ANIVERSÁRIO SEM FESTA E SEM OBRAS


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 25 de janeiro de 1981

Um aniversário sem grandes inaugurações e festas. Esta é a realidade de São Paulo aos 427 anos: não há grandes obras para serem entregues e, mesmo que houvesse, a festa correria o risco de fracassar. "Grandes obras não impressionam mais", reconhece o coordenador do Bem-Estar Social do Município, Wilson Quintela Filho.
Os tempos mudaram e a população hoje está empenhada em obter soluções para os problemas de sua própria comunidade. Para isso, ela se organiza em todos os bairros.
O caráter social das reivindicações populares e as pressões dos grupos organizados são admitidos pelas autoridades, inclusive pelo prefeito. De olho no governo do Estado, Reinaldo de Barros insiste em afirmar que deu prioridade a obras na periferia apenas "por razões de coração", já que "elas não rendem votos".

O paulistano resiste à marginalidade

O modelo econômico concentra a renda, reduz a oferta de emprego, elimina a mobilidade social, muda a cidade

Já não se encontra mais na cidade o emprego fácil, aquele mercado de trabalho generoso e farto dos anos cinquenta, pegando o comecinho dos sessenta. E se é escasso o emprego, a cidade reduziu drasticamente, eliminou quase totalmente, para os que a esta altura têm a sorte de um trabalho fixo, as chances de melhoria, de ascensão social, de "subir na vida".
São Paulo cumpre o seu itinerário de posto avançado do capitalismo brasileiro, jovem, senil e dependente -vai se afastando da sociedade aberta e promocional que um dia fez a sua glória, foi seu apanágio, deixa de ser a cidade do imprevisível e da aventura- das fortunas amealhadas com rapidez, da repentina transformação do empregado em patrão, do pedreiro aplicado em bem sucedido empreiteiro, do garçom simpático em alegre dono de restaurante, do artesão criativo e organizado em industrial agressivo e moderno.
Os limites e os horizontes sociais, até há pouco elásticos e móveis, afastam as sombras, espancam as nuvens cinzentas e ganham contornos definidos, expõem linhas duras e inflexíveis. Desaparecem as frestas por onde se introduziam a audácia, o talento ou simplesmente o trabalho sério e dedicado.
A cidade se consolida e se estratifica, perde a informalidade, abandona a espontaneidade, esquece até -por que não?- sua agressividade, já não produz mais os "self-made man" que tanto lhe aguçaram a ambiguidade, seu orgulho e sua vergonha, pecado suave de doce penitência.
São Paulo ganhou disciplina e ordem na produção e no trabalho, a disciplina e a ordem das sociedades acabadas, construídas -agora os rapazes e moças não mais disputam o salário e a posição no trabalho das fábricas, dos escritórios e das lojas, eles têm sua vaga social, seu lugar ao Sol reservados de antemão na Universidade -essa disciplinadora por excelência- embora já não haja lugar para todos. A cidade está programada, afinal, sabe o que quer, selecionou as espécies -uns poucos ficarão no topo, espectadores privilegiados do espetáculo social; outros, milhões, serão postos embaixo, anônimos personagens destinados ao trabalho duro e à gratificação pouca.
Os que estão aqui, os que entraram antes de todas as portas se fecharem não podem mais acalentar os sonhos de mudar de vida -devem ficar onde se encontram. São Paulo agora é a cidade onde a ordem social busca eternizar-se: os pobres serão para sempre pobres, e aqui, pobreza é marginalidade, desterro, chaga, perigosa doença, seus portadores são afastados para pontos distantes- é preciso evitar esse contágio. Os médios devem multiplicar-se em fadiga e "stress" para não descerem na escala social. e os ricos, cada vez mais ricos, dirão como sempre que nada têm a ver com isto, esta cidade é um nojo- seu parco afeto estará agora dedicado a um mar verde, a florestas virgens, a velhos azulejos coloniais, enfim, ao que é velho e ao que não tem vida.
