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          | AS ESTRANHAS OCUPAÇÕES DE QUEM NÃO TEM EMPREGO 
              CERTO
 
 
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          | Publicado 
              na Folha de S.Paulo, domingo, 19 de outubro de 1969 |   
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              Neste texto foi mantida a grafia original
 
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          | Rubem Braga, o cronista, é um leitor assiduo de anuncio classificados: 
            êles são importantes porque contam os dramas, as aflições 
            das grandes cidades. Os ultimos anos marcaram o surgimento de novos emprêgos em São 
            Paulo, mas as páginas de classificados não têm 
            chamado candidatos a êsses novos cargos. Ninguém põe 
            anuncio se precisa de um vendedor de maconha, de um lavador de carros, 
            de um calouro profissional, de um pesquisador ou vendedor de sangue. 
            O que não quer dizer que estas ocupações não 
            existam.
 Também como o cronista, mas com outras intenção, 
            350 mil brasileiros que deixaram outros Estados e vieram para a capital 
            paulista entre 1963 e 1967 foram obrigados a recorrer aos anuncios 
            - sem êles não conseguem emprêgo.
 Em busca de uma melhoria de vida, apenas uma minoria, 100 mil, pôde 
            ser obsorvida pelas crescentes oportunidades de trabalho no mercado 
            paulista. Os outros 250 mil se empregam em serviços de faxina, 
            engraxate, lavador de carro, pedreiro, operário de construção 
            civil, camelô e outros biscates.
 Essa gente sem emprêgo fixo, que trabalha sem nenhum vinculo 
            trabalhista, que hoje tem onde ganhar dinheiro e amanhã pode 
            não ter de onde retirar seu sustento, trabalha em atividades 
            que a Comissão Econômica para a América Latina 
            (Cepal) chama de emprêgo disfarçado ou subemprego.
 O emprego disfarçado surge no instante em que os varios campos 
            de trabalho existentes não conseguem absorver o excesso de 
            mão-de-obra. Numa cidade como São Paulo, em que as pessoas 
            se preocupam mais com os beneficios de uma cidade industrial e comercial; 
            essas atividades não chegam a causar espanto.
 Pesquisa recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica 
            (IBGE) constatou que na cidade de São Paulo vivem 2% de pessoas 
            desocupadas. Entre elas, 72% dedica-se a afazeres domesticos, 13,9% 
            frequentam escola e 14,1% possuem outras atividades temporarias.
 O grupo de pessoas desocupadas, e as que realizam atividades denominadas 
            de emprego disfarçado na sua maioria não são 
            nordestinos. Os numeros desmentem a crença popular de que são 
            pessoas do nordeste que imigram para São Paulo.
 Na verdade, eles correspondem a pouco mais da metade do numero de 
            mineiros chegados a esta cidade. Reunidos, os imigrantes de Pernambuco, 
            Alagoas, Ceará, Paraiba, Rio Grande do Norte, Piaui e Maranhão 
            somaram, naquele periodo, 85 mil pessoas. O total de mineiros foi 
            de 140 mil.
 Uma pesquisa realizada pela Fundação Plano de Amparo 
            Social (PAS), orgão dirigido pela esposa do governador Abreu 
            Sodré, primeiro a estudar no país as populações 
            marginais, chegou as seguintes conclusões: as pessoas migram 
            mais de uma vez, e continuam tentando, mesmo que as primeiras oportunidades 
            não tenham sido boas; nossa cidade é o grande centro 
            procurado pelos imigrantes, que vêem numa cidade urbanizada 
            e industrializada como São Paulo grandes oportunidades de trabalho, 
            mas o desenvolvimento economico não leva necessariamente a 
            um desenvolvimento social; da população marginalizada, 
            somente trabalham em atividades de subemprego ou emprego disfarçado 
            30%, que sustenta a grande maioria, que por doença ou incapacidade 
            mental e fisica não pode trabalhar.
 Depois desta pesquisa e da realização de um estudo complementar, 
            o PAS enviou ao governador do Estado suas conclusões acompanhadas 
            da seguinte sugestão: "é necessario criar novas 
            oportunidades de trabalho para evitar que a população 
            dependente, colocada em emprego disfarçado, tenha mais condições 
            e proteções em suas atividades".
 
