BORGES JÁ MORREU. E ELE TAMBÉM SABE DISSO
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Publicado
na Folha de São Paulo, domingo, 26 de agosto
de 1979.
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Certa vez, os estudantes disseram a Jorge Luiz Borges: "você
está morto". Ele concorda. Na semana passada, ele completou
80 anos de vida. Mas está cansado de viver. Sua vida já
não tinha sentido há muito tempo e se esvaziou definitivamente
depois da morte da mãe, com quem viveu a vida inteira. Só
saiu de perto dela para um casamento que durou exatamente
um dia. Foi anulado. Detesta a imortalidade, com ódio. Está
cego, mas a cegueira não o espanta. Diz que a América Latina
é um romance mal escrito. E seus escritores são fantasmas,
não existem. Odeia a política. Na Espanha lutou ao lado
dos republicanos, mas acabou dando razão a Franco. Não crê
em democracia. Prefere regimes militares, duros. No texto
de Álvaro Alves de Faria, seu encontro com um dos mais famosos
escritores do continente. Um homem cético e amargo, que
vive o resto de sua vida desejando cada vez mais a morte,
enquanto respira sua absoluta e incrível solidão.
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O pequeno corredor escuro, de lâmpadas queimadas,
só desperta com o barulho do velho elevador. As portas estão
todas fechadas, os apartamentos não se abrem nem quando as
campainhas tocam com insistência. Sexto andar, um prédio cinzento,
assoalho cheio de poeira e uma mulher que passa de vez em
quando com um saco plástico, recolhendo lixo. O velho senhor
está sentado na sua poltrona negra. Nos últimos anos, o velho
senhor arrisca um sorriso frio nos lábios molhados, passa
as mãos nos olhos apagados e deixa transparecer seu velho
ódio a um velho inimigo morto "para o bem de todos" O velho
senhor fala pouco de Juan Domingos Perón. Fica irritado. Ele
prefere o governo que se instalou no país, que vai "salvar
a Argentina da destruição total que a queriam levar". A poltrona
escura tem um pano branco por cima, trocado de três em três
dias. Jorge Luis Borges anda pelo apartamento sem esbarrar
em nada. Decorou todos os caminhos e dificilmente bate com
a bengala em algum móvel. Raras vezes o velho senhor bate
com o bico do sapato preto no pé de uma cadeira. Quando acontece,
esbraveja sozinho por alguns minutos. O apartamento do velho
senhor está vazio. Há pouco, ele atravessou a rua, a bengala
branca batendo no chão da limpa calçada, as luzes de calle
Florida, as vitrines acesas, os livros. A bengala batendo
nos pés das pessoas e ele, ar estúpido, superior em tudo que
respira, mostra ser alguém que vê seu semelhante como coisa
muito pequena para habitar seu mundo. As pessoas o olham de
longe, não se atrevem a chegar perto para falar-lhe. Mesmo
porque Jorge Luiz Borges não responderia a qualquer um. É
preciso insistir muito. Para visitá-lo é necessário telefonar
pelo menos quinze vezes. Identificar-se, provar intenções.
O apartamento repleto de coisas velhas, peças de prata sujas,
a janela escura "por onde a noite entra com os últimos momentos
de uma tarde cheirando passarinho e sol muito quente, os últimos
momentos da Praça San Martin, mais longe, adormecendo suas
árvores aos poucos". O velho senhor gosta de usar muitas imagens
poética, quando se sente à vontade para falar. O terno azul
marinho escuro, impecável. O relógio de bolso que não olha
mais. A respiração funda, como se o ar estivesse faltando.
