JANGO SABIA QUE IRIA CAIR, AFIRMA SERRA


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 27 de março de 1994

Jango sabia que iria cair, afirma Serra
As verbas da UNE eram oficiais, e o relator do Orçamento era amigo do general Castello

JOÃO BATISTA NATALI
Da Reportagem Local

José Serra (PSDB-SP), 52, era presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) quando João Goulart foi deposto pelo movimento militar de 64. Na época aluno do último ano da Escola Politécnica da USP, Serra permaneceu no exílio por 14 anos. Estudou economia na França e no Chile e se doutourou nos Estados Unidos, onde lecionou na Universidade de Princeton.
Secretário do Planejamento do governo Montoro (1983-1986), e a seguir deputado federal , ele revela que já em outubro de 1963, reunido com um grupo de confidentes, Goulart - que acabava de fracassar em seu plano de decretar o estado de sítio - disse estar certo de que não concluiria seu mandato.
Folha - O presidente da UNE era um personagem político de primeiro plano em 64?
José Serra — Não diria isso, mas o fato é que a UNE tinha uma força relativamente grande, bem maior que hoje. A força do movimento estudantil é inversamente proporcional à fragilidade dos movimentos sociais em seu conjunto. No começo dos anos 60, o movimento sindical era bastante mais fraco.
Folha - Os militares retrataram a UNE como o braço da agitação dos comunistas.
Serra — A UNE era um instrumento de agitação dos estudantes e não de um partido em particular, como o PCB. A dinâmica do movimento estudantil não era partidarizada como hoje. Havia, isto sim, muitos mitos a respeito da UNE.
Folha - O fato de a UNE receber dinheiro do exterior era apenas um mito?
Serra — Era pura mistificação. As verbas da UNE eram verbas oficiais, e o relator do Orçamento era, inclusive, um deputado da UDN e amigo do general Castello Branco.
Folha O sr. tinha motorista, secretária, seguranças?
Serra — Não, nada disso. Não havia nada de especial na sede da UNE na Praia do Flamengo. Os estudantes andavam de gravata. Eram comportamentos diferentes dos que se pratica hoje no Brasil.
Folha — O sr. teve algum contato pessoal com o Jango?
Serra — Sim, umas três ou quatro vezes. Ele me deixou a impressão de ser um homem extremamente cordial e bastante frágil. Não era alguém preparado para exercer a Presidência da República.
Folha Houve algum contato seu com San Thiago Dantas?
Serra — Só uma vez, quando eu era o presidente, em São Paulo, da União Estadual dos Estudantes. Tenho dele uma impressão extraordinária, com sua capacidade de articulação, de expor idéias.
Folha - A AP (Ação Popular, grupo de esquerda originalmente ligado à Juventude Católica) era próxima da Igreja. Não havia um conflito entre vocês, os socialistas, e a hierarquia católica que era bem mais próxima do establishment?
Serra - O relacionamento era cordial.
Folha - Houve algum momento em que, como homem da AP, o sr. precisou brigar muito mais com os comunistas dentro da UNE do que com a direita que conspirava?
Serra - Eram relações de naturezas diferentes, mesmo porque com a chamada direita as relações do movimento estudantil eram escassíssimas.
Folha - Vocês tinham uma visão acrítica de Fidel Castro?
Serra - Cuba era para nós importante por ter-se libertado de uma ditadura, por ter feito reforma agrária, afrontado os EUA. Eram coisas menos relacionadas com o socialismo. Sensibilizava bastante a juventude politizada.
Folha - Havia contatos seus com o embaixador cubano?
Serra - Nenhum.
Folha - A UNE chegou a receber a oferta de armas por parte dos militares próximos a Jango para resistir ao movimento de 64?
Serra - De forma nenhuma. Uma proposta dessas apareceria como algo de delirante. Não teríamos inclusive a mínima preparação. Evidentemente, a percepção do outro lado não era essa.
Folha - Mas quando Jango foi deposto vocês convocaram uma greve e pararam as universidades.
Serra - É verdade. Mas àquelas alturas, para mim, o golpe já era uma coisa certa. Eu acreditava que o presidente cairia desde outubro de 63, quando ele procurou instituir o estado de sítio para, entre outras coisas, prender os governadores de São Paulo (Adhemar de Barros) e da Guanabara (Carlos Lacerda).
Folha - Mas não eram dois "inimigos" da UNE?
Serra - Há um outro fator. Nossas relações com Jango não eram boas. Tínhamos como hipótese que o presidente tendia a promover um golpe do estilo Estado Novo, o que contrariava toda a tradição da UNE. Cheguei a dizer num comício, ao lado do Jango, que nós nos opúnhamos às intervenções em São Paulo e na Guanabara. Seria um golpe com consequências imprevisíveis.
Folha - O estado de sítio seria um golpe?
Serra - Seria e o foi apresentado assim, numa reunião da qual participei. Nela, o presidente confidenciou não acreditar mais que terminaria o seu mandato. Foi seis meses antes do golpe.
Folha - Ele então partiu para uma espécie de suicídio político?
Serra - De certo modo sim, como por exemplo quando Jango demitiu Carvalho Pinto do Ministério da Fazenda. Havia na época um movimento para que Brizola o substituísse.
Folha - Se opondo a essa ambição de Brizola, a UNE não dava muito palpite em coisas que não eram de sua alçada, e com isso abastecia de argumentos os adversários da esquerda no movimento estudantil?
Serra - Pode ser. Mas o contexto era outro, éramos bastante imaturos.
Folha - O sr. foi um dos oradores do comício do dia 13, não é?
Serra - E não foi a primeira vez. Mas o que realmente foi interpretado como uma insensatez incrível foi a revolta dos marinheiros e a anistia aos revoltosos. Isso seria motivo para desestabilizar o regime e desembocar num golpe para a derrubada de qualquer presidente.
Folha - O episódio foi produto apenas da burrice, ou teriam interesses outros?
Serra - Pode ter havido provocação, mas a meu ver o predominante foi aquela espécie de suicídio político de Jango, sua intenção de, ao ser deposto, retirar-se para São Borja e depois voltar ao poder, a exemplo do que ocorrera com Getúlio em 1950. Samuel Wainer me disse ter certeza de que era essa a estratégia dele.

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