BRASIL PEDE SOCORRO EM NOVA YORK

Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 20 de dezembro de 1982

Paulo Francis,
de Nova York

O governo brasileiro assina hoje um pacote de empréstimos com 114 bancos, em Nova York. Fala-se em US$ 5 bilhões, mas o presidente do Banco Central diz que são US$ 9,4 bilhões: US$ 5 bilhões de "dinheiro novo" e US$ 4,4 bilhões para o "giro" da dívida anteriormente assumida. Com isso, o País deverá fechar as contas de 1982 e "respirar" em 1983. Segundo a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, reguladora da economia das principais (24) nações do mundo capitalista, o Brasil terá pago US$ 18,2 bilhões em 1982.
A reunião dos ministros Delfim Neto e Ernane Galvêas, mais Langoni, com os banqueiros, começa às 16h30 (hora de Brasília), no Salão Barroco do Hotel Plaza, um dos mais luxuosos de Nova York, e deve terminar às 18h30. Delfim Neto abrirá os trabalhos fazendo uma exposição geral do que foi negociado para fechar o balanço de pagamento do Brasil neste ano. A seguir, falará o sr. Jacques de Laroisère, diretor do Fundo Monetário Internacional, explicando as condições do empréstimo de cerca de US$ 6 bilhões concedido pelo FMI ao Brasil. Depois, o presidente do Banco Central, Carlos Langoni, explicará a administração da dívida externa pelo governo brasileiro. Finalmente, o ministro da Fazenda, Ernane Galvêas, fará uma análise mais longa das circunstâncias que levaram o Brasil a essa posição de emergência, levantando as dificuldades que surgiram no mercado financeiro e no comércio internacional.
O empréstimo de hoje soma-se ao US$ 1,23 bilhão concedido pelo Federal Reserve (Banco Central norte-americano), US$ 1,2 bilhão do Banco para Compensações Internacionais, de Basiléia (Suíça), à parte os US$ 6 bilhões emprestados pelo FMI.

Tensa expectativa

No Brasil, a reunião de hoje em Nova York está sendo aguardada num clima tenso, especialmente nos meios financeiros. Se os principais banqueiros internacionais acatarem o pedido e emprestarem o dinheiro necessário para fazer frente aos pesados compromissos de curto prazo do País, o fantasma da moratória estará afastado, pelo menos por alguns meses. Caso contrário, o Brasil não terá como saldar os empréstimos que estão vencendo e dificilmente escapará de trilhar o mesmo caminho do México, ou seja, o da moratória. Nessa hipótese, ficará ainda mais difícil a situação das agências no Exterior de vários bancos brasileiros, que já sofreram hoje impacto com o recente "acidente de caixa" do Banco do Brasil em Nova York.

Em Nova York, Brasil tenta evitar a moratória

Paulo Francis,
de Nova York

O governo brasileiro assina hoje um pacote de empréstimos com 114 bancos estimado em US$ 5 bilhões. Deverá fechar as contas de 1962 e "respirar" em 1963. Segundo a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, reguladora da economia das principais (24) nações do mundo capitalista, o Brasil terá pago US$ 18,2 bilhões em 1982 (o relatório é oficial e foi divulgado sexta-feira).
A parte do Brasil, segundo a OCDE, México, Argentina e Coréia do Sul dão também sérios cuidados, pois devem 84% (sic) dos juros flutuantes no mercado.
Outros países em sérias dificuldades são Peru, Marrocos, Zâmbia, Costa do Marfim, Nicarágua, Zaire, Jamaica, Filipinas, Sudão e Chile.
A OCDE não computa países não-capitalistas neste relatório, mas como é uma economia só, basta lembrar que o Federal Reserve norte-americano já socorreu Iugoslávia, Hungria, Polônia e Romênia. A URSS não entra na lista porque é a segunda produtora de ouro do mundo (depois da África do Sul) e quando apertada vende ouro e consegue liquidez (vale notar que as própria África do Sul recorreu em cerca de US$ 1 bilhão ao FMI...).
A França foi segura pela Arábia Saudita, com bilhões de dólares. A Espanha periclita. Os países escandinavos vêem débitos crescer geometricamente. Os EUA têm o maior déficit comercial da história, o maior desemprego desde 1942, a maior recessão desde 1933 e a promessa de déficits federais maiores que o PIB da maioria dos países.
A crise de pagamentos brasileira é apenas um dado de uma coleção de desastres que é a recessão mundial. Se o problema é global, a solução também só pode ser coletiva.
Não é jogo de palavras. François Mitterrand não pode praticar política de expansão econômica se o sistema capitalista que encompassa a França está dominado por políticos monetaristas. Da mesma forma, a aritmética de papel dos monetaristas é reduzida à mera abstração se o sistema de bancos quebra porque enfiado até o pescoço em países subdesenvolvidos que não podem pagar o que devem, em boa parte porque são vítimas das políticas de contencionismo dos monetaristas. Duvidar dessa interligação em escala mundial é viver no passado, no mundo pré-1914, em que Estados nacionais tinham ainda uma certa autonomia.
É prematuro, por certo, quando o Brasil tenta fechar contas, discutir abertamente o assunto. Mas o prematuro se torna imediato quando consideramos que o pacote aqui "rola" não só a dívida (que a OCDE abateu para US$ 87 bilhões), mas também as amortizações que deviamos pagar em 1983. Pagaremos, se tanto, os juros. São US$ 9 bilhões em juros, o suficiente, com sobras para uma renovação geral das cidades de Rio e São Paulo... E esses US$ 9 bilhões serão incorporados ao principal da dívida. Pagamos pelo direito de continuar devendo...