A cama da mãe agora vazia, depois que a morte chegou ao 6º
andar e a levou para sempre. Nunca acreditaria nisso, o velho
senhor Jorge Luiz Borges. Com sua arrogância. Quanto tempo
faz que sua mãe morreu? Não responde. O apartamento agora
vazio. Ele cansado de viver. As mãos trêmulas, quase sempre
cruzadas. A boca torta, os olhos sem brilho, superiores, como
se olhasse além das pessoas e dos objetos, além de qualquer
coisa parecida com a alma que não acredita existir. O velho
senhor anda triste com as coisas que sempre acontecem em sua
volta. Mexe muito as mãos e lembra que esteve há algum tempo
em Jujui, uma provincia que fica a 1.500 quilômetros de Buenos
Aires. Depois que saiu de lá, soube que o bispo da cidade,
dom Germano Malagari, reitor da Universidade Nacional de Jujui,
chamou-o de "blasfemo", termo usado por todos os jornais de
Buenos Aires.
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Borges - Sabe por que? Foi porque eu disse aos
estudantes que vieram falar comigo que tudo terminava com
a morte. Eu lhes disse que era ateu. Falei muito em filosofia
e disse também que, depois da morte eu não espero nem prêmios
e nem castigos na outra vida, depois desta vida absolutamente
miserável.
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O
bispo distribuiu uma nota a todos os grandes jornais da Argentina,
dizendo que Borges havia falado contra seu próprio povo, contra
a fé das pessoas humildes que esperam uma vida junto de Deus
depois de sua morte aqui na Terra. Textualmente: "Esse senhor
não leu o Santo Evangelho, não tem certamente nem noção do
que seja a doutrina cristã". Jorge Luiz Borges está, neste
momento, mais ou menos triste lembrando esse episódio na sua
vida repleta de episódios. O bispo, para ele, o que é?
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Borges - Um atoleimado.
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Explica:
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Borges
- Eu nunca pensei em ofender a Igreja que é uma coisa
importante na nossa formação cultural. O que eu disse é que
não acredito mesmo na imortalidade da alma e a morte, para
mim, é a grande esperança, a esplêndida esperança de que tudo
acabe definitivamente. E depois eu não sei se Deus necessita
de minha imortalidade pessoal para fins que desconheço...
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O olhar escuro, apagado no rosto com algumas gotas de suor.
Já falou várias vezes que detesta política, mas, desta vez
acredita:
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Borges
- O governo que aí está salvará a Argentina, porque é
um governo de cavalheiros, de senhores bem intencionados.
Fomos governados muito tempo pela escória, por bicheiros,
rufiões, putanos, políticos melancolicamente desonestos.
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O velho senhor pára um pouco de falar. Sua boca está molhada,
a saliva salta em gotas. Até que diz:
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Borges
- Nós somos indignos da democracia.
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E suspira fundo. A cozinha está suja. A mulher que faz a limpeza
está vestida de azul sem saber o que se passa com esse velho
homem de poucas palavras e, quando fala, fala sempre em tom
lamúria e contra alguém. Despreza os escritores latino-americanos:
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Borges - Não pretendo falar nenhum nome porque
eles, na verdade, não existem, não existe nada na América
Latina. É como se todo o continente fosse um romance mal escrito.
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Sempre esquecido por Estocolmo. O Prêmio Nobel. Não lhe interessa
falar nisso. Borges já odeia o idioma espanhol. Preferia,
na verdade, escrever em inglês. Talvez lhe dessem mais crédito
na Suécia. Mas perder o prêmio Nobel como tem perdido dói.
O velho senhor admite. Dói. Lembra alguns nomes que receberam
o prêmio. Não se conforma:
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Borges
- Eu estive há algum tempo nos Estados Unidos e, sinceramente,
até então nunca tinha ouvido falar em Saul Bellow. Mas isso
não quer dizer que ele não possa ser um grande escritor, merecedor
da láurea. No entanto, eu não posso elogiá-lo porque eu não
o conheço, não sei nada dele. Até o prêmio, nunca tinha ouvido
falar dele. Quem é ele?
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Um silêncio pesado. A voz pausada, profunda, vinda de dentro,
agride:
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Borges
- André Malraux sempre foi o meu candidato. Ele já morreu
e não recebeu o Nobel. Isso é uma imensa injustiça desses
senhores de Estocolmo. Malraux foi um escritor que parecia
um gigante, profundo, muito humano. Ele não podia morrer sem
receber o prêmio.
