. Veja bem, o conto pra ela cabe como uma luva,
devido a uma coisa que ela tem, impressionante, que é ai um conceito
meu, sei lá, é que o conto exige uma forte personalidade e um poder
de captação muito grande de um clima específico de um clima determinado
e isso acho que Clarice pega como ninguém. Clarice sabe, por exemplo,
transformar uma galinha, uma simples galinha de domingo, num personagem
cósmico, quer dizer, num personagem de dimensões inquietantes, como
é propriamente o conto "Uma Galinha", que foi um dos primeiros trabalhos
que eu li dela, juntamente o "Crime do Professor de Matemática",
na antiga revista "Senhor". A revista que, praticamente, revelou
a Clarice para o grande público, porque era uma escritora que estreou
com 19 anos. E é bom que se diga que a primeira editora à qual ela
se apresentou, a José Olympio, não quis editar o seu livro, mas
foi a editora que disputou o último livro dela, que é a "Hora da
Estrela". A obra da mulher era tão forte, era tão independente,
que ninguém queria se arriscar. Porque editor é assim no Brasil,
né? Editor só quer jogar na certa. Ele só quer jogar no Jorge Amado
da vida, enfim nos nomes que estão aí na onda.
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Octávio
- Além do Jorge Amado, quais?
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João Antonio - Érico Veríssimo, atualmente, mais essa
turma mais conhecida, um Wander Piroli, entende? Um Márcio Sousa,
que são esses cartas que estão vendendo aí, um Carlos Eduardo Novais,
são homens que têm editoras sem nenhum problema, entende? Mas, na
verdade, os editores só querem jogar é realmente em jogadas certas,
eles não querem investir em autor nenhum, está entendendo? E quando
investem, investem mal, essa é que é a verdade.
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Octávio - Exemplo.
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João
Antônio - Olha, Sérgio Santana, Raduan Nassar. Mas tem
um bando de autores aí, da maior importância. Manuel Lobato, por
exemplo, Osvaldo França Júnior, que se fossem lançados condizentemente
com a obra deles, pô, esses caras estariam vendendo tremendamente.
Um próprio exemplo, o Aguinaldo Silva. E não pega por falta de editoração
conveniente, de divulgação, de boa distribuição, de uma política
de preços compatível com o livro, enfim, de uma atitude profissional
do editor diante do trabalho escrito. Os editores não percebem que
a coisa mudou, que o tempo é outro, que é preciso entrar pela televisão,
que é preciso se agilizar, que é preciso colocar propaganda até
no meio da estrada, que é preciso popularizar o livro. Eles estão
falando tanto em democratização, redemocratização, vamos começar
pela cultura? Olha uma boa sugestão aí. Começar essa tal dessa abertura
e redemocratização pela cultura, está entendendo? Porque você vê
o seguinte, que hoje os nossos estudantes de letras e comunicação
não estão estudando os autores nacionais como deveriam, desconhecem
quem são esses autores, e param em José de Alencar e Machado de
Assis, essa é que é a verdade. Então, esse grande mercado que poderia
ser o público estudantil, principalmente universitário, fica abandonado,
fica deixado pra lá. Se você chegar numa escola de letras, hoje,
e perguntar quem é o Rubem Fonseca, os caras vão pensar que é algum
jogador de futebol. A coisa está escandalosa mesmo. E outra coisa,
esse ensino de literatura tem que levar uma modificação porque,
realmente está um ensino que não tem nada que ver com a nossa realidade.
Ele não tem nada que ver. Ele está se baseando em modelos estrangeiros.
Quer dizer, tudo isso é uma política contra o autor nacional. Isso
representa, no fundo, um pacote, uma bateria de coisas contra o
autor nacional.
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Octávio - Agora, voltando à Clarice Lispector, conta um pouco as
caminhadas dela pelas editoras.
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João
Antônio - Bom, Clarice, coitada, ela sempre foi, devido
à própria natureza dela, uma criatura muito tímida, e isso inclusive
dava uma aparente visão de que ela fosse uma pessoa muito altaneira,
muito orgulhosa, e tal. Mas era muito tímida. Clarice era uma mulher
que tinha dificuldades de expressão verbal, quer dizer, ela tinha
dificuldades de pronúncia de certas palavras, por exemplo, tinha
o problema da língua presa, que ela nunca quis operar, porque o
médico disse que doía muito. Veja bem, que médico foi esse.