E para cada rico que deixa a cidade, um número desconhecido mas sabidamente enorme de migrantes é impedido de nela ingressar, um outro volume força a porta e entra para engrossar as fileiras da marginalidade.
Os ricos abandonam a cidade, capitulam em continuar a construí-la, desligam-se de sua elite criadora, para eles a cidade está em declínio, deu o que tinha a dar, como tantas outras, é hora de desertar, de entregá-la aos pobres, como os restos de um botim.
Os que chegam não têm mais lugar, não deveriam ter vindo, já não são bem-vindos. Uma antiga frase, tantas vezes repetidas pelo País a fora, que reanimou espíritos, foi tiro de partida para uma nova corrida pela vida, não serve mais, caiu em desuso:
- Vou pra São Paulo, vou trabalhar. Lá recomeço, levanto a cabeça de novo e volto.
Uma frase, meditada ou pronunciada por todos quantos eram despojados de tudo -quase sempre um pedaço de chão pequeno, um gado pouco, uma roça miúda, deserdados pela inclemência da intempérie e pela ambição dos que mandam na terra. Essa decisão vir para São Paulo, não deve, não pode mais ser tomada, ela que reconstruiu vidas, reinventou existências- ainda que sem a terra, sem o gado, sem a roça, sem a volta. Às vezes sem a família, que restou lá, no agreste nordestino, à espera do aviso para viajar no rumo da vida, da cidade dos homens. E que não recebeu esse chamado não veio juntar-se ao chefe, cedeu lugar a uma outra aqui construída igual a outra nos muitos filhos -que esta cidade grande já é dura demais para nela se viver solitário. E quem não precisa de uma companhia que traga calor nessas noites geladas do Sul, desse frio que os do Nordeste tanto sofrem, que até Castro Alves sentia quando aqui esteve, a estudar na Academia; "São Paulo não é Brasil; São Paulo é um trapo de pólo pregado nas fraldas da América", queixava-se o poeta e se ele lamuriava assim, o que dizer de um pião de obra ou de um copeiro de bar, só na fria da cidade imensa?
Esse foi o acordo que a cidade rompeu -dar emprego e no emprego promoção social ao trabalhador nela residente. O confiante homem brasileiro instalado em São Paulo aceitou todos os preços nessa troca: dessem-lhe o emprego e ele moraria mal, numa casa permanentemente provisória, sempre em construção, nos bairros afastados e desprovidos de tudo -em acampamento.
Ele, esse trabalhador, fingiria uma inconsciência quase completa de seus direitos de cidadão e pagaria por serviços que o governo estava obrigado a lhe dar de graça por determinação constitucional e por serem direitos à vida -a educação e a saúde principalmente, mas o lazer e o conforto urbano também. Ele financiou uma das maiores redes privadas de escolas e de hospitais e clínicas do mundo, por tudo pagou e só insistia em que lhe garantissem o emprego, para ele e para a família. Aceitou o rebaixamento de seu salário individual com a contrapartida da ampliação do número de familiares empregados -subverteu o conceito clássico de proletário, não mais um trabalhador que sustenta a prole, mas uma prole que se autosustenta. Desmentiu as teses tão ao gosto acadêmico- rejeitou o paternalismo, comprou com trabalho o seu direito à vida e à cidadania, como no passado faziam os servos da gleba.
Nunca a força de trabalho esteve tão comprometida com a aquisição de outros valores de troca. Bens de valor intangível, excluídos do mercado por interesse do próprio capitalismo, devido a seu caráter auxiliar na manutenção e reprodução da força de trabalho, como educação, saúde, transporte, foram mercadejados correntemente no regime da livre concorrência.