Origem da crise

Até 1971 os EUA garantiam taxas de câmbio com ouro. Quem tivesse dólares podia convertê-los em ouro de Forte Knox, nos EUA. Em 1971, sob os efeitos inflacionários e recessionários da aventura da Indochina, Richard Nixon suspendeu essa conversibilidade. O "New York Times", na época (era bem diferente o jornal), fez o cálculo de que os bancos centrais europeus ficaram entalados com US$ 600 bilhões de papel moeda e obrigações, de valor dúbio, para dizer o mínimo. Mas dada a força política e militar dos EUA os aliados tiveram de engolir esse sapo gigantesco. O dólar, sem cobertura de qualquer espécie, continuou a ter os privilégios de moeda internacional, apesar de flutuante. Com isso os EUA exportaram a inflação norte americana aos quatro cantos do mundo, sem assumirem qualquer responsabilidade pelo destino do sistema.
Mas o pior resultado da flutuação é que se criou uma massa de dinheiro que não mais - em parte pela incerteza de resultados - foi aplicada em investimentos que fossem produtivos. Foi aplicada em dinheiro para ganhar dinheiro, jogando nas oscilações cambiais. A Europa tentou se defender com um sistema (a cobra) que mantivesse alguma estabilidade. Os países subdesenvolvidos em crescimento, com regimes fortes, como o Brasil, tiveram acesso a um crédito fácil, que parecia milagroso, e assim foi batizado, mas de valor mais uma vez dúbio, cujo pagamento sempre foi e é indexado à inflação dos EUA, sem que haja correspondência mínima sequer, ou seja, que nossas exportações, onde obtemos dólares para pagar os credores, tivessem indexação à inflacionada importação que suportamos. Ao contrário, o preço de nossas exportações nesse sistema foi mantido enquanto possível em proporção às necessidades de nossos credores e remetentes de lucros.
As limitações deste modelo deveriam dispensar comentários. Mas, não, no Brasil, atacado com bastante ingenuidade pela esquerda (que nega a inter-relação econômica mundial. Ver programa do PMDB), foi sempre defendido como um grande sucesso. O Brasil cresceu durante uma década cerca de 10%. Não se analisou a estreiteza desse crescimento, restrito a setores altamente compensadores e arbitrariamente escolhidos pelos investimentos (em suma, desprezando a imensa maioria do povo, marginalizada pelo sistema), ou o fato simples de que esse dólar que entrava era inflacionário, e que se reduzido ao valor real baixariam em muito as decantadas taxas de crescimento...
O círculo vicioso era claro. Consumidos o mercado de consumo que uma sociedade pobre como o Brasil suporta, as multinacionais se dedicaram às exportações. Em suma, consumiram tudo que entrava, beneficiando apenas a si próprias e aos 30% de brasileiros que participavam do mercado. As contas eram pagas pela multidão restante. Daí é possível dizer que nunca houve tanto dinheiro e tanta miséria no Brasil. nunca houve também o desenvolvimento orgânico necessário a um país realmente estável, isto é, cuja estabilidade não é obtida a cassetete...
Ainda mais claro, a presença anárquica dessa massa de dinheiro - que era mesmo oferecida a nossos ministros, pois pagam em dia, já que podiam explorar o povo à vontade - foi acrescida da habitual instabilidade da sede de lucro que é da essência do capitalismo. A Opep, uma aliança de cartel de multinacionais dos EUA e européias com alguns países feudais produtores, começou a destruir, a engolir os parcos recursos dos países sem combustível que viviam de exportações. Não desarticularam apenas as economias subdesenvolvidas, mas todo o sistema.
Os chamados "choques do óleo" alimentaram a tal ponto a inflação dos pobres, que estes, já reduzidos a pão e laranja, caíram de uns tempos para cá numa miséria única na História. O cálculo é que dois bilhões de pessoas passam fome, metade da humanidade.
