Uma vida entre a verdade e o mito

Publicado na Folha de S. Paulo, segunda-feira, 24 de maio de 1976


Ele foi a sensação de uma cidade sequiosa de aventuras

DO SERVIÇO LOCAL

No dia 13 de junho de 1970, com 92 anos de idade, Amleto Gino Meneghetti tentou praticar o seu derradeiro golpe. No meio da noite, escolheu com cuidado uma casa da rua Fradique Coutinho, no bairro de Pinheiros, e forçava o portão, quando um carcereiro, que o observava de longe, surpreendeu-o na tentativa. Prendeu-o, levou à delegacia mais próxima e ficou sabendo que tinha nas mãos o mais famoso ladrão da história do crime no Brasil.

Um homem ao qual a lenda emprestou seguramente muita façanhas que não praticou e ao qual o povo atribuía uma agilidade felina, uma audácia ímpar e uma resistência inacreditável às vicissitudes, Meneghetti ficou tão conhecido no país todo que seu sobrenome se transformou em sinônimo de ladrão.

Ganhou frequentemente as manchetes dos jornais, tanto pelos feitos quanto pelas prisões, fugas espetaculosas, "imbroglios" e aventuras em que, com veracidade ou não, esteve envolvido durante quase 60 anos de vida.

O primeiro cenário de suas pouco elogiáveis façanhas foi a bela cidade de Pisa, que os turistas conhecem por sua torre inclinada. O primeiro registro criminal ocorre aos 16 anos de Meneghetti.

Meneghetti nascera no último quarto do século XIX (1878), quando a Itália acabara de unificar-se.

O século não terminara e já Meneghetti fugia para a França, pois tinha a polícia italiana ao seu encalço. Foi para esse paraíso do crime, passadiço de criminosos, Marselha. Uma espessa treva cerca os quase vinte anos em que viveu ali. Localizado pela gendarmerie, foi preso. A polícia francesa fez o que se fazia na época: expulsou-o para o Brasil (poderia ter sido a Argentina ou a Venezuela, ou outro país qualquer). Veio a bordo do navio italiano "Tomaso di Savoia", desembarcou em Santos a 25 de junho de 1913, precedido de um "dossier" que a polícia italiana enviou à congênere brasileira. Nele, ele era já definido (tinha então 35 anos de idade, era um homem) como "un pericoloso pregiudicato condannato numerose volte per reati alla proprietá e per oltraggio e violenza agli agenti della forza publica".

Meneghetti desceu do navio, veio para São Paulo, foi morar com uma tia, conheceu uma moça italiana como ele, Concetta Tovani, teve cinco filhos (três morreram na infância). Trabalhou como servente de pedreiro, carreira tão breve quão violentamente interrompida: brigou com o mestre de obras, atirou-lhe um balde de cal à cabeça, deu às de Vila Diogo, como se dizia então. Deve ter recomeçado nesse momento a sua carreira criminosa, medeada pelo interregno de trabalhador honesto. Ele não seguia o mesmo caminho da comunidade italiana, que se integrava ao trabalho duro de construir São Paulo.

Em 1914 é preso pela primeira vez. Condenado a 8 anos, trabalhou como pedreiro na obra de construção da solitária da cadeia. Erro no julgamento dos responsáveis pela cadeia, presença de espírito de Meneghetti. Ele construiu a solitária, cujas grades, no topo, eram suficientemente frágeis para ceder ao primeiro impacto. Um dia, na cadeia, Meneghetti provocou uma briga... e foi mandado para a solitária, preparada para recebê-lo. Esgueirou-se, nu, por entre as barras, à noite, cantando em voz alta para não despertar suspeitas, deixou pedaços de carne nas grades. Em sangue, fugiu pelas ruas da cidade, nu, conseguiu roupas na casa da tia e desapareceu.

Um ano depois era preso no Rio. Ficou pouco tempo. Nova fuga; próxima parada, Porto Alegre; depois Juiz de Fora, onde sua doce Concetta o esperava, com dinheiro. Mas antes de deixar a cidade mineira, Meneghetti deu um grande golpe: entre jóias e dinheiro, roubou 20 contos de réis, o que era muito naquela época.

