O modelo econômico concentra a renda, reduz a oferta de emprego,
elimina a mobilidade social, muda a cidade
Já
não se encontra mais na cidade o emprego fácil, aquele
mercado de trabalho generoso e farto dos anos cinquenta, pegando
o comecinho dos sessenta. E se é escasso o emprego, a cidade
reduziu drasticamente, eliminou quase totalmente, para os que a
esta altura têm a sorte de um trabalho fixo, as chances de
melhoria, de ascensão social, de "subir na vida".
São Paulo cumpre o seu itinerário de posto avançado
do capitalismo brasileiro, jovem, senil e dependente -vai se afastando
da sociedade aberta e promocional que um dia fez a sua glória,
foi seu apanágio, deixa de ser a cidade do imprevisível
e da aventura- das fortunas amealhadas com rapidez, da repentina
transformação do empregado em patrão, do pedreiro
aplicado em bem sucedido empreiteiro, do garçom simpático
em alegre dono de restaurante, do artesão criativo e organizado
em industrial agressivo e moderno.
Os limites e os horizontes sociais, até há pouco elásticos
e móveis, afastam as sombras, espancam as nuvens cinzentas
e ganham contornos definidos, expõem linhas duras e inflexíveis.
Desaparecem as frestas por onde se introduziam a audácia,
o talento ou simplesmente o trabalho sério e dedicado.
A cidade se consolida e se estratifica, perde a informalidade, abandona
a espontaneidade, esquece até -por que não?- sua agressividade,
já não produz mais os "self-made man" que
tanto lhe aguçaram a ambiguidade, seu orgulho e sua vergonha,
pecado suave de doce penitência.
São Paulo ganhou disciplina e ordem na produção
e no trabalho, a disciplina e a ordem das sociedades acabadas, construídas
-agora os rapazes e moças não mais disputam o salário
e a posição no trabalho das fábricas, dos escritórios
e das lojas, eles têm sua vaga social, seu lugar ao Sol reservados
de antemão na Universidade -essa disciplinadora por excelência-
embora já não haja lugar para todos. A cidade está
programada, afinal, sabe o que quer, selecionou as espécies
-uns poucos ficarão no topo, espectadores privilegiados do
espetáculo social; outros, milhões, serão postos
embaixo, anônimos personagens destinados ao trabalho duro
e à gratificação pouca.
Os que estão aqui, os que entraram antes de todas as portas
se fecharem não podem mais acalentar os sonhos de mudar de
vida -devem ficar onde se encontram. São Paulo agora é
a cidade onde a ordem social busca eternizar-se: os pobres serão
para sempre pobres, e aqui, pobreza é marginalidade, desterro,
chaga, perigosa doença, seus portadores são afastados
para pontos distantes- é preciso evitar esse contágio.
Os médios devem multiplicar-se em fadiga e "stress"
para não descerem na escala social. e os ricos, cada vez
mais ricos, dirão como sempre que nada têm a ver com
isto, esta cidade é um nojo- seu parco afeto estará
agora dedicado a um mar verde, a florestas virgens, a velhos azulejos
coloniais, enfim, ao que é velho e ao que não tem
vida.
E para cada rico que deixa a cidade, um número desconhecido
mas sabidamente enorme de migrantes é impedido de nela ingressar,
um outro volume força a porta e entra para engrossar as fileiras
da marginalidade.
Os ricos abandonam a cidade, capitulam em continuar a construí-la,
desligam-se de sua elite criadora, para eles a cidade está
em declínio, deu o que tinha a dar, como tantas outras, é
hora de desertar, de entregá-la aos pobres, como os restos
de um botim.
Os que chegam não têm mais lugar, não deveriam
ter vindo, já não são bem-vindos. Uma antiga
frase, tantas vezes repetidas pelo País a fora, que reanimou
espíritos, foi tiro de partida para uma nova corrida pela
vida, não serve mais, caiu em desuso:
- Vou pra São Paulo, vou trabalhar. Lá recomeço,
levanto a cabeça de novo e volto.
Uma frase, meditada ou pronunciada por todos quantos eram despojados
de tudo -quase sempre um pedaço de chão pequeno, um
gado pouco, uma roça miúda, deserdados pela inclemência
da intempérie e pela ambição dos que mandam
na terra. Essa decisão vir para São Paulo, não
deve, não pode mais ser tomada, ela que reconstruiu vidas,
reinventou existências- ainda que sem a terra, sem o gado,
sem a roça, sem a volta. Às vezes sem a família,
que restou lá, no agreste nordestino, à espera do
aviso para viajar no rumo da vida, da cidade dos homens. E que não
recebeu esse chamado não veio juntar-se ao chefe, cedeu lugar
a uma outra aqui construída igual a outra nos muitos filhos
-que esta cidade grande já é dura demais para nela
se viver solitário. E quem não precisa de uma companhia
que traga calor nessas noites geladas do Sul, desse frio que os
do Nordeste tanto sofrem, que até Castro Alves sentia quando
aqui esteve, a estudar na Academia; "São Paulo não
é Brasil; São Paulo é um trapo de pólo
pregado nas fraldas da América", queixava-se o poeta
e se ele lamuriava assim, o que dizer de um pião de obra
ou de um copeiro de bar, só na fria da cidade imensa?
