CAIXA PAULISTA É LESADA EM CR$ 600 BI

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 23 de novembro de 1986

A Caixa Econômica do Estados de São Paulo assumiu os prejuízos de "operações irregulares e dolosas" contratadas nos governos Paulo Egydio Martins e Paulo Maluf. Levantamento oficial revela que dois negócios de liquidação duvidosa "lesaram a instituição em cerca de Cr$ 600 bilhões" (valor de dezembro último). Segundo apurou Frederico Vasconcelos, do Painel Econômico, esses prejuízos eram amenizados em balanços com valores simbólicos. O primeiro demonstrativo "transparente" só surgiu em janeiro passado. O governo do Estado teve que bancar um aumento de capital de Cr$ 550 bi para recompor o patrimônio da instituição.
Em dezembro de 1985, a Caixa Econômica Estadual registrava um prejuízo de Cr$ 324 bi e um patrimônio líquido negativo de Cr$ 545 bi. Mas o presidente da Caixa, José Maria Arbex, está otimista, e o ex-presidente e atual secretário da Fazenda, Marcos Fonseca, acredita que a Caixa agora pode "fazer seu saneamento".

Caixa estadual assume prejuízos de governos passados

A situação financeira da Caixa Econômica do Estado de São Paulo poderá ser a primeira herança indigesta para o futuro governador de São Paulo, Orestes Quércia. Ele receberá uma instituição que acumulou prejuízos durante vários anos, disfarçados em sucessivos balanços com valores simbólicos, que não retratavam sua real situação patrimonial e financeira, e escondiam as perdas com operações irregulares contratadas nos governos anteriores. Apenas duas dessas operações -nos governos Paulo Egydio Martins e Paulo Maluf- "lesaram a instituição em cerca de Cr$ 600 bilhões", segundo levantamento oficial concluído no ano passado.
A decisão de publicar balanços que apresentassem abertamente a situação da Caixa somente foi tomada no início deste ano pelo governo Montoro, após um difícil processo de discussão interna que não veio a público. Paradoxalmente, o saneamento das contas agravou a situação econômico-financeira da Caixa, deixando ainda mais debilitada para enfrentar o Plano Cruzado.
O primeiro balanço "transparente" foi publicado em janeiro último (relativo ainda ao semestre encerrado em junho de 1985). Mas os indícios da carga transferida para o governo Montoro começaram a vir à tona, ainda discretamente, no primeiro relatório da administração Marcos Fonseca (referente ao período janeiro/junho de 1983), com a inclusão de Cr$ 12 bilhões no item "ajustes de exercícios anteriores", a título de "provisão adicional para créditos de liquidação duvidosa". O resultado daquele semestre foi ainda onerado em mais Cr$ 3 bilhões , sob o título de "perda extraordinária", como decorrência desse procedimento.
Na prática, esse ajuste "correspondia a uma republicação de balanço", diz Fonseca, ao comparar seu primeiro demonstrativo com os da administração anterior. Mas o seu relatório não fazia qualquer menção às irregularidades que exigiram aqueles ajustes. O governo Montoro optara por não fazer alarde, "no interesse da própria instituição", revela Fonseca, atual secretário da Fazenda do Estado.

Surge a "transparência"

A primeira referência explícita às perdas causadas por negócios irregulares ocorridos em outras administrações surgiu no balanço do exercício janeiro/junho de 1985, publicado em janeiro de 1986 pelo ex-presidente da Caixa e atual secretário da Agricultura, Gilberto Dupas. Alí estão citadas a "Operação Centreville", no governo Paulo Egydio Martins, e as operações de "Lease-back", no governo Paulo Maluf (ver box).
O mesmo balanço já revela um prejuízo de Cr$ 99 bilhões e um patrimônio líquido negativo de Cr$ 356 bilhões. Ou seja, em junho do ano passado, as obrigações da Caixa superavam em Cr 356 bilhões o que a instituição tinha a receber e de patrimônio. Isto obrigou o governo Montoro a bancar um aumento de capital - também sem maior divulgação - para cobrir rombos de administrações passadas.
No balanço seguinte (julho/dezembro de 1985), o prejuízo passou de Cr$ 99 bilhões para Cr$ 324 bilhões e o patrimônio líquido negativo subiu de Cr$ 356 bilhões para Cr$ 454 bilhões.
As previsões mais recentes indicam a possibilidade de a Caixa fechar o exercício de 1986 com um prejuízo estimado entre Cz$ 2 bilhões e Cz$ 3 bilhões. Estes números não são oficiais, mas a Caixa não os desmente. O balanço do primeiro semestre ainda não foi publicado. Sabe-se que ele retrata com clareza a atualização daqueles valores desfavoráveis e, principalmente, o impacto da nova realidade provocada pelo Plano Cruzado. (A partir de março, houve um descompasso entre a correção dos saldos devedores dos contratos e o percentual aplicado aos depósitos em cadernetas).