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Octávio - Ela falava como?
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João
Antônio - Ela tinha uma dificuldade geral de expressão,
ela tinha um "R", o "R" dela saia todo torto, saia todo pegando
e tal e coisa, além disso era muito tímida. Então, ela foi devidamente
usada por esses editores, está entendendo? Ela chegou até a ver
livros editados em segunda edição sem que se dissesse nada pra ela,
está entendendo?
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Octávio - Mas quais os livros?
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João Antônio - Por exemplo, a "Imitação
da Rosa". Quando saiu a segunda edição, ela foi encontrar já no
mercado e aí é que ela foi telefonar pro editor. Até ficou muito
danada, porque ela queria modificar alguns contos e também estava
pensando até noutro título para o livro. Além do que, um conto da
Clarice que foi pra antologia chamada "Literatura Brasileira em
Curso", que hoje está em sétima edição e é de Bloch Editores, até
hoje Clarice não recebeu um tostão por aquilo. Fora os editores
que arrumavam negócios para ela publicar noutros países e enquanto
ela ia, ganhar duzentos dólares, eles iam ganhar 250 dólares, entende?
Foi o caso de uma edição que arrumaram pra ela com a Bertran, em
Portugal. E não somente isso, por exemplo, há o farisaísmo generalizando
em torno de Clarice, a verdade é essa. Clarice chegou a ser demitida
de jornal e depois tida e havida assim como uma pessoa incompetente,
uma pessoa que não sabia escrever, está entendendo? Então saiu com
uma mão na frente e outra atrás, sem indenização, sem coisa nenhuma.
Bom esses mesmos jornais, no dia de sua morte, expuseram em página
toda, o verdadeiro "marketing" da morte de Clarice, quer dizer,
porque depois de morta dona Clarice iria vender jornal. Tem outro
negócio aí, estão preparando um 'boom" literário brasileiro, que
vai ser um movimento postiço, feito da Europa pra cá, ou de Nova
York pra cá. Ou vem via Paris, ou vem via Barcelona, ou vem via
Nova York, essa é a verdade. Então Clarice, que durante a vida foi
esquecida, e tal, vivia aí no Leme, na Gustavo Sampaio, aí, abandonada,
de repente ela está sujeita a se transformar numa bandeira desse
"boom" literário, devido à natureza da literatura dela que é muito
universal e, consequentemente, muito traduzível. Explorada em vida
e mais explorada depois de morta.
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Octávio - Ah, mas isso é cotidiano.
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João
Antônio - Isso é cotidiano, quer dizer: "morre Clarice
Lispector, a vergonha continua". E os nossos lindíssimos escritores
aceitam o farisaísmo. Você abre os jornais e está todo o mundo dando
depoimento, dizendo que Clarice era maravilhosa, que todo mundo
era amigo de Clarice - isso é conversa, porque ninguém ia visitá-la,
eu sei disso, e Clarice, inclusive, reclamava isso e dizia "eu não
sei por que as pessoas não se aproximam de mim, eu não sei por que
vocês me transformaram num mito, num monstro sagrado, eu sou apenas
uma pessoa humana, entende?" e, no entanto, está todo o mundo dizendo
que era amiguinho de Clarice Lispector, com que direito? Quem é
que realmente era amigo dela, quando ela era viva?
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Octávio - Mas quem é que disse que era amigo dela?
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João
Antônio - Abra-se o Jornal do Brasil e veja-se os melhores
nomes da literatura brasileira, né?
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Octávio - Cite alguns.
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João
Antônio - Por uma questão ética eu não vou declinar nomes
aqui, que eu não sou bobo nem nada, está entendendo? Porque eles
têm o poder literário nas mãos.
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Octávio - Está bom, está bom, doutor o senhor se agarrou na ética...
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João
Antônio - Não, eu não estou me agarrando na ética, eu
estou dizendo o seguinte: que a dona Clarice Lispector foi lesada
em vida e vai ser lesada depois de morta, está entendendo?
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Octávio - Então me diz os nomes.
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João
Antônio - Álvaro Pacheco...
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Octávio - Isso...
