SOCIALISMO ESTÁ PROSTITUÍDO, DIZ CASTORIADIS

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 7 de setembro de 1991


Filósofo francês condena mistificação liberal e afirma que implosão da burocracia soviética gera apatia política

Fernando de Barros e Silva
Enviado especial a Porto Alegre

A burocracia soviética implodiu e o triunfo ideológico do capitalismo que decorre disso é passageiro. A avaliação é do filósofo francês Cornelius Castoriadis, 69, em entrevista concedida à Folha no último sábado, em Porto Alegre, da qual participou Denis Rosenfield, professor de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contra Marx, Castoriadis defende que uma sociedade autônoma precisa de uma economia de mercado. Contra os "Chicago boys", ele diz que o neoliberalismo não passa da última mistificação do capitalismo. "Outsider" no cenário filosófico francês. Castoriadis critica tanto os últimos suspiros do pós-estruturalismo como a voga neo-humanista que ganha adeptos na Europa. Os primeiros são "diversionistas" e servem ao "status quo"; os segundos são "regressivos" porque se apegam aos valores universais para mascarar a ausência de um projeto político.

Folha — O colapso dos regimes do Leste derruba definitivamente as possibilidades históricas do socialismo?


Cornelius Castoriadis A questão que você propõe se coloca há muito tempo. Não são os acontecimentos do Leste que mostraram a monstruosidade desses regimes. Os campos de concentração não nasceram ontem. O primeiro campo de concentração foi criado por Lênin em 1919; depois Stalin os ampliou de forma fantástica. Os horrores desses regimes que se diziam socialistas são conhecidos desde o início. Não é porque o monstro caiu que a questão do socialismo se põe. É porque o monstro estava lá. A palavra socialismo está irremediavelmente prostituída e foi por isso, entre outras coisas, que eu comecei a falar em sociedade autônoma. O problema nisso tudo é que as pessoas estão embarcando na conclusão que você tirou. Todo mundo vai dizer que é assim mesmo, que não deu certo e que é melhor deixar de lado as experimentações. Isso significa, em outras palavras, que não se quer mais fazer política. Essa apatia é compreensível, embora seu pressuposto seja falso. Se alguém falar em socialismo nos países do Leste hoje, depois do que eles viveram, corre o risco de ser apedrejado. Na aparência a ideologia capitalista triunfou, mas isso não vai durar indefinidamente. O capitalismo não resolveu os problemas mais básicos da humanidade.

Folha —É possível haver uma sociedade socialista ou, como o sr. prefere, autônoma, convivendo com uma economia de mercado?


Castoriadis Há uma doutrina em Marx segundo a qual a mercadoria é a alienação, o mercado é a alienação e o dinheiro é a alienação. Essa doutrina é absurda. Nas sociedades complexas não se pode fazer trocas de mão em mão. Também não se pode decidir politicamente que se vai produzir tantos sapatos, tantos discos de música clássica e tanto de suco de tomate. Isso seria absurdo. Ninguém pode me forçar a comprar suco quando eu quero ouvir música. Isso só pode ser regulado através da existência de um mercado e de uma moeda, que, como o alfabeto, são duas grandes invenções da humanidade que não têm nada de especificamente capitalista. O que significa moeda e mercado dentro de uma sociedade autônoma? Significa que os consumidores são soberanos, tanto no nível do consumo como da produção. Isso implica a existência de um verdadeiro mercado e não do mercado capitalista, onde há manipulação dos consumidores, cartéis, oligopólios e onde há um voto que é fraudado. Ele é fraudado porque, por exemplo, o sr. Paulo Maluf pode trocar um quilo de carne por cem votos. O mercado capitalista não é nem transparente, nem racional. Uma sociedade autônoma e soberana exige um mercado e uma moeda que não assuma a função de instrumento de acumulação, como ocorre hoje. O mercado, no entanto, também tem seus limites de funcionamento. Os gastos públicos e os investimentos do Estado não podem ser determinados pelo mercado, ao contrário do que prega a mistificação neoliberal dos "Chicago boys".

Folha — Qual o significado do fracasso do golpe na URSS?