"Operações dolosas"

Além de conviver com as dificuldades comuns às outras caixas econômicas - que vinham operando com margem negativa, pois os custos de captação eram superiores às receitas dos financiamentos - a Caixa Econômica do Estado de São Paulo está absorvendo os efeitos retardados daquelas operações "dolosas e irregulares", segundo o relatório, que não eram contabilizadas como créditos duvidosos nos balanços.
Ao registrar valores irreais, os balanços "amenizavam" a situação patrimonial da instituição, através de procedimentos contábeis e financeiros que permitiam apresentar resultados relativamente equilibrados. Ainda segundo o mesmo documento, desde 1982 o provisionamento das perdas realizadas em governos anteriores vinha sendo feito em valores simbólicos, um procedimento então permitido pelo BC.
Em 1984, o BC exigiu o provisionamento total e de uma só vez das perdas com todos os contratos deteriorados vindos de administrações anteriores (ver box). O atendimento a essa exigência foi feito na administração de Dupas, depois de longa troca de correspondência com o BC. A medida obrigou a Caixa a registrar, no balanço de junho de 1985, Cr$ 455,5 bilhões no item "provisão para créditos de liquidação duvidosa" - um valor cinco vezes superior ao atribuído um ano antes (Cr$ 84,9 bilhões) ainda na gestão de Fonseca. Do total do ativo (Cr$ 13,9 trilhões) quase 10% correspondiam a crédito imobiliário em liquidação (Cr$ 1,2 trilhão).
A decisão de acatar o critério exigido pelo BC não teria sido pacífica. Ela foi tomada sem maior divulgação, mas sabe-se que deixou de ser executada no início da administração Montoro porque temiam-se os efeitos negativos dessa "transparência" para a imagem da instituição. A Caixa também não aceitava fazer o provisionamento num único semestre, como exigia o BC. Ainda hoje Fonseca discorda dessa prática: "Na minha opinião, os critérios do Banco Central superdimensionam o problema, ao exigir um superprovisionamento, e dão uma visão mais pessimista do que real da situação da Caixa".
Fonseca, contudo, admite que não é normal uma caixa econômica conviver com prejuízo e com patrimônio negativo, ainda eu esta possa ser uma situação passageira. Ele nega que haja deterioração da situação econômico-financeira da Caixa e insiste em que ela tem uma liquidez excelente, que pode ser medida pelas suas aplicações no mercado financeiro. "Há algum descompasso entre as demonstrações econômicas e a movimentação financeira, o que, para mim, é um indício de que esta questão está exagerada", diz Fonseca. Teria havido, então uma curiosa inversão: quando assumiu a presidência, Fonseca encontrou balanços otimistas, mas que não refletiam a deterioração da Caixa; agora, ele diz que os balanços não traduzem a boa saúde econômico-financeira da instituição.
A julgar pelo relatório que publicou ao deixar a Caixa, o sucessor de Fonseca tem uma opinião diferente.

Recompondo o patrimônio

De posse de um diagnóstico que encomendou à firma de auditoria Boucinhas, Campos e Claro, e pressionado pela exigência de provisionamento total feita pelo BC, Dupas procurou o governador Franco Montoro. Apesar da "difícil situação orçamentária" do Estado, conforme consta do relatório, Montoro autorizou um aumento de capital de Cr$ 550 bilhões (a Secretaria da Fazenda subscreveu Cr$ 300 bilhões em 1985, deixando para integralizar o restante em duas parcelas este ano). O aumento de capital destinava-se a "iniciar um processo de capitalização da Caixa e a recompor progressivamente o patrimônio da instituição".
A decisão de enfrentar a carga imposta pelas administrações passadas atropelou o esforço que vinha sendo desenvolvido para alcançar o equilíbrio financeiro da Caixa. Seguindo o estudo feito pela consultoria, a partir do final de 1984 o "spread" (taxa de risco) das operações imobiliárias passou a ser sensivelmente negativo. As causas desse desequilíbrio foram identificadas como o crescimento do custo de captação (principalmente em função da passagem da remuneração dos depósitos de poupança do regime de trimestralidade para o de mensalidade), o desaquecimento do mercado e a política de arrocho salarial em vigor.
Para atacar essas dificuldades, a Caixa passou a dar maior ênfase às operações da carteira comercial - uma estratégia iniciada por Fonseca - onde se acreditava poder chegar a resultados financeiros que pudessem equilibrar os resultados negativos do setor imobiliário. De fato, os números de 1985 já apresentavam significativos progressos. No segundo semestre do ano passado, os depósitos à vista cresceram bem acima dos meios de pagamento e da média do setor bancário.
A área comercial melhorou consideravelmente a performance da Caixa. Como apenas 5% de depósitos em relação aos do setor imobiliários, ela pôde suportar, no final do ano passado, 85% do total do prejuízo da carteira imobiliária e das despesas gerais.
Foi a partir deste cenário que a Caixa se viu forçada a absorver, num primeiro momento, as perdas, das gestões anteriores, e, em seguida, o impacto do Plano Cruzado.