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João
Antônio - Adolfo Bloch, que deve ter ido até ao enterro
dela, porque são bons fariseus e estão fazendo um farisaísmo bíblico
com ela, está entendendo? Os homens que encomendavam traduções a
ela, porque ela cansou de fazer tradução mal paga como todo mundo,
traduções de livros que hoje estão em 15° edição, etc., etc., etc.,
e ela só recebeu uma vez. Veja bem, mas eu não quero agora transformar
aqui a figura de Clarice Lispector, por eu achar que é uma grande
escritora, em mártir da inteligência brasileira, não é nada disso.
Quero pegar isso e ver se gente levanta aqui o seguinte: a injustiça
que é cometida com o autor. Quer dizer, o autor que é o cara badalado,
que é o cara festejado e tal e coisa, mas que na hora da grana não
ve é nada. É uma vergonha. A TV-Educativa (Rio), o Museu de Imagem
e do Som, são duas vergonheiras danadas, que não tinham nenhum depoimento
completo de dona Clarice Lispector. Essa é que é verdade. O dia
que morreu a Clarice aí, os caras nem tinham mais um retrato da
Clarice dentro da TV-E, ficaram apresentando sempre o mesmo retrato.
Nunca fizeram com ela uma boa entrevista. O Museu da Imagem e do
Som não tem elemento nenhum sobre a Clarice. A mulher morre aí com
54 anos e tal e está nessa briga desde 19 anos de idade, está entendendo?
Quer dizer, os caras não têm um depoimento, que País é esse que
não pesquisa os seus melhores? Então, veja bem, o Museu da Imagem
e do Som não tem um depoimento feito com essa mulher, mas aonde
é que estão esses homens que dizem que cuidam da memória nacional?
E essa TV-E o que é que está fazendo? A TV-E é capaz de morrer o
Carlos Drumond de Andrade, amanhã, Deus o livre e guarde - três
pancadas na madeira - porque é o último grande patrimônio literário
brasileiro, e não tem uma gravação no Museu da Imagem e do Som,
não tem uma gravação na TV-E...
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Octávio - Mas aí no caso de Drumond, vamos lá, aí ele não gosta
de dar entrevista. É difícil.
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João
Antônio - Ele não gosta de dar entrevista pelo seguinte:
mandam um profissional entrevistá-lo que não tem gabarito, que não
se interessa pela coisa, então o Drumond fica arredio, porque o
Drumond é mineiro, é itabirano, é um homem cuja formação é tímida.
É um sujeito que trabalha no silêncio, está entendendo? Quer dizer,
a natureza dele é essa e tem que respeitar a natureza dele, todo
o mundo tem o direito de ser louco. Músico popular tem direito de
ser louco. Cineasta tem o direito de ser louco, de ser mau caráter,
de ser caloteiro, está entendendo? Pintor tem direito de ser louco
e gostar muito de dinheiro. Agora, escritor não tem direito a nada?
Escritor tem direito a ser genial fazendo a obra e ser direitinho
na vida, entende? Se o cara bebe muito é alcoólatra; se o cara não
sei o quê, é mulherengo; se o cara não sei o quê, é toxicômano,
o escritor tem que ser botininho. O escritor não tem direito a ter
temperamento. Só podem ter temperamentos os chamados artistas, está
entendendo?
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Octávio - Mas cineastas você colocou o negócio genérico, ou como
é que é?