Em 1919 está de novo preso, em São Paulo. Fica seis anos na cadeia. Nova fuga espetacular. O noticiário dos jornais, numa cidade onde, passada a I Grande Guerra, nada acontecia, entregue à contemplação dos prazeres de uma elite enriquecida pelo café, com poucos habitantes, transforma-se em mito. Ganha um apelido, condizente com a época: Gato de Telhado (hoje em dia, a mitologia urbana te-lo-ia brindado com um apelido mais sofisticado). Desenvolve uma atividade febril. Roubos, assaltos, arrombamentos, fugas espetaculares. O exagero transforma-o num Arséne Lupin dos pobres. O povo miúdo, trabalhador, honesto e simples, transforma-o num igual, que rouba do rico para dar aos pobres (coisa que jamais aconteceu). Dá mais trabalho à polícia do que todos os outros ladrões e malfeitores juntos. Um cerco é estabelecido para apanhá-lo. Um homem, o delegado Leite de Barros, decide prendê-lo a qualquer custo. Uma noite, um desconhecido é interpelado na rua por um policial. A ordem de entregar os documentos, saca uma arma, faz vários disparos. Começam a chegar à polícia informações esparsas. O delegado Leite de Barros fica sabendo que uma dançarina de "cabaret" (assim se chamavam então, como lembra o poeta Afranio Zucolotto em seu último livro de poemas, o Artista Remanescente) fora sondada por um homem misterioso, de inconfundível sotaque italiano, que lhe oferecera jóias para vender. A polícia localiza o valhacouto: Rua Abolição, 31-A. O "Gato de Telhado" foge realmente pelos telhados - sem quebrar uma telha. Foge, mas deixa uma mala cheia de jóias. E um documento de identidade de Gino Meneghetti.

Da crônica policial, é difícil extrair o que é verdadeiro e o que é falso, mitológico, na vida de Meneghetti. De uma feita sequestra o chefe da polícia, dr. Roberto Moreira, para entregá-lo na redação de um jornal. Propôs um duelo a bala com o delegado de Roubos da época, e cujo nome se perdeu na história.

A 21 de maio de 1926, foi surpreendido "in flagranti" pelos moradores de uma casa que saqueava. Perseguido pelas vítimas e pelos vizinhos, entre a confusão e o vozerio, escapou, empregando seu método favorito, saltando de muro em muro, desaparecendo. Caiu numa obra, cujo guarda, um preto de nome Honorato - que magnífica coincidência! - deu-lhe voz de prisão. Disse depois que Meneghetti disparou contra ele, o que o ladrão negaria com veemência.

Pouco depois, armou-se para prendê-lo um dos maiores dispositivos policiais de que a cidade tivera notícia até então. Meneghetti comemorava um "golpe" feliz, numa cantina, ao lado de um cantor (estes ainda sobrevivem). Identificado por dois policiais, estes avisaram o Distrito. Armou-se um grande cerco, ao qual não faltaram, dessas vez, os bombeiros. Os policiais invadiram a casa. Meneghetti escondeu-se atrás de um tanque de lavar roupa, fez vários disparos e atingiu o comissário Valdemar Dória. Pouco depois, do alto de um telhado, Meneghetti gritava para os policiais, a multidão, os basbaques: "Io sono Meneghetti! Il Cesare! Il Nerone di San Paolo!". Embora nascido em Pisa, cidade histórica, é estranho que uma evocação da história antiga pusesse aflorar nos lábios de um ladrão. Teria mesmo invocado César e Nero? Em todo caso, assim ficou consignado na crônica policial da época. O episódio acabou como sempre acabam: Meneghetti teve que descer do telhado. Foi preso numa casa da rua dos Andradas, o no 25. Cercado, fitando as armas apontadas, implorou queixoso: "Por amor de Deus, não atirem!" Preso, deu seu endereço secreto, onde a polícia encontrou um considerável botim.

Julgamento e condenação: 43 anos, dois meses e 10 dias de prisão. Uma vida. A pena foi contudo reduzida para 25 anos. A 17 de janeiro de 1945, Gino Meneghetti a pena comutada, via novamente a cidade que fora cenário de suas aventuras, platéia de seus duvidosos exitos, juiz de sua vida de fora da lei. Passara 19 anos na cadeia. A cidade crescera: antes com 700 mil habitantes havia agora mais de 1 milhão e meio. Muitas ruas eram agora avenidas. A polícia já era outra, mais moderna e mais eficaz.