À espera de definições

A situação atual da Caixa Econômica do Estado de São Paulo é uma incógnita. Prevê-se que o governo estadual terá que fazer nova injeção de recursos através de aumento de capital, o que é admitido pelo secretário da Fazenda, Marcos Fonseca. Apesar do contínuo comprometimento patrimonial da Caixa, o capital da empresa não era aumentado desde 1974, quando ela foi transformada em sociedade anônima.
O presidente da Caixa, José Maria Arbex, reconhece que esta não é uma situação confortável, mas se diz otimista. Ele conhece de perto todo o histórico recente da Caixa, pois foi diretor-financeiro na administração de Fonseca. Prudentemente, ele evita dar números sobre previsões dos resultados deste exercício. O balanço de junho último ainda não foi publicado. Arbex diz que solicitou ao BC adiar sua divulgação até o final deste mês. Esta decisão teria duas explicações - uma de ordem de política e uma de ordem econômica. Arbex temia que a divulgação de dados sobre o desempenho da Caixa pudesse ser utilizada para fins políticos, antes das eleições de 15 de novembro.
A alegação de ordem econômica vincula-se à expectativa que ele alimenta, de que o governo autorizará, nos próximos dias, medidas que terão reflexos positivos nos resultados de 1986, e que abririam novas perspectivas para o revigoramento da Caixa nos anos seguintes.

Como o BC exige o registro das perdas

A carta circular n° 1154, de dezembro de 1984, do Banco Central, manda as caixas econômicas, no caso de dívidas imobiliárias vencidas há mais de seis meses, contabilizarem todo o débito na conta "Créditos Imobiliários em Liquidação", expressão contábil que significa tratar-se de uma receita pendente e de recebimento duvidoso. Esse critério se aplica às chamadas operações de financiamento à construção - "Plano Empresário" - como é o caso da "Operação Centreville".
Depois de transferida a dívida para a conta "Créditos Imobiliários em Liquidação", a circular determina ainda a provisão, isto é, a reserva de numerário, para as operações em liquidação enquadradas no "Plano Empresário", da diferença entre uma nova avaliação do imóvel, feita por peritos externos, e a dívida em aberto.
Supondo que a avaliação da Caixa feita no momento da concessão do crédito, tenha superestimado o imóvel, a nova avaliação - ainda que descontada a valorização decorrente da inflação - eleva o valor da provisão.

Duas operações lesaram instituição em Cr$ 600 bilhões

Segundo o relatório publicado pelo ex-presidente da Caixa Econômica do Estado de São Paulo, Gilberto Dupas, "operações irregulares de grandes proporções iniciaram um forte comprometimento dos ativos da instituição". Os maiores prejuízos herdados pelo governo Montoro foram causadas pela "Operação Centreville", no governo Paulo Egydio Martins, e pelas operações de "Lease-back", no governo Paulo Maluf, negócios que "lesaram a instituição" em cerca de Cr$ 600 bilhões.
A "Operação Centreville" começou em 1976, na administração de Afrânio de Oliveira, posteriormente nomeado chefe da Casa Civil no governo Paulo Egydio Martins. Consistiu na concessão de empréstimos ao grupo Centreville, para construção de 2.041 casas e apartamentos em cinco cidades do Estado. os financiamentos foram libertados independentemente do ritmo das obras e os recursos foram totalmente sacados quando apenas cerca de 30% tinham sido realizadas.
As operações de "Lease-back" foram autorizadas em 1979, na gestão de Eduardo José Prianti. Consistiu na concessão de financiamentos à empresa Plástica Dias, em estado pré-familiar, com base em avaliações supervalorizadas dos imóveis apresentados para efeito de garantia.
Há vários processos judiciais em curso, envolvendo os tomadores de créditos, empresas que vieram a falir posteriormente, e iniciativas para responsabilizar criminalmente ex-diretores da Caixa.
O ex-presidente da Caixa, Afrânio de Oliveira, morreu no último dia 9. O ex-governador Paulo Egídio Martins disse à Folha que "quando surgiu o indício da possibilidade de irregularidades, mandou abrir uma sindicância, que foi terminada e enviada ao Tribunal de Contas. As providências posteriores foram encaminhadas à própria Justiça e, ao que eu saiba, não se chegou a conclusão nenhuma, nada tendo sido constatado".
O ex-presidente da CEE, Eduardo José Prianti, foi afastado pelo governador Paulo Maluf e processado criminalmente por comprometimento com as irregularidades apontadas.
Segundo o diagnóstico a partir da auditoria contratada por Dupas, estas duas operações eram suficientemente grandes e problemáticas, capazes de desequilibrar a instituição.

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