PERIGO DE CONTAMINAÇÃO PARA O BAIRRO DO IPIRANGA


Moscas disputam o sangue das crianças em tratamento no pronto socorro infantil

Publicado na Folha da Tarde, quinta-feira, 14 de fevereiro de 1957

Neste texto foi mantida a grafia original

Várias conclusões puderam ser obtidas das diversas visitas realizadas pela reportagem das FOLHAS aos estabelecimentos publicos que atendem crianças ameaçadas pela desidratação. A primeira delas, talvez a mais importante, é que os pediatras, de modo geral, se dedicam ao trabalho com afã e interesse fora do comum e utilizam-se de todos os recursos que lhes são dados da maneira mais completa possivel, suprindo com a boa vontade as possiveis falhas administrativas superiores. Por vezes, procuram esconder fatos merecedores de critica para que esta, embora construtiva, não venha a servir de exploração politica. Tal atitude pode parecer condenavel, mas é a unica maneira de evitar que eles proprios sejam responsabilizados por erros alheios.
O que mais vivamente impressiona, porem, é o paradoxo entre os conselhos gerais para evitar a contaminação das crianças desidratadas e a situação do Pronto Socorro Infantil do Ipiranga. Enquanto o cartaz (um cartaz que faz tambem parte de outra historia) grita: "Evite que seu filho tenha diarréia, protegendo seu alimento da sujeira e das moscas", moscas pousam sobre as mesas de hidratação, sobre as pequenas feridas formadas pelas picadas de agulha na cabeça das crianças tratadas no abrigo pediatrico, nos bicos das mamadeiras, na umidade dos excrementos que mancham as roupas de cama.
"Periodicamente empregamos inseticida, mas não há meio... - tentou explicar um pediatra. - Aqui há sempre cuidado..."
O pior é que - conforme observamos na ocasião - tais insetos não são propriedade do municipio e têm livre transito fora do estabelecimento, onde há ausenta de telhas ou qualquer tipo de vedação de entrada das moscas e o inseticida parece não agir, por fraco sobre as moscas, durante o periodo previsto. E elas transformam-se em verdade praga dentro do Pronto Socorro, disputando o sangue que extravaza da agulha, durante sua aplicação, comprometendo a assepsia indispensavel e tirando às autoridades medicas força moral necessaria para recomendar aos necessitados que procuram o estabelecimento, cuidados que não podem seguir. Se o poder municipal não pode com a mosca, como imaginar que o trabalhador, ganhando o indispensavel para não se privar do alimento, possa proteger-se com telas, afastá-la com repelentes, eliminá-la com inseticidas? Se a mosca é uma das causas (pela contaminação dos alimentos) da desidratação, o trabalho de profilaxia e tratamento está, naquele Pronto Socorro, comprometido desde o inicio e, ao invés de dar meios para remediar a situação, os poderes publicos estadual e municipal, por interesse de propaganda politica indireta, travam guerra fria em torno de um cartaz.

Saiu como não devia

Saiu como não devia

Esse cartaz, da Campanha de Profilaxia da Desidratação, foi aprovado pela comissão mista, formada por elementos dos poderes estadual e municipal. Não deveria trazer o timbre do Estado nem do Municipio. Seu esboço, obedecendo a essa orientação, foi enviado à imprensa Oficial do Estado e dali saiu com um "pastiche", em letras grotescas, lembrando a procedencia da contribuição. A Campanha, por parte do Municipio esfriou. A maioria dos postos eram subvencionados por ele e não havia propaganda. Não fora o desinteresse politico e o altruismo de alguns facultativos, e pequena crise administrativa estaria esboçada com o aparecimento de tais impressos.

Efeito

Pode-se atribuir o desinteresse em completar o funcionalismo necessario aos estabelecimentos municipais a essa primeira causa: o cartaz. A alegação preferida é, evidentemente, a falta de verba, embora sanitaristas admitam que a saude publica não tem preço. De toda forma, esse primeiro sintoma de desinteresse é responsavel por tudo o mais, inclusive pelo que diz respeito à higiene mais rudimentar necessaria a um estabelecimento hospitalar, fazendo com que se chegasse ao cumulo de tolerar o que vimos no Pronto Socorro Infantil: dezenas de moscas a disputar um braço de criança que suporta a agulha hipodermica durante a transfusão, a se alimentar na umidade das fezes de pequenas vitimas da diarréia, carregando elementos contaminados não somente para as proprias crianças ali internadas, como tambem para as habitações do bairro densamente povoado.

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