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João
Antônio - Não. Existe preconceito que julga o nosso cineasta,
ah genérico não, não tem nada genérico. Eu estou cansado de ver
as maiores injustiças diante dos escritores. Recentemente, por exemplo,
o sr. Carlinhos de Oliveira, José Carlos de Oliveira, publicou no
Jornal do Brasil uma crônica chamada "Sobre os Escritores", em que
ele diz que os escritores não participam da vida cultural brasileira,
quem participa são os cineastas e os cineastas é que brigam, o escritor
não briga. Ora, o sr. Carlinhos de Oliveira não sabe a luta que
está havendo hoje no Sul, a luta que está havendo hoje em Minas
Gerais, a luta que está havendo hoje em São Paulo, a luta que está
havendo hoje no Nordeste, feita por escritores, que estão indo às
escolas, que estão debatendo com estudantes, que estão fazendo público,
que estão levando uma imagem e uma mensagem de cultura brasileira,
que estão quebrando pedra sozinhos, no anonimato. Ninguém está sabendo,
por exemplo, que em Minas tem uma equipe de escritores com Wander
Peroli, Benito Barreto, Manuel Lobato, que estão indo a todo o interior
de Minas, em fim-de-semana, entende? Debater com estudantes, etc.,
etc., eu mesmo participei de alguns. Estava esquecendo que eu viajei
este País todinho de Manaus até Ijuí, a convite de estudantes e,
muitas vezes, fui com o dinheiro da passagem do avião, não ganhei
um tostão de cachê, nem de droga nenhuma, e a troco de quê? Quer
dizer, então o sr. Carlinhos de Oliveira, que está vivendo num ilustre,
e sem expressão nenhuma, país do Leblon, porque isto não é Brasil
coisa nenhuma, não é nem Rio de Janeiro, que dirá Brasil, isto é
uma amostra raquítica dessa cultura tupiniquim colonizada - vem
dizer que escritor não faz nada, que escritor não quer nada, não
briga por nada. Logo a seguir, ele faz na sua crônica um retrato
sobre a lamentável situação de dona Maura Lopes Cansado, que estaria
- segundo ele - presa num presídio de loucos e cega, etc. Mal sabe
ele que foi feito um movimento pelos escritores e que participaram
desse movimento, não apenas escritores como Aguinaldo Silva e Edilberto
Coutinho, mas também jornalistas, como Irã Frejard, e que lutaram
para tirar a Maura daquela situação em que ela estava, recolocar
Maura numa clínica, e a Maura já foi operada da catarata. Quer dizer,
então, que o escritor é o cara que leva só cacetada, está entendendo?
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Octávio - Você saiu por uma estrada, mas vamos voltar pra Clarice
Lispector. Certo? Eu quero a caminhada da Clarice pelas editoras?
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João
Antônio - A caminhada da Clarice pelas editoras é a seguinte:
a Clarice, ela nunca foi mulher que tivesse quem coordenasse o trabalho
dela e ela não entendeu, não sabia, que ela pra conseguir alguma
retirada boa de direitos autorais, ela tinha que concentrar a obra
dela numa editora só. Isso no Brasil é fundamental, o cara tem que
ficar numa editora só, para ir criando um veio. Então, Clarice ficava
pingando de lá pra cá. Por exemplo, "Perto do Coração Selvagem"
foi um livro que ele teve vários anos esgotado, está entendendo?
E procurando editar daqui, editar de lá. A segunda edição saiu pela
Livraria Francisco Alves. Depois, já os outros livros ela fez pela
José Olympio, um só, fez outro com Álvaro Pacheco, e ficava nessa
coisa, quer dizer, nessa desorganização, porque, realmente, acontece
o seguinte: o espírito de Clarice não era um espírito que somasse
dois e dois são quatro, porque se ela soubesse somar não saberia
fazer o texto que ela fazia, ela não seria a mulher que ela era,
está entendendo? Porque dois e dois são quatro é pro burocrata do
Ministério dos Transportes, ou então pro ladrãozinho, sem vergonha,
pro especulador, qualquer especulador do mercado imobiliário sabe
disso, o escritor não sabe, porque o escritor transa com outros
valores, aí é que está o papo. Então a Clarice era bigodeada ai,
enquanto esperava ser editada teve que entrar por outros caminhos,
fazer tradução, ir pro Jornal do Brasil, fazer matérias pra Fatos
e Fotos etc. Porque acontece o seguinte, o editor no Brasil não
investe no cara. Ele não faz assim um programa de ter um borderô
no qual esteja incluido o gasto, pagamento com direitos autorais.
Se você pegar um borderô de produção de livro, você vai ver que
todo mundo vai ganhar garantidamente, desde o revisor, até a gráfica,
o capista etc., etc. Agora os 10% de autor não estão naquele borderô.