Castoriadis É preciso voltar um pouco na história. Eu usei o conceito de estratocracia para definir o regime soviético a partir da morte de Stalin, quando o totalitarismo entra em colapso. A primeira tentativa de reforma da burocracia foi feita por Kruschev. Ela fracassou, mas, se podemos simplificar as coisas, o regime tirou a conclusão de que sua única saída era a expansão externa. A significação central para a classe dirigente a partir de então se torna a força bruta pela força bruta. Esse é o período Brejnev, que dura de 1964 a 1980, ou mesmo até 1985. O regime percebe então que não pode mais se opor aos poloneses, ao Afeganistão e vê que mesmo a situação interna se torna insustentável. Então eles são obrigados a tentar uma nova auto-reforma, que é mais complicada e se transforma na autodestruição do regime. O que é claro é que Gorbatchev desde o início até um mês atrás pensava que iria reformar o sistema comunista. Ele percebeu, embora não desde o início, que o único meio de superar a inércia do aparelho burocrático-militar era fazendo apelo à sociedade contra o partido. Como se viu, os acontecimentos o atropelaram. As pessoas não queriam mais reformar o comunismo, mas abandoná-lo. O regime implodiu, se autodestruiu. As possibilidades agora estão abertas.

Denis Rosenfield — A situação atual na URSS é caótica, no limite de uma guerra civil generalizada. O que você pensa sobre o futuro deste país, levando em conta a ausência de um passado democrático e a situação de decomposição da sociedade e do Estado?


Castoriadis A única coisa que posso dizer com certeza é que vai haver na URSS um longo período de turbulências. A situação de caos não facilita os prognósticos. Esse caos pode, por um lado, aumentar as revoltas e os movimentos de secessão dos estados, como ocorre hoje na Iugoslávia. Por outro lado, a situação de miséria, de fome generalizada e a anarquia podem criar a necessidade de um salvador e não sei se Ieltsin é uma pessoa capaz de fazer esse papel. Ele teve importância central na resistência ao golpe, mas tudo parece indicar que ele vai cada vez mais assumir a figura de um demagogo populista. Eu tenho grandes reservas em relação a ele. Além disso, a situação da população na URSS é muito antinômica. Na reação ao golpe havia muita gente disposta a lutar até as últimas consequências. Mas, por outro lado, o que se ouvia nas ruas eram gritos de "Rússia, Rússia, Ieltsin, Ieltsin". Eu não ouvi uma única vez as pessoas gritarem "democracia, democracia". Isso indica, talvez, que a motivação contra o golpe fosse o nacionalismo russo.

Folha — No seu livro "As Encruzilhadas do Labirinto" (1978), o sr. chamou o pensamento francês dos anos 60 e 70 de "ideologia francesa". Seria, na sua avaliação, uma espécie de suporte complementar do "status quo", cujo papel principal é desviar a atenção das pessoas dos problemas reais. Sua análise permanece válida? O que mudou na última década?


Castoriadis Acho que o que eu disse permanece atual, mesmo que os protagonistas e o conteúdo tenham mudado. Hoje, não se trata mais do estruturalismo, mas do que os norte-americanos chamam de pós-estruturalismo e desconstrutivismo. Mas a função ainda é a mesma: os representantes da nova ideologia francesa continuam negando a possibilidade de uma verdadeira reflexão filosófica, como negam a possibilidade de uma real ação política. Isso levou a fenômenos cômicos. Nos EUA, onde o desconstrutivismo faz tanto sucesso quanto a boneca Barbie, há muitos professores que foram mais ou menos marxistas nos anos 60 e hoje, bem instalados na universidade, se aproximam do desconstrutivismo querendo fazer disso uma coisa crítica e subversiva. O essencial da atividade deles consiste em "desconstruir" textos. A subversão se resume em se pegar um livro qualquer de Flaubert, Dickens ou Henry James e "desconstruí-lo". Eles pensam que com isso fazem temer as estruturas do capitalismo. Se tal fato não é sério no seu conteúdo, é sério como sintoma do estado em que se encontra a cultura ocidental.

Folha — Mas há hoje na Europa e sobretudo na França o retorno de um pensamento humanista, que recoloca o problema do indivíduo, dos valores universais, dos direitos do homem e da moral etc. na ordem do dia. Isso também é um sintoma da atual penúria especulativa?


