PARA QUE SERVE O CÃO?


Publicado na Folha da Manhã, segunda-feira, 19 de Agosto de 1929

Neste texto foi mantida a grafia original


—Para que nos serve o cão? Aborrece-me ouvil-o ladrar a cada momento; gosto de silêncio de noite e este animal o interrompe a cada instante.
— Pois sim, filha, mas ouve lá; convence-te de que se o cão ladra, é por uma razão qualquer. Justamente temos o cão para isso, para que nos avise da bulha ou disturbios que elle ouve e que a nós nos não chegam.
— Mas os outros colonos não têm cães. Este animal poderia ser util na Europa, porém numa colonia não vejo qual seja a sua utilidade.
— Pois fica certa que é util; mas ainda que não o fosse, bastaria ser um presente de um amigo que regressou à França para que eu tenha empenho em conserval-o: é como que uma lembrança da patria.
— É demais, mamã, o Fiel é muito intelligente: se o visses correr farejando por entre as plantações de canna ou correndo atraz de mim pela avenida de palmeiras, comprehenderias que é um bom companheiro de brincadeira.
— Pois bem, já que lhes agrada a teu pai e a ti, fique em paz animalejo. Quando me acordar, pensarei que vocês gostam do bicho e tratarei de ter paciencia.
Ao dizer estas palavras a senhora de Lorma, uma formosa creola, sorria a seu marido e ao seu filho que estavam junto della e estendendo-se na sua rêde, fechou os olhos, adormecida por uma atmosphera pesada e abrazadora daquella tarde de Maio de 1843.
Á hora da ceia a conversa não foi muito animada: os habitantes daquelle lindo sitio, nos arredores de Capesterre, na Guadelupa, sentiam-se opprimidos pela temperatura e peso do ambiente.
O senhor de Lorma foi o primeiro a propor que cada um se recolhesse ao seu quarto.
— Dizem os pretos, —disse elle á sua mulher— que o vulcão da grande Enxofreira está fumando mais do que é costume; entretanto consta que não ha que receiar uma errupção, mas que teremos alguns dias de calor horroroso; o melhor é deitar-nos e dormir se for possivel. Se for necessario darei uns dias de licença aos trabalhadores e depois se recuperará o tempo que agora perdermos.
— Nem todos os colonos são tão bons e indulgentes como tu és, —observou a senhora de Lorma.
— E tenho razão, Carmem, pois quem serve com amizade e gratidão trabalha melhor do que quem serve dura obrigação.
A conversa pouco durou. Um instante depois as casinholas da fazenda achavam-se em profundo silencio.
Por alta noite o cão começou a uivar tão persistentemente que o senhor de Lorma se levantou, vestiu-se summariamente e foi ver o que succedia.
A senhora tambem teve curiosidade: nunca Fiel tinha uivado daquella maneira.
— Não é necessario —objectou o colono—, basta que eu saia só; o relento da noite após fazer-te mal.
O senhor de Lorma, dirigiu-se ao canil onde se achava preso o animal tão queixoso; este lambeu as mãos do dono, o qual o soltou da cadeia a que estava preso. Immediatamente o cão correu até á casa e se precipitou até ao quarto onde dormia o mocito Felix o seu companheiro de brinquedos. Tanto arranhou na porta que o senhor Lorma acabou por chamar o seu filho para que abrisse.
— É extraordinario! —exclamou o sr. de Lorma— este animal exprime-se com a maior clareza: bem dá a entender que quer que o Felix saia. Com effeito o mocito abriu a porta e o cão puxou-o pela roupa até fóra. Felix vestiu-se rapidamente, obedecendo ás indicações de Fiel. E assim que viu o seu jovem amo prompto, o cão começou a marchar diante delle, como guia. Entretanto a senhora de Lorma tinha-se tambem vestido e tinha ido ter com seu marido e com o seu filho. Todos tres seguiam com surpresa o cão, sem saber o que tudo aquillo significava, mas confiando no instincto do animal que mais tino ainda tinha do que elles.
— Dar-se-á o caso de corrermos algum perigo em casa, que algum dos criados queira assassinar-nos?
Apenas tinha o sr. de Lorma formulado esta hypothese, quando se ouviu um trovão formidavel: tremeu a terra. O colono comprehendeu então o que succedia: eram estas as primeiras manifestações de um terremoto. Estendeu os braços á sua mulher e a seu filho como que tentando protegel-os contra todas as eventualidades possiveis. O cão tornara-se mudo; o cataclysmo parecia já não interssal-o mais. Alargou as patas para não perder o equilibrio e esperou firme o tremor da terra. O colono imitou o animal pondo-se bem firme e aconscelhando a sua mulher e filho A que o imitassem o que fizeram, abrindo tambem os braços em crus. Pouco esperaram: houve uma oscillação violenta que durou uns trinta segundos: instantes depois, quando Lorma olhou em roda de si viu que tudo desapparecera e que se tinha aberto uma funda cavidade. Nesse abysmo tinham desapparecido como que absorvidas até as proprias ruinas.
Outra oscillação menos forte terminou o terremoto. Lorma manifestou a sua tenção de se dirigir até ao sitio da catastrophe no intuito sem dúvida de prestar auxilio aos que poderiam talvez estar enterrados nas ruinas: porém o Fiel interveiu puxando, pela roupa do seu amo e tentando leval-o dalli embora até Capesterre. Era o mais prudente, e sem duvida o unico meio de salvar-se suppondo que a villa não tivesse tambem desapparecido como a sua fazenda. Talvez nesse caso achasse alguma embarcação disponivel.
Não se ouvia voz nenhuma humana: era evidente que todos os habitantes da fazenda tinham ficado sepultados na enorme cavidade, enterrados nas ruínas. O dever de Lorma agora era salvar a sua mulher e filho. Encaminharam-se até ao porto e tiveram a felicidade de chegar alli sãos e salvos. A população da villa se tinha refugiado a bordo das embarcações que felizmente alli se achavam em grande numero. Lorma e a sua familia foram recolhidos a bordo de um dos barcos, porém, o capitão se oppôz formalmente a recolher o cão.
— Tenho apenas o espaço necessario para a gente; não posso salvar os cães - disse elle.
Porém Lorma explicou rapidamente ao capitão o que Fiel acabava de fazer e afinal o marinheiro consentiu em que Fiel fosse tambem embarcado. Puzeram rumo á França. Lorma estava completamente arruinado. Porém, em França encontrou o amigo que lhe dera o cão e esse amigo protegeu Lorma e sua familia proporcionando-lhes meios para restaurarem os seus bens.
Em quanto a Fiel, a senhora de Lorma nunca mais deixou de o acariciar e tratar tão bem como merecia o salvador da familia.
— Justificaste o teu nome —dizia ella ao cão. — És bem o mais fiel amigo que tenho visto. Eu queria prescindir de ti e tu nos salvaste a vida.
— E demais —accrescentava Lorma— eu que te guardava em memoria do meu paiz, aqui voltei á minha patria devido a tua intervenção.
Mais tarde ao registrarem os acontecimentos daquelle grande phenomeno scismico, não faltou quem tivesse conhecimento dos factos que acabamos de referir e por essas pessoas passaram á História, e mais uma vez assim ha occasião de notar os nobres instinctos desse animal tão fiel amigo do homem.


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