E abalaram até as economias ricas, acostumadas a ter direitos civis, um estado de previdência social, que para manter o nível (e a democracia) de seus sistemas recorreram à sanfona de imprimir dinheiro...
E ainda importante é que o mundo industrializado, pela lógica do progresso e do capitalismo, vem conseguindo avanços espantosos em tecnologia, que nos deslumbram desde os vôos interplanetários a "E.T.". mas o preço dessa tecnologia já é evidente. Prescinde mais e mais de mão-de-obra, recorrendo a máquinas. Cria legiões de desempregados. A OCDE calcula que o desemprego irá de cerca de 30 milhões atuais na Europa e EUA a 42 milhões no fim da década. E uma receita de guerra, ou de revolução.
Os efeitos de um capitalismo cartelizado e indiferente a necessidades sociais, como é o da Opep, não trouxeram qualquer consciência de reforma. Ao contrário, nos EUA elegeram Ronald Reagan, cuja política econômica é precisamente dar aos grandes grupos econômicos liberdade total de regulamentações do governo (que não consiga não é por falta de vontade), ou seja, 1, 2, 3 mil Opeps, Reagan poderia dizer, em antítese a Che Guevara.
Não faltaram propostas de reforma. Jimmy Carter ("direitos humanos") e a Comissão Brandt são exemplos: Carter, querendo acabar com a exploração de milhões por oligarquias primitivas, faria do Terceiro Mundo um empregado razoavelmente satisfeito das multinacionais. A Comissão Brandt, no esquema Keynes-plano Marshall, financiaria o Terceiro Mundo a nível de que pudesse ajudar as economias do primeiro, comprando delas, dando a estas considerável margem de lucro, mas ao mesmo tempo permitindo que o Terceiro Mundo, na mesma condição serviçal proposta por Carter, tivesse uma vida menos miserável.
Outros analistas, particularmente na Alemanha Ocidental, reconheceram que a relativa marginalização do mundo comunista da economia de consumo, graças aos pavores de infiltração capitalista, era um campo a explorar. Claro, a URSS só não tem produtos tropicais, tem tudo mais, inclusive as 13 matérias-primas básicas. Aí um imenso campo novo para as multinacionais. Nixon concordou. Em 1972, com o dólar valendo 50% mais que agora, se falava em investimentos da ordem de US$ 3 bilhões, de saída, na Sibéria.
Pouco se fala disso agora. A política Reagan é isolar o mundo comunista e submetê-lo aos EUA, se possível, sem guerra, se não, arriscando a guerra. No Terceiro Mundo, a política é "Opep", que tudo seja aberto ao mercado das multinacionais. Reagan reconhece claro que "esse remédio amargo" pode criar convulsões sociais antes que a "mão invisível" do mercado crie uma "pax americana" econômica. Daí a necessidade de ver Moscou em qualquer insatisfação social, as ofertas de armas a qualquer ditador de meia-tigela, desde que professamente anticomunista, e os exageros do perigo que emanaria de Moscou à estabilidade mundial.
O milagre brasileiro desabou nas realidade econômicas da década de 1970. O sistema tentou criar uma política externa não ideológica que permitisse ao País realmente aplicar o modelo de importação de capitais e tecnologia, a serem pagos por exportações. Deu início a uma modernização infra-estrutural pelo Estado, heresia só tolerada pois imposta por militares. Mas não há ressonância externa, exceto de banqueiros que tentam desesperadamente salvar o que investiram em nossa economia. Nossa divida já foi paga "N" vezes em juros e amortizações. Mas cresce a cada pagamento...
Era um excelente negócio enquanto possível manter a ficção de que o País crescia. Agora, com a corda (aparentemente) afastada do pescoço por um ano, a corda porém continua visível e próxima e se aproximando. É vital que se repense o modelo. Salvá-lo antes é essencial pois faliríamos como Nação. Mas mantê-lo e prosperar é impossível.

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