ESTE PAÍS É DOS NEGROS
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 8 de junho de 1980
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Considerando que "uma das poucas coisas boas no Brasil de hoje
é ver desmoralizada a imagem abominável e hedionda" de que vivemos
numa democracia racial, o antropólogo e ex-ministro da Educação,
Darci Ribeiro, lembra que "este País foi feito pelos negros, e
se há uma gente que tem o direito de viver igualitariamente aqui,
são eles". Nesta entrevista ao repórter Carlos João, no Rio, Darcy
Ribeiro diz ainda que "o preconceito, sobretudo quando exercido
por uma canalha estrangeira, que chega aqui e se apossa de propriedades,
é uma coisa que não podemos admitir. É preciso que as pessoas
se armem de indignação contra isso".
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FOLHETIM - Darcy o mito da democracia racial resiste ainda no Brasil?
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Darcy Ribeiro - Uma das coisas boas no Brasil
de hoje, das poucas que existem, é ver desmoralizada, afinal, na
opinião publica, algo que no meio cientifico está desmoralizado
há muito tempo, que é esta imagem da democracia racial. Esta é,
de fato, uma imagem abominável, hedionda, porque representa uma
fantasia atrás da qual a classe dominante se desculpa da brutalidade
do nosso racismo. Ou seja, alegando presunçosamente que nós somos
uma democracia racial, comparando com a América do Norte, com a
África do Sul, de fato o que se fazia era se fechar os olhos para
a condição de opressão tremenda. Atrás disso, está uma posição muito
brasileira, a de parecer justo que o negro continue na posição em
que está, porque ninguém é contra ele, ninguém sai caçando negro.
Todos dizem que enquanto o negro fica no seu lugar ele é respeitado.
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FOLHETIM - E qual é o lugar do negro na sociedade brasileira?
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Darcy Ribeiro - É o lugar pior do mundo. É o lugar de
quem não pode reivindicar, nem ser operário, nem chegar à condição
de operário, de cidadão. O que se esconde atrás da imagem de igualdade
é o racismo brasileiro, que quer que o negro permaneça na condição
dele, uma condição de gente que não chega a ganhar salário mínimo,
que vive miseravelmente. O Brasil não olhou, por exemplo, para fatos
espantosos como o de logo depois da Abolição, a população negra
ter diminuido muito. Isto é explicável porque não houve mais ingresso,
pois quando deixaram de entrar 500 mil negros por ano, a população
negra começou a diminuir. Mas, anos depois, a população negra deveria
ter se equilibrado, deveria crescer na proporção que cresceu as
outras, mas não cresceu. O fato é que a diminuição absoluta do numero
de negros foi devido à condição em que eles foram lançados, miserabilissima,
em que não tinham condições fisicas de se manter. Nós estudamos
na escola bobagens como a Lei do Ventre Livre e a Lei do Sexagenário.
São duas leis de safadeza atroz de tão boçais. São leis de um País
formado na escravidão, em que não só o escravo ficou humilhado,
mas o senhor também ficou deformado. Nós, brasileiros, carregamos
na alma, no espirito, esta ferida de termos sido um povo escravizador.
O escravo tem a dignidade de lutar pela liberdade, mas o senhor
o que faz? Luta pela servidão.
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FOLHETIM
- Qual o sentido dessas leis destacadas no ensino oficial?
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Darcy Ribeiro - Na escola nós estudamos este absurdo da Lei
do Sexagenário. Logo que o escravo alcançava os 60 anos, quando
não servia, era imprestável, o senhor podia enxotá-lo quando tinha
de alimentá-lo, porque ele não servia mais para escravo. Então é
esta abolição que se dá no Brasil, a primeira, que é tirar a aposentadoria
minima de um prato de comida depois de ter servido o patrão a vida
inteira. A outra lei terrivel, a do Ventre Livre, quando ela foi
decretada - em São Paulo há prova concreta disso - havia uma senhora
chamada Delmira, que criou mais de 80 asilos. Há uma Fundação que
herdou os bens dela e ainda tem muito terreno - é uma Fundação espirita
que fica ali perto da praça da Sé. A herança dessa mulher permitiu
que ela construísse asilos destinados a recolher as crianças que
eram abandonadas na rua em São Paulo, jogadas fora pelos escravistas.
