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NEM TUDO FOI TREVA E MARTÍRIO NA CULTURA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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Lembrado
como um período de silêncio e medo, o ciclo cultural
durante o regime militar também teve "Alegria, Alegria"
e gerou o tropicalismo, um movimento que continua influenciando
a melhor cultura do país
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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor da Revista da Folha
A memória que se ergue do pasado é cinzenta, sufocante,
opressiva: censura, exílio, desespero a cultura
brasileira nos anos do regime militar projeta-se na imagem dilacerante
de um herói prometéico condenado ao suplício
pela onipotência do leviatã autoritário, irracional,
devastador. Obras banidas ou mutiladas, autores presos, leituras
clandestinas, universidades sob intervenção. Silêncio
e medo.
A imagem não é falsa, mas considerada homogênea
e genericamente falseia o relevo e aplaina o terreno para que
se erga no horizonte a miragem das mitificações.
Se é impossível pensar a cultura da época
sem a sistemática ação autoritária
do Estado contra o trabalho de artistas e intelectuais, é
igualmente forçoso reconhecer que nem tudo resumiu-se ao
glorificado heroísmo da "resistência".
Nem tudo foi choro e ranger de dentes, nem tudo foi treva e martírio,
e por paradoxal que pareça, ao longo dos anos da ditadura,
a cultura esteve longe de ser condenada à estagnação:
por caminhos muitas vezes insuspeitados e tortuosos, seguiu a
vereda da modernização e da internacionalização,
aperfeiçoou suas técnicas, desenvolveu novos instrumentos,
confrontou-se com o consumo e desprovincianizou-se.
A idéia de que cultura e regime caminharam sempre em sentido
oposto e conflitante e de que a atuação do Estado
e de seu "sistema" voltou-se monoliticamente para a
destruição do meio cultural elimina, pelo maniqueísmo,
nuances que podem ser esclarecedoras.
Não se trata de refazer a história e dotar o período
autoritário de um vetor positivo em seu confronto com a
produção cultural, mas de se reconhecer que houve
etapas diferentes, com graus diversos de intervenção,
e que o modo pelo qual o Estado relacionou-se com a cultura não
se restringiu à negatividade da repressão.
Se do ponto de vista político e econômico, o governo
militar apresentou-se para viabilizar, a ferro e fogo, a inserção
do Brasil numa nova etapa do mundo capitalista, que já
se desenhava nos anos do desenvolvimentismo, sua estratégia
diante da área cultural não foi a da mera e brutal
aniquilação, mas a de promover uma crescente institucionalização
do sistema de produção artística e intelectual,
seja sob o patrocínio do Estado (como nos casos da Embrafilme
ou da Funarte), seja na organização de uma indústria
cultural moderna e bem aparelhada cujo caso exemplar é
a Rede Globo.
Neste sentido, o período autoritário correspondeu
à passagem de uma cultura de forte inclinação
antimercadológica, marcada pela experimentação
estética ou pela pretenção revolucionária
(com todos os seu cacoetes populistas) para um regime de criação
cultural cada vez mais voltado para o mercado e o consumo.
Duas atitudes básicas, nem sempre distantes entre si, mas
diversas em seus programas e projetos , caracterizaram a resposta
do setor cultural ao advento do Brasil sob governo militar.
De um lado, acirrou-se a reação marcadamente militante,
mais diretamente identificada com as propostas político-ideológicas
das esquerdas organizadas, cujas manifestações procuravam
realçar o que se entendia na época por "cultura
nacional e popular", rechaçando a influência
"imperialista" e suas armas culturais entre as
quais incluiam-se a televisão voltada para o consumo e
para a "alienação", as formas artísticas
"americanizadas", a cultura pop e até... a guitarra
elétrica.
Esta vertente, francamente conteudista, derivava das experiências
realizadas no período pré-64 pelos Centros Populares
de Cultura (CPCs), ligados à União Nacional dos
Estudantes, que privilegiavam a "mensagem" e procuravam
falar uma idealizada linguagem do "povo".
A cultura, neste caso, deveria submeter-se ao imperativo maior
da transformação política e evitar a qualquer
custo e combater as formas identificadas com o "domínio
ideológico do imperialismo", com a elitização
e o formalismo.
De outro lado, fixava-se a vertente que, igualmente em confronto
com o regime autoritário e com o obscurantismo oficial,
considerava inevitável e mesmo desejável que o país
mantivesse seus ponteiros acertados com a contemporaneidade, abrindo-se
para as influências da cultura de massa, para a modernização
tecnológica e para os movimentos internacionais.