Esse foi o acordo que a cidade rompeu -dar emprego e no emprego
promoção social ao trabalhador nela residente. O confiante
homem brasileiro instalado em São Paulo aceitou todos os
preços nessa troca: dessem-lhe o emprego e ele moraria mal,
numa casa permanentemente provisória, sempre em construção,
nos bairros afastados e desprovidos de tudo -em acampamento.
Ele, esse trabalhador, fingiria uma inconsciência quase completa
de seus direitos de cidadão e pagaria por serviços
que o governo estava obrigado a lhe dar de graça por determinação
constitucional e por serem direitos à vida -a educação
e a saúde principalmente, mas o lazer e o conforto urbano
também. Ele financiou uma das maiores redes privadas de escolas
e de hospitais e clínicas do mundo, por tudo pagou e só
insistia em que lhe garantissem o emprego, para ele e para a família.
Aceitou o rebaixamento de seu salário individual com a contrapartida
da ampliação do número de familiares empregados
-subverteu o conceito clássico de proletário, não
mais um trabalhador que sustenta a prole, mas uma prole que se autosustenta.
Desmentiu as teses tão ao gosto acadêmico- rejeitou
o paternalismo, comprou com trabalho o seu direito à vida
e à cidadania, como no passado faziam os servos da gleba.
Nunca a força de trabalho esteve tão comprometida
com a aquisição de outros valores de troca. Bens de
valor intangível, excluídos do mercado por interesse
do próprio capitalismo, devido a seu caráter auxiliar
na manutenção e reprodução da força
de trabalho, como educação, saúde, transporte,
foram mercadejados correntemente no regime da livre concorrência.
Do Poder Público só queria, esse paulistano por necessidade
vital, as linhas de ônibus, o transporte coletivo, instrumento
indispensável para garantir o acesso ao trabalho, para permitir
as horas extras, os "bicos" e biscates, os trabalhos nas
horas de folga e de férias, a atividade durante a madrugada
e pela noite adentro. Ele inventou um novo e caleidoscópio
mapa da cidade, aquela miriade de linhas ligando sua casa -que ele
plantou própria e fixa, cioso da propriedade, atendendo àquele
remoto e atávico apelo da terra e da sua posse, usando o
imóvel com garantia contra os momentos ruins, evitando o
fantasma do aluguel- com o seu trabalho, que ele teve sempre mutável
como a estrutura econômica da cidade naquele então.
Não foi por uma decisão interna à cidade que
o Grande acordo foi rompido. Ela era vítima do modelo econômico
adotado pelo País, assim como antes fora sua beneficiária.
Mas o modelo mudara, estava mudando.
Os anos intermediários da década dos 60 são
aqueles de interrupção do desenvolvimento capitalista
clássico no Brasil. O processo de acumulação
do capital nacional, forçado pela Segunda Guerra Mundial
e pelo período subsequente, seria abordado pela chegada das
multinacionais. Estas frustariam as tentativas brasileiras de criação
de um capitalismo pela via clássica e com modelo próprio
e inverteriam a ênfase nas prioridades do desenvolvimento.
O palco maior para essa mudança é São Paulo,
a cidade de São Paulo.
A escolha do automóvel como meio preferencial de transporte
urbano - e os decorrentes investimentos públicos no sistema
viário -seria a distorção inicial e a principal
imposição dos padrões multinacionais ao País.
A partir daqui, o capital nacional, se e quando sobrevivesse, seria
dependente do capital estrangeiro, infinitamente mais poderoso,
detentor da tecnologia e do poder de decisão.
Enquanto a Prefeitura investia somas fantásticas na construção
de um sistema viário prioritariamente destinado ao automóvel,
se apressava em liquidar o único sistema de transporte de
massa da Capital - o bonde.
E entregava a exploração do transporte coletivo por
ônibus - o segundo sistema de transporte de massa da cidade
- ao regime da livre concorrência. A CMTC, empresa pública
que chegara a transportar até 98% dos passageiros da cidade
nos anos 50, teria sua participação reduzida pouco
mais de 10% no transporte coletivo sobre pneus de São Paulo,
(mas manteria a mesma estrutura organizacional e o mesmo quadro
de pessoal enveredando assim por um caminho deficitário que
somado à má administração a transformaria
numa empresa em regime de falência permanente).
A tarifa do ônibus, até então garantida no seu
preço social pela via dos subsídios à CMTC,
seria agora determinada pelos interesses de uma exploração
selvagem e predatória e se transformaria no item de despesa
com maior poder de erosão sobre o orçamento operário
de São Paulo.
Iludida com as aparências, desertada das lideranças
políticas e intelectuais que a alertassem e esclarecessem,
a cidade aplaudiria a liquidação do bondes e saudaria
a entrega do seu transporte por ônibus aos particulares -todos
acreditaram na possibilidade de se criar aqui no Sul, na linha abaixo
do Equador, uma civilização do automóvel.