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A morte:
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Borges
- A gente adormece para sempre. Mas é que preciso que
todos se esqueçam de mim, diz Borges. Como se eu não tivesse
existido. Não me falem que pareço com Kafka, com Henry James.
Nada disso me interessa. A imortalidade não existe e não me
interessa. Prefiro o esquecimento. No futuro ninguém deve
ler nada do que escrevi até hoje, do que ainda estou ditando
para minha secretária. Ler pra que? Todos devem me esquecer
definitivamente. Eu não existo. Eu sou como a própria América
Latina.
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Volta a falar no Nobel, com raiva:
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Borges
- É como se fosse uma loteria, desses prêmios que a gente
compra um bilhete e dá o número comprado. Então a gente ganha,
fica contente. Eu não sei como ficaria, se ganhasse. E também
não estou muito interessado em saber.
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Nesta tarde, Jorge Luiz Borges gostaria de ir até o cemitério
da Racoleta, em Buenos Aires, onde está enterrada sua mãe,
quase cem anos, morta há alguns anos. Lembra-se:
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Borges
- O corpo magro na cama, o andar vagaroso pelos cômodos.
Só existia ela, mais nada havia na vida de Jorge Luiz Borges.
Mas foi-se.
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E tudo. Sua mãe já estava cansada de viver e ele sempre dependendo
dela, para quase tudo. Uma vida que dependeu da mãe. A mãe
lhe dizia:
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Coloca
o terno azul.
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E ele obedecia, embora o azul não lhe significasse mais nada,
era mais um vulto diante de seus olhos apagados para sempre.
A mãe, também lhe disse muitas vezes::
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A
gente passa a vida, chega aos 99 anos de idade, já não anda,
já não fala direito. Eu não desejo isso a ninguém.
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Borges não costuma esquecer os seus desprezados. Neruda, principalmente.
Gabriel Mistral foi um equívoco, mais nada. Aliás, todos os
escritores latino-americanos são um equívoco... De repente
esse velho homem de bengala branca, impecavelmente bem vestido,
a camisa branca, a gravata azul e vermelha, as unhas cortadas,
de repente esse velho homem de cabelos brancos gosta de falar
em Schopenhauer, Kipling, Stevenson, Chersterton, Lessing,
Kafka, Bernard Shaw, Novalis. Gosta de falar mais fala como
se não falasse, mantendo seu ar superior, como se todos não
tivessem realmente existido:
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Borges
- A gente deve ser esquecido, a imortalidade é algo terrível,
absurdo. Ninguém tem o direito de lembrar que eles existiram.
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Comunista não é. Nacionalista também não é. Borges não é partidário
de nenhuma forma de movimento político. Com ar de profundo
desprezo, o velho senhor coça a perna, a meia preta:
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Borges
- Não sou também anti-semita. A opinião política de qualquer
escritor não vale nada. Absolutamente nada. A opinião política
de um escritor é uma coisa vazia, completamente idiota.
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Ele diz que nada de política - tem a ver com sua obra. E não
quer que tenha:
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Borges - O que me importa a opinião política de
Shakespeare?
Pergunta o velho senhor quando, sentindo que
o sol deste fim de tarde entra por sua janela, batendo em
seu rosto, diz desanimado:
Fecha a janela, por favor. O sol me faz mal. O vento está
muito bom. Mas fecha, fecha.
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Borges não gosta de pensar em alguns episódios do passado,
embora esses episódios nunca sejam esquecidos. Só permite
que sua cabeça pense livremente, quando esse passado envolva
a figura de sua mãe, 99 anos mortos, a cama vazia no quarto.
Pensar no passado é uma doença incurável. O velho senhor não
gosta de ser chamado de grande escritor:
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Borges - A idade me ensinou a me conhecer. E eu
conheço as minhas limitações, sei o que posso e o que não
posso fazer. Eu sei, por exemplo, que nunca serei capaz de
escrever um grande romance. No entanto, se eu tentar um poema,
um conto curto, eu sei que me sairei muito bem.