Aquilo você vai ganhar se o livro vender. Ela deu uma declaração,
por exemplo, lá em Porto Alegre, saiu no "Coojornal" em novembro
de 1976 - dizendo: "estou em várias editoras, mas tem uma que edita
seis livros meus e sabe quanto me pagaram neste semestre? Menos
de mil cruzeiros. Isto, editando seis livros meus". Agora, se você
me pergunta: ah, mas o escritor devia ser um ser mais politizado,
saber das coisas, e tal. Isto é uma besteira, sr. Octávio Ribeiro,
porque no Brasil não existe classe, a verdade é que não existe vida
sindical neste País. Ninguém tem consciência profissional de coisa
nenhuma. E é disso que o empresário sempre se vale, entende? Existem
alguns pequenos grupos que estão começando agora a ter uma consciência
profissional porque consciência profissional não nasce à toa, ela
é o resultado de vida sindical e, neste País, não tem vida sindical.
Os escritores, coitados, tem aí o diabo de um Sindicato dos Escritores
que nem podia levar esse nome. É um verdadeiro mumiário, quer dizer,
Museu de Múmias, e esses caras agora que estão tentando retomar
o Sindicato porque os atuais ocupantes e dirigentes desse sindicato,
nem escritores são. Basta dizer que o presidente é o sr. Raul Floriano,
dr. Raul Floriano, que pode, é um professor de Direito, autor de
livros de Direito, mas não tem expressão literária nenhuma. Quer
dizer, essa situação do escritor brasileiro, é uma situação geral.
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Octávio - Você já levou muito calote?
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João
Antônio - Cinema, por exemplo, levei um trambique, né?
Todo mundo sabe. Estou processando a Bloch Editores na Justiça,
prá ver se eu recebo "Antologia Brasileira em Curso". Tenho aí em
casa um caderno só de calotes e que inclui grandes nomes da imprensa
nacional, quer dizer, levei calote a torto e a direito. Colaborações
que me pediram. Contos que publicaram e que nunca me pagaram e ficou
tudo por isso mesmo, tal e coisa, e assim por diante, quer dizer,
tradução, por exemplo, o único dinheiro que eu vi de tradução -
e isso é muito bom pra certos caras que falam besteira aí - foi
da Checoslováquia. Foi o único País que me pagou por tradução o
resto não me pagou não. Eu fui traduzido na Espanha, fui traduzido
na Argentina, fui traduzido na Venezuela, fui traduzido na Checoslováquia,
na Polônia, na Alemanha Ocidental.
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Octávio - Agora, quem recebeu mais tarde, você ou a Clarice.
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João
Antônio - Eu acho que a Clarice muito mais, porque ela
tinha um temperamento tímido e dava até a impressão de um temperamento
nobre, uma mulher desquitada de um embaixador e tal. Eu não. Como
eu tenho alma de favela e de lavadeira, eu vou pros jornais e boto
a boca no mundo. Me roubou eu chamo de ladrão.
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Octávio - Então, você cansou de ir pros jornais.
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João
Antônio - Cansei de ir pro jornal pra falar que estou
sendo roubado. Polícia, socorro, estou sendo roubado, como se faz
dentro de bordel... Aliás, a diferença de escritor pra prostituta
é nenhuma. Nenhuma.
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Octávio - Mas escritor não tem cafetão.
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João
Antônio - Como não tem? Pois ele tem o editor. Ele tem
o repressor que é a polícia da censura, e tem o cafetão que é o
editor, entende? Apanha da Polícia na rua e no outro dia está fazendo
a vida de novo pro editor ganhar dinheiro.
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Octávio - Como é que você pode chamar, você acha que tem o direito
de chamar o editor de cafetão?
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João
Antônio - Mas, absolutamente, pois ele é explorador.
Se o editor fosse um cara bacaninha como ele diz, ele tinha transformado
a sua editora em uma sociedade cooperativa para os seus funcionários
e para os seus autores. E alguns ainda vestem aquela imagem de contestador,
de esquerdinha. A esquerda é um mercado de consumo no País, entende?
A contestação de botequim no País é um negócio que fatura, pô, quer
dizer, é uma forma de alienação, também, nossa discussão dentro
dos botequins. Dentro dos botequins estão sendo feitas revoluções,
ou melhor, estão sendo conclamadas.
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Octávio - E por que é que você não faz um livro com o titulo: "A
Guerrilha de Boteco".