 
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          | Vendedor 
            de sangue. Esta é sua profissão |   
          | A expressão "vender sangue" é chocante 
            para a maioria das pessoas. Mas para os que realmente se dedicam a 
            atividade, com o intuito de ganhar dinheiro, essas palavras não 
            têm mais conotação emocional. Para viver as pessoas 
            se acostumam com tudo.
 
 Manhã típica de inverno paulistano: garoa fina e céu 
            acinzentado. Oito horas da manhã esquina das ruas Pio XII e 
            Martiniano de Carvalho. Alguns homens conversam em frente à 
            porta azul de uma casa branca.
 São pessoas comuns. Vestem roupas descoloridas e amassadas. 
            Todos têm um ar cansado, olheiras fundas. Diante da porta azul 
            contam casos, comentam o jogo de domingo.
 Diomar Antonio Garcia é o que chama mais atenção. 
            Por sua cor amarelada entre os seus companheiros mais morenos. Ele 
            foi um dos primeiros a chegar, mas não vai ultrapassar a porta 
            azul. Hoje apenas trouxe uns amigos.
 São oito e meia quando a porta abre. Rápido um dos homens 
            deixa o grupo. A porta se fecha. Aqui fora o papo continua. Esse ritual 
            vai se repetir até a uma da tarde.
 Entram uns, outros saem. Mas o numero de pessoas espalhadas por aquela 
            esquina aumenta.
 Não há nada de anormal naqueles homens que conversam. 
            Ninguem fala alto e nem discute. Apenas esperam a vez.
 Diomar, como a maioria de seus companheiros, veio do interior. Chegou 
            de Tapiratiba pensando arranjar um emprego melhor do que o trabalho 
            na roça. No inicio empregou-se como servente, depois foi promovido. 
            Ganhou lugar de tecelão numa fabrica. Passaram-se dois anos. 
            Tempo em que um pequeno salario permitiu que ajudasse os irmãos 
            a pagar o aluguel de um barraco na Agua Rasa.
 Um dia seu chefe na fabrica comunicou que trinta operarios seriam 
            despedidos. Foi aí que começaram os sacrificios.
 - Resolvi doar meu sangue. Isso faz oito meses, não tinha como 
            ganhar dinheiro, não arranjava emprego de jeito nenhum. Foi 
            por necessidade, moço. Na primeira vez senti uma tontura, depois 
            acostumei.
 Dias atrás, em um pôsto do Cambuci, faturou 10 cruzeiros 
            novos doando 350 gramas de sangue. Como a marca ainda não desapareceu 
            e êle precisa ganhar dinheiro tentou uma outra solução. 
            Reuniu uns amigos na mesma situação, apresentou-se a 
            um pôsto e cobrou de cada um dois cruzeiros novos de comissão.
 Depois de tôdas as provações Diomar já 
            está acostumado. Não sente mais tonteiras e nem fica 
            sem nenhum dinheiro no bôlso. Sempre dá um jeito. Às 
            vezes aparece um bico.
 - É apenas quebra-galho. Carrego lenha prá padaria, 
            compra prá padaria, compra prá madame, faço limpeza, 
            qualquer coisa prá ganhar um pouco. Parado é que não 
            fico."
 Diomar e seus companheiros, anonimos doadores de sangue, ajudam a 
            salvar muitas vidas, fazendo do seu sangue ganha-pão. Crianças 
            desidratadas, adultos operados, pessoas acidentadas, ao serem atendidos 
            nos hospitais nem imaginam o drama que possibilitou o sangue que acabam 
            de receber. Sangue de corpos sem muitas calorias, de gente que para 
            viver precisa vender um pouco de vida.
 
 
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          | O 
            público não conhece o drama que leva calouro a TV |   
          | Milhões de telespectadores vêem no video os calouros 
            tentando tornar-se cantores. Certamente não imaginam que essas 
            pessoas subempregadas depositam nos programas de calouros as esperanças 
            de um dia encontrar a gloria e uma vida melhor.
 
