FHC RECONHECE ZUMBI COMO 'HERÓI'

Presidente lançou ontem em município de Alagoas selo e medalha com nome do líder negro

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 21 de novembro de 1995

ARI CIPOLA
Da Agência Folha, em União dos Palmares

O movimento negro brasileiro conseguiu ontem, dia em que se comemoraram os 300 anos da morte de Zumbi, que o governo reconhecesse o líder negro como herói nacional.
Ao lançar ontem um selo e uma medalha com o nome Zumbi, o presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que o líder negro ''se incorporou, como um herói, ao patrimônio cultural, histórico e político do Brasil". A solenidade aconteceu na Prefeitura de União dos Palmares (AL), a 9 km de onde Zumbi instalou o Quilombo dos Palmares, na serra da Barriga.
A ex-escrava Maria do Carmo Gerônimo, que vai figurar na próxima edição do Guiness Book (livro dos recordes) como a mulher mais velha do mundo _124 anos_, recebeu a medalha das mãos do presidente, que a beijou na testa duas vezes. Também foram lançadas uma cartilha e mudanças no currículo básico escolar de 96.
FHC não foi ao local do antigo quilombo, para onde estava programada a solenidade. Teste feito no sábado pelos helicópteros que levariam o presidente acabou destelhando casas e destruindo plantações de milho e mandioca.
Depois de receber um quadro e uma estátua, ambos representando Zumbi, FHC fez uma declaração polêmica, diante de sua formação acadêmica. ''Importa pouco saber se sua biografia está ancorada em documentos, testemunhas de viajantes. O Zumbi, para nós, tem um significado que transcende a tudo isso'', afirmou em seu discurso.
Além de Pelé, ministro dos Esportes, compareceram os ministros Francisco Weffort (Cultura) e Paulo Renato Souza (Educação) e representantes dos governos de países africanos (África do Sul, Angola, Nigéria e Costa do Marfim).
Sobre a importância de Zumbi no combate à discriminação racial ainda presente no país, FHC reconheceu que há preconceito no país e disse que o governo não pode resolver a situação ''com uma penada''. O presidente propôs, depois de dizer que ''começou a vida'' estudando o preconceito contra os negros no país, uma cruzada contra o preconceito. ''Nós devemos nos armar de vontade de combater, sem demagogia, aquilo que ficou da cultura escravocrata'', afirmou.

Movimento propõe indenização

Da Sucursal de Brasília

O Movimento pelas Reparações-Já propôs ontem na sessão solene em homenagem aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, na Câmara dos Deputados, que haja uma indenização de US$ 102 mil para os descendentes de africanos escravizados à época da colonização do Brasil. Cerca de 60 milhões de pessoas receberiam o benefício como reparação.
Segundo um dos autores do projeto, Fernando Conceição, 36, o presidente Fernando Henrique Cardoso teria direito à indenização pois declarou ''ter o pé na cozinha durante a campanha eleitoral''.
O movimento elaborou um projeto de lei que foi entregue informalmente ao presidente da Mesa, deputado Wilson Campos (PSDB-PE). Pela proposta, também seriam asseguradas cotas para ingresso de descendentes africanos nas escolas e no funcionalismo.
O valor da indenização foi estimado com base nos supostos salários que deveriam receber os 4 milhões de africanos escravizados por 400 anos, tempo gasto para ''construir'' o Brasil. Chega-se a um total de US$ 6,14 trilhões.
Considerando que 45% da população do país é de negros e mestiços, isso equivale a 60 milhões de descendentes. Portanto, cada um teria direito a sua parcela de US$ 102 mil.

Quilombo vira estacionamento

Da Agência Folha, em União dos Palmares

O sítio arqueológico da serra da Barriga, onde Zumbi instalou o Quilombo dos Palmares, em Alagoas, se transformou ontem em estacionamento de carros de autoridades que visitaram o local.
Dezenas de carros circulavam entre grupos de teatro e de capoeira que se apresentaram ontem no alto da serra, onde os arqueólogos afirmam que se localizavam, há três séculos, casas do quilombo.
Reportagem da Agência Folha já havia mostrado que a Prefeitura de União dos Palmares (AL) havia passado uma motoniveladora no local, destruindo três vasos de cerâmica. Em dois anos de pesquisas no local, havia sido encontrado apenas um vaso como aqueles.
Cópia da reportagem foi enviada à assessoria de FHC pelo arqueólogo Paulo Zanettini, da USP (Universidade de São Paulo).
A situação foi pior ontem, devido à mudança de local da solenidade em homenagem a Zumbi.
FHC decidiu não ir ao antigo quilombo por problemas logísticos. A solenidade acabou acontecendo na Prefeitura de União dos Palmares, que desativou o sistema de segurança montado na serra.
A segurança de FHC havia impedido que os carros chegassem até o topo da serra. Eles estacionariam a 1 km do sítio arqueológico.

Brasília faz marcha contra racismo

Da Sucursal de Brasília

A Marcha contra o Racismo, pela Igualdade e a Vida, que aconteceu ontem em Brasília, nas comemorações dos 300 anos da morte de Zumbi, reuniu cerca de 4.000 pessoas entre às 12h e 13h, de acordo com a estimativa da PM.
Entre os organizadores do evento não havia um consenso sobre os participantes. O primeiro carro de som anunciava estar presentes 50 mil pessoas. A 500 m de distância, outro carro falava em 20 mil. Até às 18h, a Polícia Militar não tinha o número de manifestantes.
As comemorações começaram às 10h, com uma caminhada de 2 km da rodoviária ao Congresso Nacional. Não houve acidentes ou brigas. Os participantes ficaram concentrados em frente à rampa do Congresso, onde foi montado um palanque para shows. Às 20h30, estava previsto um show com o cantor Milton Nascimento e o conjunto baiano Olodum.
Foram mobilizados 600 policiais para a segurança. O equivalente a um policial para cada 18 manifestantes. Normalmente, a PM do DF mantém um policial para cada mil habitantes.
O presidente do PT, José Dirceu, e o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva acompanharam o trajeto. No tumulto, Lula foi interpelado pela missionária evangélica Silvanira Lellis, 53: ''Nossa, sempre pensei que você fosse preto.''
Jamaica
As cores da Jamaica se destacaram na marcha. A composição da bandeira do país estava nas camisas e nas cabeças dos manifestantes: nos acatês (uma espécie de boné sem aba), boinas à la Bob Marley e nos penteados afros.
''Temos orgulho da nossa raça, do nosso cabelo, da nossa cor'', disse Maria Lúcia de Carvalho, 46, do comitê Pró-Marcha de Mulheres Negras.
E os cabelos alisados também estavam lá. ''Não gosto do 'pixaim'. Aliso por vaidade e não vou deixar de fazê-lo'', afirmou Célia Antônia Bento, 24, do grupo Pró-Casa de Belo Horizonte (MG).
Uma platéia só de brancos ficaria, no mínimo, assustada com os berros de Gilmar Martins, 21, líder do grupo Nação Zumbi. ''Logo nós vamos nos armar e, quando estivermos armados, se algum branco gritar, nós vamos matar.''
Ele vociferou do alto do palco, com microfone na mão. A platéia gostou, aplaudiu e Martins se animou: ''Luta armada é a solução, nós precisamos nos armar, botar na cabeça a luta armada''.
O líder deixou o palco sob aplausos. Ele é o coordenador do grupo Nação Zumbi, entidade cultural sediada no Espírito Santo.


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