DO SERVIÇO LOCAL
No
dia 13 de junho de 1970, com 92 anos de idade, Amleto Gino Meneghetti
tentou praticar o seu derradeiro golpe. No meio da noite, escolheu
com cuidado uma casa da rua Fradique Coutinho, no bairro de Pinheiros,
e forçava o portão, quando um carcereiro, que o observava
de longe, surpreendeu-o na tentativa. Prendeu-o, levou à
delegacia mais próxima e ficou sabendo que tinha nas mãos
o mais famoso ladrão da história do crime no Brasil.
Um homem ao qual a lenda emprestou seguramente muita façanhas
que não praticou e ao qual o povo atribuía uma agilidade
felina, uma audácia ímpar e uma resistência
inacreditável às vicissitudes, Meneghetti ficou tão
conhecido no país todo que seu sobrenome se transformou em
sinônimo de ladrão.
Ganhou frequentemente as manchetes dos jornais, tanto pelos feitos
quanto pelas prisões, fugas espetaculosas, "imbroglios"
e aventuras em que, com veracidade ou não, esteve envolvido
durante quase 60 anos de vida.
O primeiro cenário de suas pouco elogiáveis façanhas
foi a bela cidade de Pisa, que os turistas conhecem por sua torre
inclinada. O primeiro registro criminal ocorre aos 16 anos de Meneghetti.
Meneghetti nascera no último quarto do século XIX
(1878), quando a Itália acabara de unificar-se.
O século não terminara e já Meneghetti fugia
para a França, pois tinha a polícia italiana ao seu
encalço. Foi para esse paraíso do crime, passadiço
de criminosos, Marselha. Uma espessa treva cerca os quase vinte
anos em que viveu ali. Localizado pela gendarmerie, foi preso. A
polícia francesa fez o que se fazia na época: expulsou-o
para o Brasil (poderia ter sido a Argentina ou a Venezuela, ou outro
país qualquer). Veio a bordo do navio italiano "Tomaso
di Savoia", desembarcou em Santos a 25 de junho de 1913, precedido
de um "dossier" que a polícia italiana enviou à
congênere brasileira. Nele, ele era já definido (tinha
então 35 anos de idade, era um homem) como "un pericoloso
pregiudicato condannato numerose volte per reati alla proprietá
e per oltraggio e violenza agli agenti della forza publica".
Meneghetti desceu do navio, veio para São Paulo, foi morar
com uma tia, conheceu uma moça italiana como ele, Concetta
Tovani, teve cinco filhos (três morreram na infância).
Trabalhou como servente de pedreiro, carreira tão breve quão
violentamente interrompida: brigou com o mestre de obras, atirou-lhe
um balde de cal à cabeça, deu às de Vila Diogo,
como se dizia então. Deve ter recomeçado nesse momento
a sua carreira criminosa, medeada pelo interregno de trabalhador
honesto. Ele não seguia o mesmo caminho da comunidade italiana,
que se integrava ao trabalho duro de construir São Paulo.
Em 1914 é preso pela primeira vez. Condenado a 8 anos, trabalhou
como pedreiro na obra de construção da solitária
da cadeia. Erro no julgamento dos responsáveis pela cadeia,
presença de espírito de Meneghetti. Ele construiu
a solitária, cujas grades, no topo, eram suficientemente
frágeis para ceder ao primeiro impacto. Um dia, na cadeia,
Meneghetti provocou uma briga... e foi mandado para a solitária,
preparada para recebê-lo. Esgueirou-se, nu, por entre as barras,
à noite, cantando em voz alta para não despertar suspeitas,
deixou pedaços de carne nas grades. Em sangue, fugiu pelas
ruas da cidade, nu, conseguiu roupas na casa da tia e desapareceu.
Um ano depois era preso no Rio. Ficou pouco tempo. Nova fuga; próxima
parada, Porto Alegre; depois Juiz de Fora, onde sua doce Concetta
o esperava, com dinheiro. Mas antes de deixar a cidade mineira,
Meneghetti deu um grande golpe: entre jóias e dinheiro, roubou
20 contos de réis, o que era muito naquela época.