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Jorge Luiz Borges mistura os assuntos e sua boca fica molhada,
ele passa um lenço azul. Fala novamente que odeia política:
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Borges - Meu compromisso é com a arte, com a estética.
Quando escrevo, eu escrevo como escritor, não como político.
Mas muitos têm na política um estímulo para fazer arte. Neruda
foi um poeta medíocre, dos piores que conheci na vida, mas
a política fez dele um grande poeta latino-americano.
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A janela fechada, as peças de prata mais escuras, os quadros
nas paredes empapeladas são sombrios:
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Borges - A opinião política de um escritor deve
interessar somente a ele mesmo, a mais ninguém. Eu odeio e
sempre odiarei política. Por causa da política eu já fui transformado
até em fiscal de galinhas. Ele exercia um alto cargo em seu
país. Não interessa qual, onde. Aí surgiu Perón. Vulgar, sujo,
idiota, imbecil. Acabei virando fiscal de galinhas.
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A janela fechada, as peças de prata mais escuras, os quadros
nas paredes empapeladas são sombrios:
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Borges - A opinião política de um escritor deve
interessar somente a ele mesmo, a mais ninguém. Eu odeio e
sempre odiarei política. Por causa da política eu já fui transformado
até em fiscal de galinhas. Ele exercia um alto cargo em seu
país. Não interessa qual, onde. Aí surgiu Perón. Vulgar, sujo,
idiota, imbecil. Acabei virando fiscal de galinhas.
Como
estão os pombos? Nunca mais eu pude ver os pombos. Estou cego.
Tudo ficou negro aos poucos. Deve ser como a morte. Tudo escuro.
Mas eu nunca me entristeço com minha cegueira. Sei de milhares
de pessoas que não vêem e que são particularmente felizes,
justas e sábias. Minha cegueira não foi espantosa, não foi
brusca. Ela tem me ajudado em meu trabalho. Meus olhos fechados
para o mundo fazem com que eu me acostume ainda mais à solidão.
Quando você é cego, você é obrigado a passar a maior parte
do tempo de sua vida dentro de um quarto fechado, o que eu
chamo de solidão. Então você se sente realmente só, dentro
de você mesmo e você adquire o hábito de se deixar levar pelo
próprio tempo. Então é aí que a gente descobre que o tempo
custa a passar, caminha muito devagar.
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Jorge Luiz Borges detesta se definir como pessoa e como escritor.
Mas diz que tentou uma só vez definir-se e essa definição
está publicada na "Nova Antologia Pessoal". Sabe o texto de
cor:
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Borges - Eu vivo, deixo-me viver, para que Borges
possa tramar sua literatura e essa literatura me justifica.
Nada me custa admitir que tenho conseguido algumas páginas
válidas, mas essas páginas não me podem salvar talvez porque
o melhor delas não pertença a ninguém, nem sequer ao outro,
mas à linguagem e à tradição. Além disso, sou destinado a
perder-me, definitivamente, e só algum instante um poderá
sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, embora
conheço seu costume perverso de falsear e magnificar. Spinoza
entendia que todas as coisas querem se preservar em seu ser;
a pedra quer ser eternamente pedra e o tigre um tigre Mas
vida é uma fuga, tudo perco e tudo é esquecido ou é do outro.
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Borges diz que ele é duas pessoas. Ele e um outro Borges que
existe dentro dele, que agora não interessa definir. São duas
pessoas distintas, mas com uma raiz comum. O velho senhor
faz questão de frizar:
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Borges - Com uma raiz comum.
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Cinco poltronas velhas, a mesa redonda, as fotos de sua mãe
na parede, muitas fotos de sua mãe Eleonor Acevedo Borges.
Um desejo de ir até o cemitério. A biblioteca inglesa de seu
pai. Nem se lembra bem de seu pai. Já escreveu sobre ele,
mas não se lembra bem. Só se lembra da biblioteca inglesa.