Do Poder Público só queria, esse paulistano por necessidade vital, as linhas de ônibus, o transporte coletivo, instrumento indispensável para garantir o acesso ao trabalho, para permitir as horas extras, os "bicos" e biscates, os trabalhos nas horas de folga e de férias, a atividade durante a madrugada e pela noite adentro. Ele inventou um novo e caleidoscópio mapa da cidade, aquela miriade de linhas ligando sua casa -que ele plantou própria e fixa, cioso da propriedade, atendendo àquele remoto e atávico apelo da terra e da sua posse, usando o imóvel com garantia contra os momentos ruins, evitando o fantasma do aluguel- com o seu trabalho, que ele teve sempre mutável como a estrutura econômica da cidade naquele então.
Não foi por uma decisão interna à cidade que o Grande acordo foi rompido. Ela era vítima do modelo econômico adotado pelo País, assim como antes fora sua beneficiária. Mas o modelo mudara, estava mudando.
Os anos intermediários da década dos 60 são aqueles de interrupção do desenvolvimento capitalista clássico no Brasil. O processo de acumulação do capital nacional, forçado pela Segunda Guerra Mundial e pelo período subsequente, seria abordado pela chegada das multinacionais. Estas frustariam as tentativas brasileiras de criação de um capitalismo pela via clássica e com modelo próprio e inverteriam a ênfase nas prioridades do desenvolvimento. O palco maior para essa mudança é São Paulo, a cidade de São Paulo.
A escolha do automóvel como meio preferencial de transporte urbano - e os decorrentes investimentos públicos no sistema viário -seria a distorção inicial e a principal imposição dos padrões multinacionais ao País. A partir daqui, o capital nacional, se e quando sobrevivesse, seria dependente do capital estrangeiro, infinitamente mais poderoso, detentor da tecnologia e do poder de decisão.
Enquanto a Prefeitura investia somas fantásticas na construção de um sistema viário prioritariamente destinado ao automóvel, se apressava em liquidar o único sistema de transporte de massa da Capital - o bonde.
E entregava a exploração do transporte coletivo por ônibus - o segundo sistema de transporte de massa da cidade - ao regime da livre concorrência. A CMTC, empresa pública que chegara a transportar até 98% dos passageiros da cidade nos anos 50, teria sua participação reduzida pouco mais de 10% no transporte coletivo sobre pneus de São Paulo, (mas manteria a mesma estrutura organizacional e o mesmo quadro de pessoal enveredando assim por um caminho deficitário que somado à má administração a transformaria numa empresa em regime de falência permanente).
A tarifa do ônibus, até então garantida no seu preço social pela via dos subsídios à CMTC, seria agora determinada pelos interesses de uma exploração selvagem e predatória e se transformaria no item de despesa com maior poder de erosão sobre o orçamento operário de São Paulo.
Iludida com as aparências, desertada das lideranças políticas e intelectuais que a alertassem e esclarecessem, a cidade aplaudiria a liquidação do bondes e saudaria a entrega do seu transporte por ônibus aos particulares -todos acreditaram na possibilidade de se criar aqui no Sul, na linha abaixo do Equador, uma civilização do automóvel.
A população não sabia que o acordo da sociedade aberta estava sendo rompido e que o novo modelo apresentava, já ali, um de seus traços mais cruéis - o da concentração da renda.
Ao lado dessa característica concentradora da renda, um outro traço completaria o retrato de corpo inteiro do novo modelo que começava a ser implantado no Brasil, iniciando-se por São Paulo: o uso intensivo do capital ao invés da utilização intensiva da mão-de-obra, num País onde a criação de empregos é uma chave para um desenvolvimento com o mínimo de justiça.
O destino da cidade estava selado e seguiria o curso inverso àquele que tivera até ali. Agora, a ordem era a retração da oferta de emprego e o estreitamento das oportunidades de participação na riqueza produzida.
A cidade perdeu sua generosidade. São Paulo já não dava mais abrigo, deixara de ser uma referência de esperança para o mundo do trabalho.
A cessação do grande acordo entre a cidade e os homens abriria para a população - a presente e aquela ainda insiste em procurar São Paulo - dois caminhos, duas opções, dois destinos.