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João
Antônio - Olha eu estou fazendo um livro que não tem
esse título mas pretende passar a limpo toda uma geração que foi
vítima desses fatos todos, entende? E um dos títulos precários desse
livro, não adianta ninguém querer roubar, porque eu tenho mais quatro
estepes para esse título, tão bons quanto esse.
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Octávio - Alô, alô, fábrica de criação, câmbio...
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João
Antônio - O título é o seguinte: "Os Alegres Rapazes
da Imprensa Carioca". Esse é o título. É uma geração que antes de
63 pensava que ia fazer muita coisa e hoje muitos estão mortos,
outros estão neurotizados, outros estão impotentes, outros são jogadores,
são alcoólatras, são homens destruídos.
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Octávio - A imprensa não tem nada?
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João
Antônio - A Imprensa? A imprensa apenas configurou, ajudou
a destruição dessa gente, entende? A Imprensa apenas assistiu, entende,
friamente a esses cidadãos serem destruídos, todos eles eram jornalistas.
A imprensa brasileira hoje não tem função nenhuma. Qual é a função
da grande imprensa brasileira? É trocar anúncios, é fazer negócios?
E que imprensa é essa, representativa de que cultura, que o jornal
que mais tira neste País tira 300 mil exemplares e a nossa população
é 120 milhões de habitantes. Esse jornal é feito pra quem? Aí nem
entra povo.
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Octávio - Agora, vem cá, dizem que no Brasil não há complexo racial.
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João
Antônio - O quê? Ah, mas quem disse isso está muito enganado.
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Octávio - Espera aí, você conhece algum escritor negro?
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João
Antônio - Opa, mas é claro, mas eu só vou te dizer o
seguinte: isso é uma vergonha, está entendendo? Num país cuja maioria
é negra, a maioria do País é negra, não tem escritor negro, como
não tem grandes professores negros, como não tem grandes patentes
militares negras, como não tem embaixador negro, negro realmente
é uma classe que está por baixo. Há todo tipo de preconceito que
é pior, porque é um preconceito velado, que não deixa o negro sequer
aparecer. O negro só aparece quando é peça rara, quando é peça pitoresca,
está entendendo? Pinta no futebol, pinta na música popular, pinta
no terreno onde o branco ainda não é capaz de fazer tão bem quanto
o negro. Mas, no entanto ele domina, ele domina as coisas todas.
Por exemplo, o futebol brasileiro, você não me apresenta um cartola,
quer dizer, um presidente de clube que seja negro. No entanto, o
negro é que faz o futebol, pô. São os Pelés da vida que fazem o
futebol. Guarrincha, mulato, que faz o futebol, está entendendo?
quer dizer, são os negros que têm feito o futebol e sempre. Mas,
no entanto, eles nunca chegaram ao poder de decisão. Quer dizer,
a cúpula, o poder de decisão, está todo na mão de brancos. A mesma
coisa acontece na música popular.
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Octávio - Um negro pra entrar num hotel de luxo teve que dizer que
é filho do Pelé, né? (risos).
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João
Antônio - Teve que dizer. Exatamente, então veja bem,
o que existe, eu não quero agora ser racista, ao contrário, começar
dizer que o negro só que é o coitadinho. Não é o negro. É o pobre.
É o cara que está trabalhando no campo. É o sujeito que não tem
grana. É o sujeito que não tem grana e que não chega ao poder de
nada, que não pode estudar, porque o ensino aqui é pago.
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Octávio - E se ele escrever um livro e for oferecer às editoras,
se o livro for bom, como é que fica?
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João
Antônio - O exemplo disso foi a exploração que se fez
da Carolina Maria de Jesus, uma favelada negra, que publicou "Quarto
de Despejo" com certo sucesso. Mas, que depois foi completamente
abandonada, quer dizer, não se deu sustentação a essa mulher, está
entendendo? ela foi tirada da sua condição de favelada, foi jogada
como uma peça rara, como uma peça pitoresca, está entendendo? A
um aparente estrelado e depois ela foi abandonada, não lhe deram
sustentação. Então, não adianta nada. Revelar um elemento do povo,
se apropriar de um elemento do povo pra depois abandonar e deixá-lo
por aí, então não adianta nada.
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Octávio - Eu acho que isso não é privilégio dos negros...