Vontade de ir ao cemitério, ver Eleonor, Eleonor Acevedo Borges.
Seus livros traduzidos para vários idiomas. Até malaio:
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Borges - Malaio, não é engraçado? É engraçadíssimo.
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E deixa claro: seu grande amor é pela literatura medieval
anglo-saxônica e escandinava.
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Borges - Afinal, um escritor deve ou não participar
da vida política e social do seu país? Não, não, absolutamente
não. Se ele participar, deve ser como cidadão, nunca como
escritor.
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A respiração ofegante, um cansaço que vem de dentro, o corpo
molhado, manchas de suor aparecendo na camisa e o lenço passado
algumas vezes no rosto. Fala com raiva:
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Borges - A democracia é uma coisa que não existe,
uma superstição do homem que pensa que é livre. Por isso eu
sou favorável aos regimes militares, duros. Por exemplo: eu
estive na Guerra Civil Espanhola, ao lado dos republicanos,
mas logo percebi que Franco era merecedor de todos os meus
elogios...
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Silêncio e raiva na boca e no rosto de Borges, que passa o
lenço azul com manchas escuras de suor no rosto.
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Borges - Cale a boca, você está morto!
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O velho senhor lembra agora das palavras que um estudante
lhe disse certa vez em Nova York:
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Borges - Cale a boca, você está morto!
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O velho escritor estava nos Estados Unidos participando de
um seminário sobre "A Sociedade e as Artes na América Latina".
Então os estudantes começaram a falar mal do velho senhor,
que ele se mantinha distante dos problemas da América Latina,
preferia escrever suas coisas sem participar de nada, sempre
junto de sua eterna mãe. Faz tempo. O velho Borges lembra
agora. E dá seu único sorriso, que vira uma quase gargalhada:
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Borges - Eu estou morto, é verdade. Toda a América
Latina está morta comigo.
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A sempre certeza do fracasso em tudo que faz. Não quer falar
nisso, mas tem sempre a impressão de que vai fracassar em
tudo. E nisso, há alguma coisa oculta, qualquer coisa de Deus,
que também não acredita. O velho senhor não é religioso:
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Borges - Vejo Deus apenas como uma coisa estética.
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Seu casamento fracassou. Realizou-se de repente e, de repente,
foi anulado. Durou um dia. Mas não quer falar nisso. Literatura
brasileira? Não conhece quase nada, só alguns poemas de Carlos
Drummond de Andrade, o nome de Euclides da Cunha, alguns poemas
de Cecília Meireles:
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Borges - Sou cego, não posso ler.
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Antes gostava de passear pelos bairros do sul de Buenos Aires.
Hoje não faz mais isso. As pessoas têm que ajudá-lo a atravessar
as ruas.
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Borges - Hoje não me interessa mais nada.
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A briga com Neruda?
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Borges - Mentira. Eu até gostava muito dele. Ele
esteve aqui em Buenos Aires uma vez e me procurou. Mas eu
me neguei a recebê-lo. Mas foi só por questão política. Ele
devia ser um bom homem.
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Afinal, qual é a sua posição literária diante da literatura
argentina, latino-americana e universal? Borges diz que
não tem nada a responder. Mas afirma que no seu livro "Elogia
de la Sombra" há uma explicação que pode servir. "É só ler".
O
texto:
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Borges - Não sou possuidor de uma estética. O tempo
me ensinou algumas astúcias: evitar os sinônimos que têm a
desvantagem de sugerir diferenças imaginárias; evitar hispanismos,
argentinismos, arcaísmos e neologismos; preferir as palavras
habituais, as palavras assombrosas; intercalar no relato traços
circunstanciais exigidos pelo leitor; simular pequenas incertezas,
já que, se a realidade é precisa, a memória não o é; narrar
os fatos (isto eu aprendi com Kipling e nas sagas de Islândia)
como se não os entendesse totalmente; recordar que as normas
anteriores não são obrigações, e que o tempo se encarregará
de aboli-las. Tais astúcias ou hábitos não configuram certamente
uma estética. Ademais, descreio das estéticas. Geralmente
não passam de abstrações inúteis, variam para cada escritor
e ainda para cada texto, e não podem ser outra coisa senão
estímulos ou instrumentos ocasionais.