A marginalidade social é uma das rotas. Esta atinge a todos, mas atinge sobretudo a família e nesta à criança, a sua principal vítima.
Ela deve deixar a escola, renunciar à infância e partir para o trabalho, em busca de complementar a renda familiar. Mas os pobres que não têm especialização profissional - uma redundância? - não podem viver dos outros pobres - estes nada têm a dar.
É nos bairros ricos ou no centro da cidade que o menino encontrará trabalho e ali conhecerá a vida por sua face mais dura. Sua casa, agora tão distante de onde trabalha só pode ser alcançada por duas conduções, rotineiramente cruéis em seus horários longos e espaçados. E melhor ficar pela cidade, dormir na casa de um novo amigo feito nas ruas que perder algumas horas só para chegar à casa, recostar o corpo por poucas horas e de novo sair para o trabalho.
O menino aprenderá a se movimentar nesse novo mundo de fascinante mistério. E ele frenquentará, primeiro tímido e medroso, depois como peixe n'água, certas zonas da cidade, ali onde imperam, donos do território até que a polícia chegue, os mendigos, as prostitutas, os homossexuais decaídos, os viciados, os loucos, essa humanidade imersa em sofrimento e dor, cor mais forte da paisagem, borrada às vezes com um ponto de estranho tom pelo cidadão "normal", que passa apressado.
E o menino aprende a viver a noite da cidade. Prova da comida conseguida no apelo, restos do jantar dos doutores -descobre que é melhor, muito melhor que a comida rala de sua casa. Um homossexual dá-lhe algum dinheiro com que comprar mais comida e ele pode até ir ao cinema essa coisa rara. Um outro amigo convida-o para um inocente furto e de outro comparsa recebe seu primeiro cigarro de maconha- ele está sendo formado para a delinquência, é um aprendiz do crime, moderno capitão de areia sem poesia e sem romance. Príncipe Encantado não, Tom Sawyer, sim, Huckleberry Finn.
A cidade separou-o da família, ele se encontrará com sua mãe de novo numa delegacia de polícia, se tiver a sorte de ser preso com vida.
Aos 10 anos é um adulto, analfabeto e subnutrido, de saúde frágil e compleição raquítica, mas viverá intensamente essa sua vida que é uma procura da morte, encontrará energias no seu intenso ódio, arderá de paixão no seu ressentimento profundo.
A violência urbana aumenta e quando chega às ilhas de paz e tranquilidade dos bem nascidos, bem empregados, dos que tiveram a sorte suprema de chegar antes que se fechassem as portas da cidade, quando bate nessas portas a mancha de marginalidade e delinquência, então há um alerta geral, um susto único, mas então pode ser tarde para esse menino.
O segundo caminho que a população tem à sua frente, após a denúncia de acordo com a cidade, é o caminho da luta, da organização da mobilização pela reivindicação dos seus direitos.
Subitamente, a cidade revela a consciência do que é seu exige atenção. É preciso redistribuir a renda, a cidade não pode mais pagar novamente por aquilo que já foi cobrado nos impostos e na produção.
E a cidade explode. Políticos tentam aproveitar a onda; ideólogos explicam a causa de tanta movimentação, governantes temem a agressividade popular, os partidos inquietam-se, as instituições correm para alcançar a crista do movimento.
A cidade luta porque precisa, já não pode mais arcar sozinha com os custos físicos e espirituais de construir esta obra. Luta porque não quer que todos os seus filhos tenham como legado apenas a desesperança. Luta porque pressente que esse é o caminho para recapturar a cidade perdida, para fazê-la retornar ao domínio dos homens que a constróem, de onde nunca devera ter fugido.
A cidade luta porque quer ser abrigo, esperança, um ponto de luz indicando aos homens que nem tudo está perdido e que não ha nada a temer -a riqueza produzida pelo trabalho comum há de ser desfrutada por todos.

Odon Pereira


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