Castoriadis Esse retorno aos universais existe, é verdade. Mas é uma reação regressiva. As pessoas que falam essa linguagem partem do que elas consideram ser o fracasso de toda ideologia revolucionária e se instalam sobre os direitos humanos. Os direitos do homem já há algum tempo se transformaram numa ideologia que mascara a ausência de um projeto político. Hoje, mais ainda do que na época de Kant, trata-se de um pensamento formal, sem nenhum conteúdo substantivo. Se permanecemos no universalismo jurídico, abstrato, teremos simplesmente uma liberdade negativa, defensiva. Não seria preciso dizer que uma criança que nasce em Uganda não tem hoje os mesmos direitos de uma criança francesa, para mostrar a hipocrisia dos que defendem essa posição.

Folha — Qual o sentido de se falar em autonomia e sociedade autônoma quando o mundo parece caminhar para formas variadas de regressão e as pessoas estão cada vez mais dispostas a se acotovelar em frente de um cinema para assistir o último filme de Schwarzenegger?


Castoriadis É evidente que na sociedade atual as pessoas não querem aquilo que nós entendemos por autonomia. Elas estão presas ao processo de imbecilização generalizada e não há hipótese de haver transformação social se ninguém compreender que há mais coisas a se fazer do que ficar parado em frente de uma televisão. Nesse sentido, há um conteúdo normativo no meu conceito de autonomia, que implica num julgamento de valor e na crítica da sociedade atual. O que não podemos dizer hoje é quais serão os valores substantivos de uma sociedade autônoma. Isso é tarefa de uma criação histórica e não a invenção de um filósofo.

Folha — Juergen Habermas também pensa sua teoria da ação comunicativa como um projeto de emancipação da sociedade. Qual a diferença entre sua idéia de autonomia e o projeto de Habermas?


Castoriadis Não há relação nenhuma entre esses dois projetos. A ação comunicativa é um nome para se descrever um processo que existe em qualquer sociedade, seja ela autônoma ou não. Se pensarmos na idéia de Habermas em termos sociológicos, podemos dizer que há ação comunicativa entre os selvangens, num campo de concentração, hoje ou em uma sociedade autônoma. Habermas quer extrair da idéia de ação comunicativa regras normativas para que essa ação seja livre e sem coações. Mas ele não extrai a norma da descrição. Ele tem antes, como pressuposto, uma idéia do que chama de comunicação ideal e faz disso uma norma. Mas por que ele faz isso? Porque nós queremos que as pessoas sejam autônomas, o que ele aliás não diz. Ele tenta retirar de um fato de linguagem um "deve ser" ("sollen", em alemão). Para mim, trata-se de um deslocamento lógico.

QUEM É CASTORIADIS


O filósofo Cornelius Castoriadis nasceu em Atenas (Grécia) em 1922. Estudou direito, economia e filosofia. Mudou-se para Paris em 1945 e se naturalizou francês. No mesmo ano, fundou com o filósofo Claude Lefort uma tendência dentro do Partido Comunista francês que rompeu com o trotskismo e, em 1948, iria se transformar na revista "Socialismo ou Barbárie", uma das primeiras publicações de análise crítica do legado stalinista nos regimes do Leste. Em julho de 1968, publicou com Edgar Morin e Lefort "Mai 68: La Brèche" (Fayard). Em 1973, escreveu "A Questão da História do Movimento Operário", em que fazia uma autocrítica e abandonava posições assumidas durante o período de "Socialismo ou Babárie". Atualmente, Castoriadis é diretor de estudos da École Pratique des Hautes Études. No ano que vem a editora Paz e Terra vai lançar seu último livro "Le Monde Morcelé" (1990). No Brasil, que visitou pela primeira vez em 1982, já foram publicados, entre outros: "A Experiência do Movimento Operário" (Brasiliense); "Instituição Imaginária da Sociedade" (Paz e Terra); "As Encruzilhadas do Labirinto" (Paz e Terra); "Diante da Guerra" (Brasiliense); "Ecologia e Autonomia", com Daniel Cohn-Bendit (Brasiliense).


© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.