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Borges evita falar de literatura. Não acredita em quase
nada. Sem querer, fala de novo na sua mãe, sempre querendo
morrer. Viver tanto tempo é demais. As coisas vão ficando
longe. O velho senhor não gostava dessas palavras, até que
Eleonor se foi. Às vezes é sentimental. Mas se reprime:
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Borges - Isso é asqueroso.
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A desconfiança de qualquer jornalista. O nome perguntado
várias vezes. O nome repetido várias vezes. Um certo receio
de falar. "Para quem estou falando?" Não toma conhecimento
das notícias de jornal, "porque tudo é efêmero":
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Borges - Os povos antigos não tinham jornais, o
Renascimento, a Idade Média. Em doze horas não pode acontecer
muita coisa importante. Importante foi o homem chegar à Lua.
E depois disso? O que os jornais publicaram de importante?
Nada, nada.
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Pensa assim mas costuma guardar o que escrevem dele, declarações
suas, cercadas de polêmica:
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Borges - Quando Cristo foi crucificado, isso não
foi um fato importante. Ele era um malfeitor entre outros
malfeitores e talvez tivesse aparecido entre as notícias policiais,
se existissem jornais. Eu sou ateu, não obstante, a morte
de Cristo foi um dos fatos mais importantes da história da
humanidade. Quer dizer: as coisas não são percebidas quando
acontecem, mas depois que acontecem.
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Agora Borges fala da morte já desejada há algum tempo. Sem
imortalidade. Um desejo profundo, os olhos procurando vultos,
a morte não o assusta, nunca o assustaria. Não existe nada.
Já viveu demais. Fez muitas coisas. Algumas que dizem ser
importantes. Dizem até que ele é o maior escritor do mundo:
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Borges - É, dizem. É interessante, mas para mim
não tem o menor fundamento.
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Amargo, o velho senhor. A tristeza de um apartamento vazio.
O barulho do elevador no corredor, de minuto a minuto, barulho
forte, que incomoda o velho escritor em sua poltrona negra.
A noite é difícil conciliar o sono. Tem alguns poucos amigos
para conversas que não levam a nada. A pátria completamente
destroçada, porque afinal ama alguma coisa: a Argentina,
a imensa Argentina que "anarquizaram totalmente". E assim
toda a América Latina, com seus mortos escritores, escritores
fantasmas, que não existem, tirando apenas Bioy Casares.
Chirinos Campos e Eduardo Malles, todos de sua terra. O
resto não existe. Foram todos acidentes. E a América Latina
não passa de uma ficção mal feita. Ninguém se sente latino-americano.
Assim pensa Borges. E assim Borges pensa, por exemplo, da
raça negra:
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Borges - Inferior em tudo, que nada fez. Se não
existissem negros, a história do mundo não mudaria em nada.
Uma raça que só sabe viver da imitação das coisas dos homens
brancos.
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O velho senhor volta a sentir raiva, fala alto:
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Borges - Uma raça que só sabe viver da imitação
das coisas dos homens brancos.
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A bengala batendo no chão. Um pouco de chá. Borges está
com sono. Os olhos apagados querem se fechar. O ar superior,
estúpido demais para caber num rosto só, dentro do corpo
de um grande escritor, que não acredita em ninguém, nem
em si mesmo, por descrença, por uma solidão que vai matando
as pessoas aos poucos, sem deixar-lhes saída alguma, com
todas as portas fechadas e um corredor escuro demais, sem
fim, para onde, afinal, seus passos insistem em seguir.
Agora é noite lá fora. E noite dentro do velho senhor. Em
Buenos Aires são exatamente 20 horas e 45 minutos.
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