Herdeira do modernismo antropofágico de Oswald de Andrade,
inclinada a experimentações de vanguarda e vôos
formais, esta vertente, nem por isso descurava da inspiração
popular.
Foi este ramo da genealogia cultural dos anos 60, muito mais do
que o tronco conteudista, que melhor soube trabalhar esteticametne
e, neste sentido, politicamente as novas informações
do Brasil pós-64, produzindo uma cultura ao mesmo tempo
sensibilizada pelos temas ligados à desigualdade social
e à liberdade (não apenas política, mas também
comportamental) e interessada em inovar, expandir, reler e reelaborar
o repertório formal da época.
Seu ponto alto e de ebulição aconteceu
com a eclosão do tropicalismo em 1968, que catalizou, formalizou
e dotou de um sentido orgânico, em torno da proeminência
da música popular, manifestações de áreas
diversas, anteriores ou paralelas ao movimento propriamente dito.
O tropicalismo, antes de uma inveção original e
específica de um grupo liderado pelos compositores Caetano
Veloso e Gilberto Gil, foi a elaboração no terreno
da canção popular "universitária"
de um sentimento de época e de uma estética que
se já não estava "pronta", certamente
tinha seus traços nitidamente delineados em momentos da
tradição moderna brasileira e em obras marcantes
do período, como os filmes do cinema novo, especialmente
de Glauber Rocha, o teatro de José Celso Martinez Correa
e a arte de Hélio Oiticica que cunhou o termo "tropicália",
título de uma obra sua, adotado por Caetano Veloso na canção-manifesto
do movimento.
Num Brasil em que se exacerbavam os emblemas do arcaísmo
ideológico (a carolice conservadora, o bacharelismo de
província, a cafonice de sala de jantar, triunfantes no
primeiro momento pós-golpe); onde sobressaíam os
contrastes entre o atraso e a modernização; e onde
propunha-se como alternativa cultural o nacionalismo purista e
retrógrado, coube ao tropicalismo, em sentido amplo, retomar
a "linha evolutiva" da cultura e apresentar uma resposta
crítica, cáustica, alegre e alegórica, ao
direitismo oficial e ao populismo de esquerda.
O movimento incorporou as sugestões dos novos meios, quebrou
preconceitos diante da TV e da comunicação de massa,
abriu-se à informação internacional, absorveu
códigos do repertório erudito, bebeu na fonte popular
e produziu um momento raro de refinamento estético na cultura
brasileira recente.
Seus efeitos atingiram a própria reflexão universitária,
às voltas com a intervenção "saneadora"
do regime, e sensibilizaram representantes da alta cultura casos
dos conflitantes Roberto Schwarz, crítico que dedicou,
no calor da hora, um ensaio ao movimento (que é ali qualificado
de um "esnobismo de massas") e dos poetas e ensaístas
ligados ao movimento da poesia concreta, especialmente Augusto
de Campos, cujo livro "Balanço da Bossa e Outras Bossas"
frequentou a cabeceira de mais de uma geração.
Olhados com extrema desconfiança por setores da esquerda,
mas também pela direita no poder, os principais protagonistas
do movimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil, hoje unanimidades
nacionais, acabaram presos em 1969 e obrigados a um exílio
em Londres.
Expressão de uma crise, o movimento que lideraram foi a
expolsão e o estilhaçamento da bomba de energias
criativas dos artistas e intelectuais dos anos 60 que, a partir
da década seguinte, se veriam às voltas com um longo,
complexo e espinhoso processo de esfacelamento de suas utopias
e de adequação de seus projetos ao realismo do mercado
e do consumo.
Este novo momento, que se desenhou com nitidez a partir do governo
do general Ernesto Geisel, foi precedido por um período
de recrudescimento da repressão e de radicalizações
no campo das esquerdas e do movimento cultural.
Aqui quando a guerrilha e a luta armada seduziam jovens militantes,
um setor da juventude, ainda sob influência da radiação
tropicalista, fez florescer um controverso, mas interessante movimento
de contracultura, voltado para produções "marginais"
influenciado pelo ideário da "revolução
interior" e da rebeldia comportamental. Época de "sufoco"
(para usar uma expressão então corrente), de experiências
com drogas e de muitas viagens algumas boas, outras más,
outras tantas fatais.
O fato de que artístas daqueles idos permaneçam
iluminando jovialmente a cena cultural do país demonstra
que aquela foi uma geração como poucas entre as
que amaram e fizeram arte sob a constelação do Cruzeiro
do Sul.
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