Ficou precisamente 60 dias em liberdade. Ao tentar novo golpe, é preso, por tentativa de homicídio. As fotografias dos arquivos mostram um Meneghetti desfigurado pelos golpes sofridos nas mãos dos policiais. Trava-se uma longa polêmica pelos jornais. A acusação de mau tratamento é reiterada. Ele é condenado a sete anos. Sai em 1952. Dois anos depois, em março de 1954, tenta assaltar uma casa na Vila Mariana, é preso, passas mais três anos entre as grades.

Nos longos anos de prisão (ele passou 18 anos na cela 504 do presídio do Carandiru), uma grande parte dos quais na solitária - ele aproveitava as visitas oficiais ao presídio para insultar as autoridades e vociferar seu inconformismo, - leu muito, diz a lenda. Leu, não se sabe porque, toda a obra de Bertrand Russell, o filósofo e matemático inglês, e de José Ingenieros, psiquiatra e escritor argentino muito em voga na sua época. Leu também a Bíblia. (Era ateu, mas em 1960, em homenagem ao tratamento que receberá das freiras na prisão fez-se batizar). Queixava-se de nunca ter ido à escola. Vangloriava-se, já então de "saber a história da humanidade, da civilização". "Se tivesse ido à escola, seria um gênio".

Viu a luz do sol sem grades, mais uma vez, no dia 15 de outubro de 1959. A 3 de março do ano seguinte, ganhava, por decisão do governo, uma banca de jornais na esquina da rua Amador Bueno com a avenida Ipiranga.

No espaço de quatro anos foi preso mais duas ou três vezes, por estar em má companhia, como ficou registrado, ou por atitude suspeita, ou, como aconteceu na noite de 22 de setembro de 1964, por carregar jóias avaliadas, em 150 mil cruzeiros: condenado. Saiu de novo em 23 de dezembro de 1966. Tinha 78 anos de idade. Foi viver com seus filhos, na Vila Guarani. Nesse ano, foi queixar-se ao prefeito Faria Lima de que sua banca de jornais fora abandonada enquanto ele estava atrás das grades.

Um breve interregno, na vida familiar. Em fevereiro de 1968, tentou roubar uma casa, na Vila Mariana. A imaginação era mais forte do que os músculos, a mente mais otimista do que as glândulas. Surpreendido, fugiu pelo telhado, mais uma vez, mas num dos saltos (aos 81 anos!) foi infeliz, quebrou as telhas, caiu no banheiro de uma casa, como o herói de Dashiel Hammet.

Ficou um ano preso. Tentou novo golpe, numa madrugada, na rua Fradique Coutinho, Pinheiros. Surpreendido por um carcereiro, de presença fortuita, não levava documentos. Foi somente na delegacia, ante um delegado tão atônico quanto o carcereiro, que Meneghetti declinou sua verdadeira identidade. Aos policiais, comentou, entre resignado e fleugmático: "Não é possível ser um bom ladrão sem ter os ouvidos em bom funcionamento. Acho que terei de me aposentar."

 

 

Certa vez, um ex-presidente de Tribunal do Juri que inaugurava nova residência, convidou-o para testar as grades das janelas. Meneghetti aceitou o teste e deu sua opinião: "É, as grades são boas e fortes, mas dão um bom ponto de apoio para se escalar a parede do 2o andar.

 

 
Em 1970, uma grande agência de publicidade cogitou de fazer com ele um filme comercial para a televisão, no qual tentaria arrombar a fechadura do veículo e, finalmente, desistiria, afirmando que encontrava uma trave de segurança mais firme que sua habilidade como arrombador. A idéia não chegou a ser concretizada.

Em outubro de 1975, um boato movimentou os repórteres policiais: Meneghetti teria falecido. Na verdade, sofrendo de complicações cardíacas, esteve internado no Hospital Samaritano.
 

 
"Io sono um uomo", gritava, da Solitaria, quando decidia destratar alguém.
 
 

Sua identidade, ele a trocou várias vezes, durante sua rocambolesca carreira de ladrão e fora da lei; usou vários nomes, apelidos, diminutivos: Gino Amleto Meneghetti, Mario Mazzi, Antônio Garcia, Angelo Bianchi, Amleto Gino, Amleto detto Gino, sabe Deus quantos mais, que seperderam nos registros, nas esquinas escuras da cidade que era então São Paulo, provinciana, monótona, banhada levemente pela garoa matutina.

Grande parte dos dados contidos nesta biografia figuram em reportagem de Rubens Ribeiro, e publicada no "Correio da Manhã" (que já não mais existe), do Rio, em 22 de junho de 1970.


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