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FARSA PRECIPITOU O MOVIMENTO MILITAR
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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Na
noite de 30 de março, todo o país estava ligado no
discurso de Jango no Automóvel Clube do Rio
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JANIO DE FREITAS
Colunista da Folha
A parte militar do golpe de 64 foi precipitada por uma grande
farsa, vivida por uma parte dos seus protagonistas como farsa
mesmo e, pela outra, como um equívoco, mas tomada pelos
adeptos do golpe como realidade. A farsa tinha o nome de "dispositivo
militar do Jango", uma suposta estrutura montada organicamente
dentro das Forças Armadas, para sustentar as "reformas
de base" que nunca saíam do papel e se tornavam cada
vez mais radicais no palavrório propagandístico
dos janguistas.
Nas mesmas proporções, o "dispositivo militar"
inspirava confiança ao janguismo e temor a seus adversários.
Os militares mobilizados pelo "perigo de comunização"
seguiam, mais do que a qualquer outra, a orientação
do general Castello Branco, chefe do Estado-Maior do Exército.
Contrário a qualquer iniciativa golpista, que considerava
como o pretexto esperado pelo "dispositivo militar"
do janguismo para pôr-se em ação contra os
oposicionistas, o general pregava a tática inversa: as
possibilidades de êxito do antijanguismo estavam em agir
como resistência militar, quando o governo passasse do estímulo
à agitação para o primeiro ato transgressor
das normas então vigentes.
Inspirador e coordenador da guerra psicológica contra as
reformas econômicas e pela derrubada de Jango, mobilizando
o empresariado e usando os meios de comunicação,
o general Golbery, já reformado, tinha o mesmo ponto de
vista tático de Castello Branco. O lacerdismo militar era
mais afoito, mas o fracasso de suas aventuras golpistas contra
Juscelino o desacreditava e, sobretudo, o temor suscitado pelo
"dispositivo militar" o refreava e subordinava à
orientação mais cautelosa de Castello. Assim, a
conspiração fervilhava, mas as incompatibilidades
políticas no seu interior (Castello e Golbery, por exemplo,
repeliam o lacerdismo) não impediam a observância
monolítica à tática de não provocar
o perigoso "dispositivo militar", esperando para reagir.
Repentinamente, um dos ramais da conspiração rompeu
com a tática e em 5 dias, a partir da semi-anistia aos
marinheiros rebelados no Sindicato dos Metalúrgicos do
Rio, em 27 de março, ultimou e desfechou um golpe independente.
Neste intervalo, tentara atrair os líderes de outras correntes,
não incluído nisso o lacerdismo, mas seu êxito
limitou-se ao embarque de um punhado de oficiais para Minas, onde
eclodiria o levante para o golpe. A quase totalidade dos demais
foi surpreendida pelo 31 de março, restando-lhe aderir
-juntamente com muitos dos considerados confiáveis pelo
"dispositivo militar". O que acontecera para motivar
a repentina cisão tática, afinal vitoriosa?
Na noite de 30 de março todo o país estava ligado
no discurso que Jango faria para um auditório superlotado
de cabos e sargentos, no Automóvel Clube do Rio. Dois dos
seus amigos pessoais, Samuel Wainer e João Etcheverry,
foram ao encontro dele no Palácio Laranjeiras, para repassar
o discurso preparado e acompanhá-lo ao clube. Encontraram
um Jango inesperado. Abatido, muito nervoso, relutava em ir ao
encontro de um pessoal que andava exaltadíssimo e vinha
tomando atitudes de audácia crescente. Jango temia sofrer
provocações, e estava convencido de que aconteceriam.
Fracassados os argumentos em contrário, Samuel Wainer deu
a Jango um produto estimulante, uma das chamadas bolinhas, de
que era consumidor habitual na sua vida agitada. O remédio
funcionou. Foi um Jango mais do que animado que saiu do Laranjeiras
para o clube.
O Jango que se viu e ouviu, naquela noite, era desconhecido. De
ar sempre plácido, fala pausada, gestos comedidos e todo
o aspecto de forte timidez, este era o Jango conhecido. O que
se mostrou na noite de 30 de março de 64 era um homem exaltado,
de fisionomia alterada pela ira os gestos endurecidos, as
veias das têmporas intumescidas. O discurso escrito era
abandonado para a inclusão de frases cada vez mais fortes.
Resultou em discurso de incitação. Foi ovacionado
pelos cabos e sargentos já em francas e sucessivas atitudes
de demolição da hierarquia militar. Mas eles não
sabiam que Jango não estava em seu estado normal. O efeito
animador da primeira bolinha levou à ingestão de
mais uma, no carro, já a caminho do clube. E Jango, dotado
de boa intimidade com os efeitos do whisky, não tinha o
menor preparo para a mistura de álcool e bolinha, aliás,
duas (quando, bem depois do golpe, Etcheverry contou este episódio
a José e Maria Yedda Linhares e a mim, disse haver desaconselhado
a primeira bolinha e protestado contra a segunda e, tendo-o conhecido
bem, acredito que tenha dito a verdade).
Na noite do dia 30, estava generalizada a convicção
de que o discurso indicara faltar pouco para alguma iniciativa
extremada de Jango. Duas personagens puseram-se imediatamente
de acordo na idéia de antecipar-se, precipitando o levante,
já no dia seguinte, 31: Magalhães Pinto, governador
de Minas e aspirante à sucessão de Jango, e o marechal
Odylio Denys, que nove anos antes conduzira as derrubadas dos
presidentes Café Filho e Carlos Luz. A decisão consolidou-se
com a adesão do ramal-motriz da conspiração:
o general Vernon Walthers, cabeça da CIA no Brasil, garantia
a intervenção militar americana se o êxito
da rebelião fosse ameaçado pelo "dispositivo
militar".
Iniciado o levante em Minas, San Thiago Dantas foi a Jango comunicar-lhe
que uma frota americana estava a caminho da costa do Espírito
Santo, para o possível apoio ao golpe. O aviso apenas apressou
a fuga de Jango do Rio: o "dispositivo militar" não
apareceria e Jango não quis acionar o que lhe restava.
Nem mesmo quando a tropa gaúcha, ao menos esta, propôs-se
a resistir.
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