Para
que nos serve o cão? Aborrece-me ouvil-o ladrar a cada momento;
gosto de silêncio de noite e este animal o interrompe a cada
instante.
Pois sim, filha, mas ouve lá; convence-te de que se
o cão ladra, é por uma razão qualquer. Justamente
temos o cão para isso, para que nos avise da bulha ou disturbios
que elle ouve e que a nós nos não chegam.
Mas os outros colonos não têm cães. Este
animal poderia ser util na Europa, porém numa colonia não
vejo qual seja a sua utilidade.
Pois fica certa que é util; mas ainda que não
o fosse, bastaria ser um presente de um amigo que regressou à
França para que eu tenha empenho em conserval-o: é
como que uma lembrança da patria.
É demais, mamã, o Fiel é muito intelligente:
se o visses correr farejando por entre as plantações
de canna ou correndo atraz de mim pela avenida de palmeiras, comprehenderias
que é um bom companheiro de brincadeira.
Pois bem, já que lhes agrada a teu pai e a ti, fique
em paz animalejo. Quando me acordar, pensarei que vocês gostam
do bicho e tratarei de ter paciencia.
Ao dizer estas palavras a senhora de Lorma, uma formosa creola,
sorria a seu marido e ao seu filho que estavam junto della e estendendo-se
na sua rêde, fechou os olhos, adormecida por uma atmosphera
pesada e abrazadora daquella tarde de Maio de 1843.
Á hora da ceia a conversa não foi muito animada: os
habitantes daquelle lindo sitio, nos arredores de Capesterre, na
Guadelupa, sentiam-se opprimidos pela temperatura e peso do ambiente.
O senhor de Lorma foi o primeiro a propor que cada um se recolhesse
ao seu quarto.
Dizem os pretos, disse elle á sua mulher
que o vulcão da grande Enxofreira está fumando mais
do que é costume; entretanto consta que não ha que
receiar uma errupção, mas que teremos alguns dias
de calor horroroso; o melhor é deitar-nos e dormir se for
possivel. Se for necessario darei uns dias de licença aos
trabalhadores e depois se recuperará o tempo que agora perdermos.
Nem todos os colonos são tão bons e indulgentes
como tu és, observou a senhora de Lorma.
E tenho razão, Carmem, pois quem serve com amizade
e gratidão trabalha melhor do que quem serve dura obrigação.
A conversa pouco durou. Um instante depois as casinholas da fazenda
achavam-se em profundo silencio.
Por alta noite o cão começou a uivar tão persistentemente
que o senhor de Lorma se levantou, vestiu-se summariamente e foi
ver o que succedia.
A senhora tambem teve curiosidade: nunca Fiel tinha uivado daquella
maneira.
Não é necessario objectou o colono,
basta que eu saia só; o relento da noite após fazer-te
mal.
O senhor de Lorma, dirigiu-se ao canil onde se achava preso o animal
tão queixoso; este lambeu as mãos do dono, o qual
o soltou da cadeia a que estava preso. Immediatamente o cão
correu até á casa e se precipitou até ao quarto
onde dormia o mocito Felix o seu companheiro de brinquedos. Tanto
arranhou na porta que o senhor Lorma acabou por chamar o seu filho
para que abrisse.
É extraordinario! exclamou o sr. de Lorma
este animal exprime-se com a maior clareza: bem dá a entender
que quer que o Felix saia. Com effeito o mocito abriu a porta e
o cão puxou-o pela roupa até fóra. Felix vestiu-se
rapidamente, obedecendo ás indicações de Fiel.
E assim que viu o seu jovem amo prompto, o cão começou
a marchar diante delle, como guia. Entretanto a senhora de Lorma
tinha-se tambem vestido e tinha ido ter com seu marido e com o seu
filho. Todos tres seguiam com surpresa o cão, sem saber o
que tudo aquillo significava, mas confiando no instincto do animal
que mais tino ainda tinha do que elles.
Dar-se-á o caso de corrermos algum perigo em casa,
que algum dos criados queira assassinar-nos?
Apenas tinha o sr. de Lorma formulado esta hypothese, quando se
ouviu um trovão formidavel: tremeu a terra. O colono comprehendeu
então o que succedia: eram estas as primeiras manifestações
de um terremoto. Estendeu os braços á sua mulher e
a seu filho como que tentando protegel-os contra todas as eventualidades
possiveis. O cão tornara-se mudo; o cataclysmo parecia já
não interssal-o mais. Alargou as patas para não perder
o equilibrio e esperou firme o tremor da terra. O colono imitou
o animal pondo-se bem firme e aconscelhando a sua mulher e filho
A que o imitassem o que fizeram, abrindo tambem os braços
em crus. Pouco esperaram: houve uma oscillação violenta
que durou uns trinta segundos: instantes depois, quando Lorma olhou
em roda de si viu que tudo desapparecera e que se tinha aberto uma
funda cavidade. Nesse abysmo tinham desapparecido como que absorvidas
até as proprias ruinas.
Outra oscillação menos forte terminou o terremoto.
Lorma manifestou a sua tenção de se dirigir até
ao sitio da catastrophe no intuito sem dúvida de prestar
auxilio aos que poderiam talvez estar enterrados nas ruinas: porém
o Fiel interveiu puxando, pela roupa do seu amo e tentando leval-o
dalli embora até Capesterre. Era o mais prudente, e sem duvida
o unico meio de salvar-se suppondo que a villa não tivesse
tambem desapparecido como a sua fazenda. Talvez nesse caso achasse
alguma embarcação disponivel.
Não se ouvia voz nenhuma humana: era evidente que todos os
habitantes da fazenda tinham ficado sepultados na enorme cavidade,
enterrados nas ruínas. O dever de Lorma agora era salvar
a sua mulher e filho. Encaminharam-se até ao porto e tiveram
a felicidade de chegar alli sãos e salvos. A população
da villa se tinha refugiado a bordo das embarcações
que felizmente alli se achavam em grande numero. Lorma e a sua familia
foram recolhidos a bordo de um dos barcos, porém, o capitão
se oppôz formalmente a recolher o cão.
Tenho apenas o espaço necessario para a gente; não
posso salvar os cães - disse elle.
Porém Lorma explicou rapidamente ao capitão o que
Fiel acabava de fazer e afinal o marinheiro consentiu em que Fiel
fosse tambem embarcado. Puzeram rumo á França. Lorma
estava completamente arruinado. Porém, em França encontrou
o amigo que lhe dera o cão e esse amigo protegeu Lorma e
sua familia proporcionando-lhes meios para restaurarem os seus bens.
Em quanto a Fiel, a senhora de Lorma nunca mais deixou de o acariciar
e tratar tão bem como merecia o salvador da familia.
Justificaste o teu nome dizia ella ao cão.
És bem o mais fiel amigo que tenho visto. Eu queria prescindir
de ti e tu nos salvaste a vida.
E demais accrescentava Lorma eu que te guardava
em memoria do meu paiz, aqui voltei á minha patria devido
a tua intervenção.
Mais tarde ao registrarem os acontecimentos daquelle grande phenomeno
scismico, não faltou quem tivesse conhecimento dos factos
que acabamos de referir e por essas pessoas passaram á História,
e mais uma vez assim ha occasião de notar os nobres instinctos
desse animal tão fiel amigo do homem.
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