CIRCULO DE DANTE
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Publicado
na Folha da Manhã, segunda-feira, 19 de Abril de 1926
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Neste texto foi mantida a grafia original
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Nas ruas de S.Paulo, nos mais febril dos bairros paulistas, no Braz
morre-se de fome, em plena luz do sol! Morre-se de fome e não
ha, sinão da parte dos operarios de lá, quem soccorra,
quem se ponha em pé e brade em prol dos agonizantes do pão.
Si o caso se passasse nos presídios de quasi além fronteiras,
no extremo norte do paiz, a distancia haveria de minorar a desolação
da verdade e muitos jornaes chamariam pelos infelizes, como se agitaria
a organizada e ostentatoria caridade paulista. Entretanto, a fome
trucida corpos a dois passos do centro, nas ruas adjacentes á
Immigração. A fome abate ahi corpos de creanças
inermes, de mulheres indefesas, de velhos que se esturram ao nosso
sol, que se afogam no lamaçal daquellas sargetas, inanidos
pelo jejum dolosso de não ter, de não saber imploral-o,
porque desconhecem a lingua do paiz. E cá em cima quem se lembra
delles, na hora farta da mesa lauta e bem regada? Quem dentre os directores
de associações de caridade já se moveu até
á Moóca para "de visu" verificar a mentira
das noticias que certos interessados espalham na cidade? Onde a obra
dos catholicos dos protestantes, dos espiritas, de todos que se dizem
imitadores de Christo, caritativos dos momentos de effeito, nunca,
porém, dos instantes necessarios? Nestes dias em que os moradores
daquele bairro se affligem com a dolorosa visão de creança
a agonizar nas calçadas, febrentas, com sarampo; quando os
proprios encarcerados da Immigração protestar e clamam
contra a perseguição que se move a esses pobres camponezes
da Bessarabia, qual foi a representante da Cruz Vermelha, da Cruz
Verde e não sabemos que outras côres, das senhoras catholicas
ou de Therezinha de Jesus, que por lá surgiu, expondo-se a
macular da lama os seus tacões a Luis XV?
Agora é que a caridade deveria fulgir, divino, a levar o conforto
mais commum, um pedaço de pão, a esses homens, christãos
e humanos como nós, que se extertoram nas garras da fome e
da miseria mais completa. Agora seria o momento... e comtudo, justamente
aquelles que menos podem, os operarios das fabricas, é que
têm sido os unicos a surgir nesse quartel de desgraça
humana. Num barracão, ao lado, uma familia de trabalhadores
pauperrimos, acolhem um grupo desses infelizes: hontem, falleceram
alli, duas creanças inanidas. Numa rapida vísita que
lhe fizemos, veio-nos ao encontro um menino: a pelle parecia de pecego,
sem sangue e mirrada; as pernas eram dois birros e tremia de febre,
de fome. Pelas calçadas, moças desalentadas se estiravam,
sem animo até para pedir. Amontoados e famintos, tresandam
horrivelmente, ameaçando um epidemia virulenta. Pequeninos
de alguns annos roiam pedaços de cenoura crua, pondo as mãosinha
supplices aos que passavam. O nosso espanto foi crescendo á
medida que penetravamos naquelle circulo de Dante, mas, odne cresceu
de horror foi ao encontrarmos, entre esses extrangeiros sem pão,
brasileiros, caboclos, pretos, esfaimados também. Ouçam,
paulistas que se dizem christãos, ouçam e se quizerem
certificar-se, vão até lá - entre extrangeiros
que morrem de fome, em pleno coração de S.Paulo, ha
brasileiros, ha outros paulistas que padecem da mesma falta de pão.
Mas será crivel que até agora sejamos nós os
unicos presenciadores de tamanha afflicção? E vós,
senhores, que tendes filhos, que tendes mãe, porque não
ides a essas pavorosas immediações da Immgração?
Ide e se não chorardes, não sois brasileiros, porque
não tendes coração. Alguem vos haverá
dito que esses famintos são maus, são salteadores de
lares de transuentes, nas ruas. Mentira! Ao redor dessa miseria toda,
em frente a esse cemiterio onde agonizam e morrem de fome, ha botequins,
ha negocios, ha padarias, há tudo e até hoje, uma fructa
siquer desappareceu. E se elles roubassem para não morrer de
inanição? A propria moral catholica o permittiria e
o proprio Christo assim fez outróra. A verdade é que,
em S. Paulo, no Braz, pelas ruas adjacentes á Immigração,
morre-se de fome. Morrer de fome no Brasil!!! É espantoso,
é horroroso! Morrer de fome em S. Paulo!... é uma afronta
ao nosso coração.
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Silveira
Bueno
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