Em 1919 está de novo preso, em São Paulo. Fica seis
anos na cadeia. Nova fuga espetacular. O noticiário dos jornais,
numa cidade onde, passada a I Grande Guerra, nada acontecia, entregue
à contemplação dos prazeres de uma elite enriquecida
pelo café, com poucos habitantes, transforma-se em mito.
Ganha um apelido, condizente com a época: Gato de Telhado
(hoje em dia, a mitologia urbana te-lo-ia brindado com um apelido
mais sofisticado). Desenvolve uma atividade febril. Roubos, assaltos,
arrombamentos, fugas espetaculares. O exagero transforma-o num Arséne
Lupin dos pobres. O povo miúdo, trabalhador, honesto e simples,
transforma-o num igual, que rouba do rico para dar aos pobres (coisa
que jamais aconteceu). Dá mais trabalho à polícia
do que todos os outros ladrões e malfeitores juntos. Um cerco
é estabelecido para apanhá-lo. Um homem, o delegado
Leite de Barros, decide prendê-lo a qualquer custo. Uma noite,
um desconhecido é interpelado na rua por um policial. A ordem
de entregar os documentos, saca uma arma, faz vários disparos.
Começam a chegar à polícia informações
esparsas. O delegado Leite de Barros fica sabendo que uma dançarina
de "cabaret" (assim se chamavam então, como lembra
o poeta Afranio Zucolotto em seu último livro de poemas,
o Artista Remanescente) fora sondada por um homem misterioso, de
inconfundível sotaque italiano, que lhe oferecera jóias
para vender. A polícia localiza o valhacouto: Rua Abolição,
31-A. O "Gato de Telhado" foge realmente pelos telhados
- sem quebrar uma telha. Foge, mas deixa uma mala cheia de jóias.
E um documento de identidade de Gino Meneghetti.
Da crônica policial, é difícil extrair o que
é verdadeiro e o que é falso, mitológico, na
vida de Meneghetti. De uma feita sequestra o chefe da polícia,
dr. Roberto Moreira, para entregá-lo na redação
de um jornal. Propôs um duelo a bala com o delegado de Roubos
da época, e cujo nome se perdeu na história.
A 21 de maio de 1926, foi surpreendido "in flagranti"
pelos moradores de uma casa que saqueava. Perseguido pelas vítimas
e pelos vizinhos, entre a confusão e o vozerio, escapou,
empregando seu método favorito, saltando de muro em muro,
desaparecendo. Caiu numa obra, cujo guarda, um preto de nome Honorato
- que magnífica coincidência! - deu-lhe voz de prisão.
Disse depois que Meneghetti disparou contra ele, o que o ladrão
negaria com veemência.
Pouco depois, armou-se para prendê-lo um dos maiores dispositivos
policiais de que a cidade tivera notícia até então.
Meneghetti comemorava um "golpe" feliz, numa cantina,
ao lado de um cantor (estes ainda sobrevivem). Identificado por
dois policiais, estes avisaram o Distrito. Armou-se um grande cerco,
ao qual não faltaram, dessas vez, os bombeiros. Os policiais
invadiram a casa. Meneghetti escondeu-se atrás de um tanque
de lavar roupa, fez vários disparos e atingiu o comissário
Valdemar Dória. Pouco depois, do alto de um telhado, Meneghetti
gritava para os policiais, a multidão, os basbaques: "Io
sono Meneghetti! Il Cesare! Il Nerone di San Paolo!". Embora
nascido em Pisa, cidade histórica, é estranho que
uma evocação da história antiga pusesse aflorar
nos lábios de um ladrão. Teria mesmo invocado César
e Nero? Em todo caso, assim ficou consignado na crônica policial
da época. O episódio acabou como sempre acabam: Meneghetti
teve que descer do telhado. Foi preso numa casa da rua dos Andradas,
o no 25. Cercado, fitando as armas apontadas, implorou queixoso:
"Por amor de Deus, não atirem!" Preso, deu seu
endereço secreto, onde a polícia encontrou um considerável
botim.