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João
Antônio - É que todo indivíduo - todo e qualquer indivíduo
em qualquer nível neste País, seja ele branco, preto, amarelo, que
for trabalhador, está perdido, porque aqui o que menos se valoriza
é a força do trabalho. Aqui só ganham dinheiro com trabalho os intermediários,
os exploradores, os especuladores, porque é do próprio sistema esse
jogo.
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Octávio - E, eu acho que eles vão achar isso altamente subversivo,
não?
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João
Antônio - Não quero saber de subversão. Fique sabendo
o seguinte, qualquer escritor é por definição um subversivo. Qualquer
arte propõe uma nova ordem, então, ela é subversiva. E qualquer
sociedade que não aceitar é uma sociedade cocoroca, porque uma sociedade
tem que ser dinâmica, ela tem que ser transformada. Ela não pode
ser um negócio estático. Todo e qualquer artista é nitidamente um
subversivo porque ele propõe uma nova ordem. Essa é que é a realidade,
está entendendo? Essa palavra subversão no Brasil está sendo usada
sem a menor propriedade. Os idiotas que escrevem e que dizem isso
não sabem o que estão falando, entende? Porque a subversão é uma
necessidade, é uma necessidade. Não existe sociedade estática, entende?
Toda sociedade estática leva à decadência. Exemplo, é o fascismo
do Hitler, o fascismo do Mussolini, quer dizer, acharam que já tinham
descoberto a realidade, a verdade definitiva das coisas, está entendendo?
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Octávio - A Clarice merecia Academia, como é que é? Antes da Rachel.
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João
Antônio - Ah, mas espera aí, antes da Rachel, não sei
se antes ou depois da Rachel, mas do ponto de vista de uma qualidade
do seu trabalho e de uma folha de serviços prestados à literatura
brasileira... entende porque o que eu penso da Academia é que é
ridículo pertencer à Academia, isso é o que eu penso.
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Octávio - Então a Clarice não quis porque era ridículo ou por que
ela nunca se candidatou.
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João
Antônio - Não, não é por isso não, porque não quis se
candidatar, não tinha paciência pra isso. Agora, é preciso que eu
diga o seguinte: eu acho muito bom que a Rachel de Queiroz esteja
na Academia Brasileira de Letras. Já foi uma abertura de mentalidade.
Embora eu ache que a Academia, devido às posições que ela tem tomado,
muito estáticas, muito conservadoras, ela é um lugar que não fica
bem pra um escritor de verdade, né?
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Octávio - Por que?
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João
Antônio - Não, não é por isso não, porque não quis se
candidatar, não tinha paciência pra isso. Agora, é preciso que eu
diga o seguinte: eu acho muito bom que a Rachel de Queiroz esteja
na Academia Brasileira de Letras. Já foi uma abertura de mentalidade.
Embora eu ache que a Academia, devido às posições que ela tem tomado,
muito estáticas, muito conservadoras, ela é um lugar que não fica
bem pra um escritor de verdade, né?
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Octávio - A Clarice discordava muito né?
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João
Antônio - Ah, discordava profundamente. Aliás a literatura
dela é uma discordância total, porque é uma literatura feita sobre
a inquietação humana, sobre as grandes contradições humanas, as
contradições da paixão, as contradições do amor ou do desamor, da
solidão do desespero, entende? Principalmente da ausência de amor.
E há quem diga que a Clarice fez uma obra alienada, ou não engajada.
Isso é uma besteira muito grande. Essa última personagem dela da
"Hora da Estrela" é uma personagem de uma mulher pobre, que vive
na rua do Acre, aqui no Rio de Janeiro, consequentemente tem que
ser um retrato social. E, também, veja bem, não se pode estabelecer
um padrão estético, único, para a literatura. Dentro da literatura
cabe todo o espaço cultural, desde uma literatura para jornalística,
uma literatura de denúncia, social, etc., até uma literatura sobre
os problemas da alma, sobre os abismos da angústia humana, etc e
tal, cabe tudo. Dentro de uma literatura brasileira cabe desde o
Plínio Marcos até a Nélida Piñon, vamos dizer, cabe tudo. O sujeito
tem o direito de tocar o instrumento como ele achar que deve ser
tocado, entende? Tem o artista da música de câmera e tem o artista
do pandeiro.
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