RUSCHI DIZ QUE SE SENTE MELHOR COM TRATAMENTO INDÍGENA


Publicado na Folha de S. Paulo, sexta-feira, 24 de janeiro de 1986

Da Sucursal do Rio

O cientista Augusto Ruschi (pronuncia-se Rúsqui), 70, já sentiu melhoras ao final do primeiro dia do ritual da pajelança iniciado ontem no Rio pelo cacique e pajé Raoni, da tribo Txucarramãe, e pelo pajé Sapaim, dos Camaiurá. O tratamento, sugerido pelo presidente José Sarney e pelo ministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, tem o objetivo de ajudar Ruschi a curar-se do veneno de sapos da espécie dendrobata, que ele teria contraído há dez anos na serra do Navio, Amapá. O cientista tentou a cura pela medicina tradicional, mas não obteve resultado.

Dirigindo-se aos jornalistas, após a primeira sessão do ritual, Ruschi afirmou: "Estou mais forte, estou andando mais forte. Não estou cambaleando mais como antes, dias atrás, e vocês têm um retrato fiel do meu estado de saúde, como eu falo mais normal. Vocês estão notando que a minha voz melhorou". Em entrevista à Folha, no último dia 19, o cientista disse que teve implaudismo oito vezes, duas esquistossomoses e uma cirrose hepática virótica, agravada pelo envenenamento de sapo.

Ontem, primeiro dia do ritual - que deve durar de três a quatro dias - foi a portas fechadas, e só o jornalista Rogério Medeiros, do "Jornal do Brasil", teve acesso. Ele contou depois que os pajés submeteram o cientista a um banho de ervas e depois começaram a passar as mãos no seu corpo, de onde saiu uma substância pegajosa e esverdeada. Sapaim disse que aquilo era o veneno do sapo.

Além de Ruschi, também os pajés estavam otimistas. Eles decidiram que não seria mais preciso realizar o tratamento em Santa Teresa, a 80 km de Vitória (ES), onde o cientista dirige o Museu "Mello Leitão", e se dedica a pesquisa de botânica e zoologia da Mata Atlântica, além do estudo dos beija-flores.

Ritual demorado


Raoni e Sapaim chegaram cedo ao Parque e às 9h deram início ao ritual. Pintados de preto, com tinta de jenipapo, eles se instalaram com o cientista num pequeno quarto fechado. Durante uma hora, os índios fumaram charutos de trinta centímetros de folhas que trouxeram do Alto Xingu. Depois de lavar as mãos com frutas usadas "para purificar", esfregaram o corpo do cientista até extrair "o veneno do sapo".

A segunda sessão do tratamento foi à tarde. Os índios primeiro submeteram Ruschi ao mesmo ritual da manhã. Depois, prepararam um chá com raiz de uma erva chamada atorokon. A erva foi fervida e, depois esfriada, para ser espalhada durante quinze minutos pelo corpo do cientista. Depois, os índios voltaram a fumar e a retirar do corpo do cientista "o veneno do sapo", agora com uma cor mais clara.

Durante o segundo ritual, o cacique Raoni afirmou que Ruschi precisava fazer uma espécie de pagamento aos pajés, ou a doença poderia voltar ao seu corpo. O cientista remeteu a cobrança ao presidente José Sarney, que sugeriu o tratamento indígena. Segundo a tradição indígena, esse pagamento poderia ser feito com um cocar ou pena de arara. Raoni não quis adiantar, porém, o que gostaria de receber do presidente. "Ele que sabe. Como ele é um homem, eu também sou um homem. Ele é que vai pensar o que vai dar".

Antropóloga acredita que pajelança cura cientista


Da Reportagem Local

A pajelança (arte de curar praticada pelos curandeiros da Amazônia) poderá salvar a vida do cientista Augusto Ruschi A antropóloga e etnóloga Carmen Junqueira, 42, coordenadora da Pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), acha que sim. Ela mesma diz que já foi curada de uma dor de ouvido insuportável - que depois veio a saber que era uma infiltração atingindo um nervo de um dente - por um pajé da mesma tribo de Sapaim, os camaiurá.

Segundo a antropóloga, um índio pode tornar-se pajé no Alto Xingu, primeiro através de uma revelação, em sonho, de um espírito guardião. Depois o processo se desenvolve através de rituais. Para ela, o pajé, na verdade, é o próprio espírito guardião, de quem o índio pajé é apenas um instrumento.

Os Kajabi, do Alto Xingu, possuem grande religiosidade e tradição cultural enquanto os Cintas-largas, tribo que a antropóloga vem estudando ultimamente, têm pajelança mais discreta. "De um modo geral, pode-se afirmar que as tribos caçadoras tem entidades mais discretas, e as mais ligadas à agricultura, como os camaiurá, tem pajelança mais desenvolvida, mais heróis culturais e uma religião mais completa".

Cada pajé, pelas diferenças do seu espírito guardião, é diferente do outro. Quando alguém fica doente, ou perdido na floresta, por exemplo, o pajé entra em um transe discreto (muito diferente do nosso candomblé) em que fica imóvel e em contacto com o espírito guardião. "O tabaco é outro componente muito importante na pajelança afirma Carmen. Os pajés usam charutos bem compridos que estimulam o contacto com o sobrenatural".

A antropóloga acredita que o problema maior com Ruschi é o tempo transcorrido desde o envenenamento. Ela diz que Sapaim costuma trabalhar com ervas. "Não sei se neste caso isso poderá ocorrer, mas é comum o pajé tirar coisas do corpo do doente, secreções por exemplo, passar a mão no local afetado ou chupar, usando a boca como uma ventosa".

"Os txucarramãe - tribo a que pertence a Raoni, conhecida por usar o botoque no lábio inferior - foram uma das últimas tribos contactadas pelos irmãos Villas Boas na década de 50, quando foram atraídos para o Parque Nacional do Xingu. Segundo o dr. Egon Schaden, 78, ex-professor de Antropologia na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e autor de várias obras sobre cultura indígena brasileira, "a pajelança tem como função principal a cura, pela via mágica ou por plantas medicinais, mas há outras funções, como a religiosa. Os rituais variam muito de um grupo para outro, mas todos invocam os espíritos, localizam o veneno, e fazem a extração do mal em geral por fricções e sucções".

 

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