Eles não admitiam alimentar a criança que não seria mais propriedade
deles escravistas. Imagine, numa cidade como São Paulo, há um século,
até, atrás se criaram 80 asilos! A caridade pública cuidou de recolher
a criançada que os escravistas jogavam fora.
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FOLHETIM - Há indicios de maior combatividade do negro contra o
racismo?
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Darcy
Ribeiro - Quero dizer que atrás da história brasileira estão
estes fatos terriveis. Por isso mesmo que eu comecei dizendo que
uma coisa alvissareira é, neste momento, no Brasil, generalizar-se
a consciência fora dos meios eruditos de que neste País sempre houve
o preconceito racial, que ele é muito profundo e tremendo. Um negro
para fazer uma carreira de ascensão social encontra o dobro de obstáculos
que encontra um branco. O negro, além disso, sofre uma carga tremenda
de opressão porque ele interioriza uma imagem de um deus branco,
de um ideal de branquitude, de uma beleza branca, em lugar da aceitação
de sua própria forma. Mas, uma coisa bonita que vi, depois de voltar
do exilio, foi o negro enchendo as ruas com muito mais coragem de
ser ele mesmo. Neste sentido eu acho que foi uma coisa bonita a
influência norte-americana - eu, que em geral sou tão contra essa
influência, quando vejo negro vestido como negro norte-americano
aqui no Brasil isto me alegra. Quando reclamam comigo que o negro
está deixando de cantar sambas, porque estão cantando coisas norte-americanas,
eu digo que tudo é deles, pois nós temos música e eles fazem muito
bem em se comunicar. Eu acho, enfim, que é uma coisa boa este negro
que se assume, que começa a ser agressivo e começa a exigir um lugar
melhor do que aquele lugarzinho de m... a que ele estava compelido.
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FOLHETIM - Afinal, no Brasil existe que tipo de preconceito?
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Darcy
Ribeiro - Eu acho muito útil para uma compreensão do problema
negro no Brasil, ver o conceito do professor Oracy Nogueira, sociólogo
paulista. O preconceito de origem diferencia-se do preconceito de
marca. O de raça é preconceito racial puro, como o norte-americano
ou africano; quem quer que seja negro, em qualquer grau e porcentagem,
é "negro". Então não há um lugar para o mestiço ser tratado como
mestiço ou mulato, porque todos são negros. O preconceito de origem
é diferente do de marca ou de cor. O preconceito no Brasil não é
o do tipo norte-americano, é de cor. Ele incide conforme a negritude
da pessoa, que, quanto mais negra, está mais sujeita ao preconceito.
E admite a branquização, inclusive propagandeia e incentiva a miscigenação.
Este é um preconceito de caráter diferente. No fundo não se aceita
o negro como ele é, mas como um futuro branco. Essa expectativa
de que os negros desapareçam dentro de algum tempo, mulatizados
e depois branquizados, é um preconceito secular.
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FOLHETIM - Pode-se ver este problema dentro de um contexto regional?
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Darcy
Ribeiro - Bom, muita gente gosta de pensar que o progresso de
certas áreas do sul do Brasil, como Paraná, Santa Catarina, Rio
Grande do Sul, as áreas de colonização alemã, italiana, polonesas,
que este progresso se deve à colonização das diversas raças. Não.
Ele se deve à reforma agrária. São áreas em que a propriedade média
foi de 25 a 30 hectares. Isto porque o Imperador estava importando
reprodutores e vieram esses brancos para cá com idéia de melhorar
a raça. Porque os italianos e alemães que foram para São Paulo sem
nenhuma propriedade são, hoje, companheiros de sindicato do Lula,
não tiveram progresso especial nenhum. Quando se fez a Abolição,
Joaquim Nabuco incorporou no projeto um programa especial de reforma
agrária de dar terras aos negros. Nunca se deu, nem aos negros nem
aos mulatos, só aos brancos. Neste sentido, o conceito do professor
Oracy Nogueira de preconceito de marca e de cor é útil para perceber
alguns aspectos do problema.