Julgamento e condenação: 43 anos, dois meses e 10
dias de prisão. Uma vida. A pena foi contudo reduzida para
25 anos. A 17 de janeiro de 1945, Gino Meneghetti a pena comutada,
via novamente a cidade que fora cenário de suas aventuras,
platéia de seus duvidosos exitos, juiz de sua vida de fora
da lei. Passara 19 anos na cadeia. A cidade crescera: antes com
700 mil habitantes havia agora mais de 1 milhão e meio. Muitas
ruas eram agora avenidas. A polícia já era outra,
mais moderna e mais eficaz.
Ficou precisamente 60 dias em liberdade. Ao tentar novo golpe, é
preso, por tentativa de homicídio. As fotografias dos arquivos
mostram um Meneghetti desfigurado pelos golpes sofridos nas mãos
dos policiais. Trava-se uma longa polêmica pelos jornais.
A acusação de mau tratamento é reiterada. Ele
é condenado a sete anos. Sai em 1952. Dois anos depois, em
março de 1954, tenta assaltar uma casa na Vila Mariana, é
preso, passas mais três anos entre as grades.
Nos longos anos de prisão (ele passou 18 anos na cela 504
do presídio do Carandiru), uma grande parte dos quais na
solitária - ele aproveitava as visitas oficiais ao presídio
para insultar as autoridades e vociferar seu inconformismo, - leu
muito, diz a lenda. Leu, não se sabe porque, toda a obra
de Bertrand Russell, o filósofo e matemático inglês,
e de José Ingenieros, psiquiatra e escritor argentino muito
em voga na sua época. Leu também a Bíblia.
(Era ateu, mas em 1960, em homenagem ao tratamento que receberá
das freiras na prisão fez-se batizar). Queixava-se de nunca
ter ido à escola. Vangloriava-se, já então
de "saber a história da humanidade, da civilização".
"Se tivesse ido à escola, seria um gênio".
Viu a luz do sol sem grades, mais uma vez, no dia 15 de outubro
de 1959. A 3 de março do ano seguinte, ganhava, por decisão
do governo, uma banca de jornais na esquina da rua Amador Bueno
com a avenida Ipiranga.
No espaço de quatro anos foi preso mais duas ou três
vezes, por estar em má companhia, como ficou registrado,
ou por atitude suspeita, ou, como aconteceu na noite de 22 de setembro
de 1964, por carregar jóias avaliadas, em 150 mil cruzeiros:
condenado. Saiu de novo em 23 de dezembro de 1966. Tinha 78 anos
de idade. Foi viver com seus filhos, na Vila Guarani. Nesse ano,
foi queixar-se ao prefeito Faria Lima de que sua banca de jornais
fora abandonada enquanto ele estava atrás das grades.
Um breve interregno, na vida familiar. Em fevereiro de 1968, tentou
roubar uma casa, na Vila Mariana. A imaginação era
mais forte do que os músculos, a mente mais otimista do que
as glândulas. Surpreendido, fugiu pelo telhado, mais uma vez,
mas num dos saltos (aos 81 anos!) foi infeliz, quebrou as telhas,
caiu no banheiro de uma casa, como o herói de Dashiel Hammet.
Ficou um ano preso. Tentou novo golpe, numa madrugada, na rua Fradique
Coutinho, Pinheiros. Surpreendido por um carcereiro, de presença
fortuita, não levava documentos. Foi somente na delegacia,
ante um delegado tão atônico quanto o carcereiro, que
Meneghetti declinou sua verdadeira identidade. Aos policiais, comentou,
entre resignado e fleugmático: "Não é
possível ser um bom ladrão sem ter os ouvidos em bom
funcionamento. Acho que terei de me aposentar."
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