 Na porta de uma estação de televisão da capital 
            paulista, uma longa fila de pessoas humildes dificulta a passagem 
            dos que transitam por aquele lado da calçada.
 Homens, mulheres, jovens. Todos à espera de uma oportunidade 
            na tevê. São candidatos ao primeiro estagio da vida artistica: 
            o programa de calouros.
 Sete horas da noite de quinta-feira. Muitos estão na fila desde 
            às onze da manhã, outros chegaram depois de largarem 
            o serviço no escritorio, na fabrica ou na construção. 
            Só os trinta primeiros terão oportunidade de se apresentar 
            no programa do proximo sabado, os outros ficam escalados para a outra 
            semana.
 Enquanto esperam, fazem novas amizades. A maioria se conhece. Tentam 
            há muito tempo obter um lugar ao sol. Conversando sobre assuntos 
            do dia a dia, ou comentando a ultima aparição num programa 
            de calouro, passam horas.
 Alguns, os mais desinibidos, recebem apelidos que os destacam na comunidade 
            dos calouros de tevê. Topo Gigio é um deles. Nome de 
            guerra de Alcebiades Rodrigues, um mineiro baixo, dentuço, 
            de roupa amarrotada que há dois meses, por necessidade, tornou-se 
            calouro profissional.
 Alcebiades foi apelidado de Topo Gigio por sua semelhança com 
            o controvertido rato da tevê. Ele sabe das duvidas maliciosas 
            que pairam sobre o comportamento do personagem, mas não se 
            importa.
 - Essa gente toda, irmão, tem um carinho muito grande pelas 
            pessoas que tentam a sorte na televisão. Eles sabem que nós 
            somos necessarios prá o negocio funcionar.
 Até o mês de agosto Alcebiades Rodrigues era apenas um 
            modesto operario de construção. Ganhava 180 cruzeiros 
            novos por mês, dinheirinho que dava para acabar de construir 
            o barraco com que há muito sonhava.
 Terminado o barraco, "o ponta esquerda", nome pelo qual 
            Alcebiades é conhecido em Ribeirão Pires, ficou desempregado. 
            Com mais 35 colegas foi despedido da firma em que trabalhava.
 No inicio ainda conseguiu alguns biscates, mas aos poucos foram se 
            tornando mais dificeis. Resolveu então tentar realizar um velho 
            sonho: ser cantor de televisão.
 Com alguma timidez se apresentou no programa Silvio Santos, onde acabou 
            levantando um cachê de cinquenta cruzeiros novos. Empolgou-se.
 - Era mais facil fazer quatro programas por mês do que trabalhar 
            duro na pedreira.
 Foi aí que começou a carreira profissional de Topo Gigio, 
            o calouro profissional. Novos cachês, aparelhos eletrodomesticos 
            e uma viagem ao Rio de Janeiro como representante dos calouros paulistas 
            estimularam sua carreira.
 Com vinte e cinco anos, casado, uma filha de três anos e morando 
            a quarenta minutos do centro da cidade, Alcebiades Rodrigues é 
            um dos mais novos integrantes da comunidade de calouros profissionais, 
            um grupo que vai ganhando novos adeptos à medida que as oportunidades 
            de emprego vão diminuindo.
 Participar, como calouro, dos programas de televisão, para 
            ele é a única oportunidade que vê de melhorar 
            de vida.
 
 
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          | Lice, 
            as tentativas de não voltar |   
          | O mês 
            e o dia não importam, mas foi há muito tempo. Dia de 
            partida na casa de uma familia de Porto Ferreira, Interior de São 
            Paulo. Lice de Souza, 18 anos, professora primaria recem-formada deixa 
            sua cidade. Para trás fica uma estrutura familiar tradicional, 
            uma vida de provincia sem nenhuma perspectiva.
 O mesmo fato se repete todos os dias nas cidades do Interior. São 
            moças que vêm para a Capital a procura de uma nova vida. 
            Chegam sozinhas, sem conhecimentos, sem trabalho. Uma minoria não 
            resiste à pressão e ao isolamento da cidade grande, 
            e acaba cedendo as tentações de modo mais faceis, embora 
            precarios, de ganhar a vida, outras continuam lutando.
 Lice de Souza passou dois meses desempregada. Não conhecia 
            ninguem. Não recebia nenhum apoio. A primeira oportunidade 
            surgiu quando uma colega de pensionato indicou-lhe uma vaga de professora 
            numa escola particular.
 - O ordenado não era grande coisa, mas servia para começar. 
            Era uma clareira que se abria na selva de gente e concreto armado. 
            Ganhava 15 cruzeiros novos.
 Quatro meses depois surge outra oportunidade, tambem indicada pela 
            colega de pensionato: dar aulas numa escola estadual em Itapecirica 
            da Serra, com ordenado de 75 cruzeiros novos.
 - Era uma melhora que compensava as duas horas de onibus até 
            esse municipio proximo a capital. Foi a primeira experiencia como 
            professora substituta, experiencia amarga que todos os anos me obriga 
            a fazer pesquisa de mercado num certo periodo do ano.
 