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FOLHETIM - O aumento da combatividade dos negros contra o preconceito
racial está trazendo, em contrapartida, maior discriminação contra
eles, em hotéis, restaurantes, lugares públicos, por exemplo?
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Darcy Ribeiro - Olha, a primeira prova legal de que havia
preconceito no Brasil foi a lei Afonso Arinos, que era uma lei dizendo
que não havia preconceito, mas que dava multa em dinheiro e em cadeia
para quem exercesse o preconceito. Esta lei tem que ser posta em
execução e os negros é que devem executá-la. E preciso organizar
mais associações de negros e que elas sejam mais agressivas. Quer
dizer, cada vez que um hotel impedir um negro, 300 negros têm que
ir para aquele hotel, para chatear, para protestar. Os brancos também,
que têm vergonha, devem fazer isso. Porque, afinal, este País foi
feito pelos pretos. O Brasil não recebeu mais do que 500 mil portugueses,
é improvável que tenha sido tanto, mas recebeu seis milhões de negros.
Este país foi feito por eles e se há uma gente que tem o direito
de viver igualitariamente aqui são eles. Esses são os mais brasileiros
de nós, só sabem ser deste País, são os mais assimilados dos brasileiros.
E o preconceito, sobretudo quando exercido por uma canalha estrangeira,
que chega aqui e se apossa de propriedades, é uma coisa que não
podemos admitir. E preciso que as pessoas se armem de indignação
contra isso.
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FOLHETIM - O preconceito racial é geralmente vinculado ao preconceito
social no Brasil. Qual a relação entre eles?
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Darcy
Ribeiro - Ao falar do preconceito racial não podemos esquecer
deste outro, vinculado a ele e talvez pior ainda, que é o preconceito
social. Pode-se dizer que o Brasil, tendo um preconceito de marca
e não de origem, de cor e não de raça, tem um preconceito diferente
do da África do Sul, que leva ao "apartheid". Mas nós temos um preconceito
aqui, que é muito mais grave do que o da África do Sul e o dos Estados
Unidos - é o preconceito social. A distância entre o pobre e o rico
no Brasil é abismal. Só na Índia a gente encontra pessoas com a
capacidade de passar por um pobre como se passasse por um poste
ou um cachorro, sem um sentimento humano, mas lá afinal as castas
se defendem. Só na Índia você encontraria a tranquilidade com que
um delegado esmaga um pobre e o temor com que ele trata um filho
de general. Ou seja, esta desigualdade perante a lei é outra herança
da escravidão. A escravidão que cicatrizou o nosso espírito é uma
ferida que ficou lá marcada e, ainda agora, nós estamos marcados
por esta herança terrivel, porque exercer a escravidão desenvolve
uma espécie de carapaça, de irresponsabilidade moral, de isenção
e de falta de sentimento humano para com um homem transformado em
coisa. O preconceito social é grave como o racial e os dois se somam.
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FOLHETIM - A quem interessa o mito da igualdade racial?
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Darcy
Ribeiro - Esse mito cresce talvez na classe média ingênua, setores
desarmados de crítica, capazes de ter patriotismo. Mas, a função
social do preconceito, como mostrou muito bem o Florestan Fernandes
em estudos excelentes sobre isso, é manter a sociedade tal qual
ela é. Quer dizer, o preconceito se exerce sobre o negro não porque
ele seja inferior, mas para que ele continue na situação de inferioridade
a que ele foi reduzido. E esta situação traz lucro a quem explora
o trabalho do negro. Para mantê-lo nesta posição é preciso convencê-lo
de que ele é um m... um preto que não serve para outra coisa a não
ser para ser explorado. Então é um instrumento de opressão e, ao
mesmo tempo, um mecanismo de manutenção. A função do preconceito
é perpetuar a sociedade com sua estrutura desigualitária. E isso
se enfeita de desculpas que se cometem no discurso da consciencia
ingênua.
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