A população não sabia que o acordo da sociedade
aberta estava sendo rompido e que o novo modelo apresentava, já
ali, um de seus traços mais cruéis - o da concentração
da renda.
Ao lado dessa característica concentradora da renda, um outro
traço completaria o retrato de corpo inteiro do novo modelo
que começava a ser implantado no Brasil, iniciando-se por
São Paulo: o uso intensivo do capital ao invés da
utilização intensiva da mão-de-obra, num País
onde a criação de empregos é uma chave para
um desenvolvimento com o mínimo de justiça.
O destino da cidade estava selado e seguiria o curso inverso àquele
que tivera até ali. Agora, a ordem era a retração
da oferta de emprego e o estreitamento das oportunidades de participação
na riqueza produzida.
A cidade perdeu sua generosidade. São Paulo já não
dava mais abrigo, deixara de ser uma referência de esperança
para o mundo do trabalho.
A cessação do grande acordo entre a cidade e os homens
abriria para a população - a presente e aquela ainda
insiste em procurar São Paulo - dois caminhos, duas opções,
dois destinos.
A marginalidade social é uma das rotas. Esta atinge a todos,
mas atinge sobretudo a família e nesta à criança,
a sua principal vítima.
Ela deve deixar a escola, renunciar à infância e partir
para o trabalho, em busca de complementar a renda familiar. Mas
os pobres que não têm especialização
profissional - uma redundância? - não podem viver dos
outros pobres - estes nada têm a dar.
É nos bairros ricos ou no centro da cidade que o menino encontrará
trabalho e ali conhecerá a vida por sua face mais dura. Sua
casa, agora tão distante de onde trabalha só pode
ser alcançada por duas conduções, rotineiramente
cruéis em seus horários longos e espaçados.
E melhor ficar pela cidade, dormir na casa de um novo amigo feito
nas ruas que perder algumas horas só para chegar à
casa, recostar o corpo por poucas horas e de novo sair para o trabalho.
O menino aprenderá a se movimentar nesse novo mundo de fascinante
mistério. E ele frenquentará, primeiro tímido
e medroso, depois como peixe n'água, certas zonas da cidade,
ali onde imperam, donos do território até que a polícia
chegue, os mendigos, as prostitutas, os homossexuais decaídos,
os viciados, os loucos, essa humanidade imersa em sofrimento e dor,
cor mais forte da paisagem, borrada às vezes com um ponto
de estranho tom pelo cidadão "normal", que passa
apressado.
E o menino aprende a viver a noite da cidade. Prova da comida conseguida
no apelo, restos do jantar dos doutores -descobre que é melhor,
muito melhor que a comida rala de sua casa. Um homossexual dá-lhe
algum dinheiro com que comprar mais comida e ele pode até
ir ao cinema essa coisa rara. Um outro amigo convida-o para um inocente
furto e de outro comparsa recebe seu primeiro cigarro de maconha-
ele está sendo formado para a delinquência, é
um aprendiz do crime, moderno capitão de areia sem poesia
e sem romance. Príncipe Encantado não, Tom Sawyer,
sim, Huckleberry Finn.
A cidade separou-o da família, ele se encontrará com
sua mãe de novo numa delegacia de polícia, se tiver
a sorte de ser preso com vida.
Aos 10 anos é um adulto, analfabeto e subnutrido, de saúde
frágil e compleição raquítica, mas viverá
intensamente essa sua vida que é uma procura da morte, encontrará
energias no seu intenso ódio, arderá de paixão
no seu ressentimento profundo.
A violência urbana aumenta e quando chega às ilhas
de paz e tranquilidade dos bem nascidos, bem empregados, dos que
tiveram a sorte suprema de chegar antes que se fechassem as portas
da cidade, quando bate nessas portas a mancha de marginalidade e
delinquência, então há um alerta geral, um susto
único, mas então pode ser tarde para esse menino.
O segundo caminho que a população tem à sua
frente, após a denúncia de acordo com a cidade, é
o caminho da luta, da organização da mobilização
pela reivindicação dos seus direitos.
Subitamente, a cidade revela a consciência do que é
seu exige atenção. É preciso redistribuir a
renda, a cidade não pode mais pagar novamente por aquilo
que já foi cobrado nos impostos e na produção.
E a cidade explode. Políticos tentam aproveitar a onda; ideólogos
explicam a causa de tanta movimentação, governantes
temem a agressividade popular, os partidos inquietam-se, as instituições
correm para alcançar a crista do movimento.
A cidade luta porque precisa, já não pode mais arcar
sozinha com os custos físicos e espirituais de construir
esta obra. Luta porque não quer que todos os seus filhos
tenham como legado apenas a desesperança. Luta porque pressente
que esse é o caminho para recapturar a cidade perdida, para
fazê-la retornar ao domínio dos homens que a constróem,
de onde nunca devera ter fugido.
A cidade luta porque quer ser abrigo, esperança, um ponto
de luz indicando aos homens que nem tudo está perdido e que
não ha nada a temer -a riqueza produzida pelo trabalho comum
há de ser desfrutada por todos.
Odon
Pereira
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