 
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          | "Fiz 
            concurso, mas foi anulado" |   
          | Lice 
            é baixa, magra, veste com elegancia roupas que em muita gente 
            ficariam ridiculas. Tem vinte e cinco anos. Quando fala, passa de 
            leve os dedos na sobrancelha, num gesto de timidez que entre seus 
            amigos ficou sendo seu grande charme.
 Ela já prestou concurso para professora estadual, mas por azar 
            o concurso foi anulado, e sua vida de dificuldades continua. Alguns 
            meses como professora, outros pesquisadora. E assim vai vivendo.
 Como professora substituta sua função é identica 
            a de uma professora efetiva, apenas não tem estabilidade funcional 
            e nenhuma regalia. Quase sempre, depois de familiarizada com seus 
            alunos, tem de abandoná-los. Alguma professora efetiva foi 
            nomeada para a sua turma.
 Algumas vezes os alunos protestam, não querem perder a companhia 
            da "pequena amiga", mas a burocracia do sistema educacional 
            é mais forte que os protestos.
 Como professora substituta, ela só dá aula em escolas 
            afastadas do centro da cidade. Em geral, escolas de madeira onde estudam 
            crianças subalimentadas.
 - É uma dificuldade aplicar os metodos e a pedagogia apreendidos 
            no curso normal. A escola não tem material didatico. As crianças 
            não têm dinheiro. O unico material didatico com que a 
            professora conta é o giz, o quadro negro e sua imaginação.
 Além da falta de estabilidade e das dificuldades para ensinar 
            as crianças, há outro problema serio: como viver de 
            dezembro a fevereiro, periodo das ferias. Funcionaria sem vinculo 
            trabalhista, não recebe nada além dos ordenados dos 
            meses em que trabalhou.
 Quando chegam as ferias, está desempregada. A solução 
            é apelar para a pesquisa de mercado. Com um questionario elaborado 
            por tecnicos em pesquisa, percorre casa por casa de um determinado 
            bairro. É preciso muita paciencia para convencer as donas de 
            casa de que a pesquisa é importante e ela necessita de seu 
            concurso.
 
 
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          | "Agora 
            não, moça, estou ocupada" |   
          | No fim do dia os resultados são quase sempre pobres, pois dependem 
            da boa vontade e disponibilidade da pessoa procurada. Ganhando por 
            questionário respondido, Lice já realizou pesquisas 
            sôbre o desodorante preferido das famílias, a marca de 
            leite, a côr do sabão em pó e algumas pesquisas 
            para laboratorios farmacêuticos junto ao médico.
 Todo êsse trabalho lhe rende uma importante experiência 
            humana, mas muito pouco dinheiro, que apenas ameniza as preocupações. 
            É um serviço de utilidade publica, que realiza sem nenhuma 
            ligação trabalhista com a firma, tendo ainda de enfrentar 
            o humor das donas de casa.
 - Em geral as donas de casas não recebem o pesquisador muito 
            bem, estão ocupadas, dizem que têm muito o que fazer.
 Pesquisando, ganha pelo numero de questionários que completar. 
            Dando aula ganha só 417 cruzeiros novos, que lhe permitem pagar 
            o apartamento que divide com as amigas e não morrer de fome.
 Ela quer fazer cursos de secretariado, inglês, ou outra coisa 
            qualquer que lhe possibilite outro emprêgo, ganhar mais e ter 
            mais tranquilidade. Mas de que jeito?
 
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