COM SAUDADES DA AGUA


Calcula-se que antes de um mez não poderá ser reiniciado o abastecimento da capital

O povo coagido a abastecer-se com as aguas da chuva

Publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 10 de janeiro de 1929

Neste texto foi mantida a grafia original

Correu hontem, na cidade, o boato de haver a multidão, na rua dos Guayanazes, assaltado o registro de agua, para se abastecer por conta propria. Verificou-se mais tarde que a noticia era falsa e que, apesar da situação de desespero em que permanece ha uma semana e dois dias, nenhum incidente occorreu na capital, provocado pelo povo sedento.
Registramos o alarme como uma advertencia ao poder publico. O que se está passando, actualmente, na terceira cidade importante da America do Sul, é coisa que deva ser justificada com a promessa, todos os dias repitida, de que dentro de dois mezes contará São Paulo com uma rêde de abastecimento de agua capaz de causar invejas a qualquer grande capital européa. Taes perspectivas, por melhores que pareçam, não compensam a gravidade e a irregularidade da situação, tanto mais sabendo, como o publico sabe, que as promessas não substituem a agua nas necessidades do lar.
A Repartição de Aguas e Exgottos - sejamos francos - nunca inspirou demasiada confiança ao povo de São Paulo. Se ha uma repartição com a qual ninguem, por maior que seja a paciencia de que a providencia o dotou, quer ter conversas, essa é, sem duvida, a que está sendo actualmente dirigida pelo sr. Emydio Martins. No tempo em que à frente desses serviços estava a ilustre personalidade literaria do sr. Arthur Motta, as coisas não eram melhores, nem peiores do que são hoje. E quando foi do seu afastamento para o goso de uma commissãozinha na Europa, chegou a tomar corpo a crença, alimentada por boatos insistentes, de que o governo paulista estava em negociações com o eminente dr. Theodoro Sampaio, para a sua volta ao cargo em que por muitos annos demonstrou a sua capacidade de engenheiro realmente conhecedor dos segredos da sua profissão.
Foi, porém, rebate falso. Afastado o sr. Arthur Motta, aquella repartição passou para o sr. Egydio Martins, em cujas mãos acaba de arrebentar agora a adductora de Cotia, no kilometro 36. Da maneira como se vem portanto s.s. em face da "calamidade", não precisaremos dizer mais nada. Temol-a acompanhado na desorientação em que se deixou surprehender pelo accidente, ora affirmado uma coisa, ora affirmado outra e acabando, conforme ante-hontem se viu, por implorar a benignidade das nuvens. O sr. Egydio Martins - e o que vamos dizer não é producto de phantasia opposicionista - assume a responsabilidade de tudo quanto acontecer debaixo do sol. Não lhe falem, entretanto, nas chuvas, por que, nesse caso, vae tudo por agua abaixo.
Posto de lado, por inefficiente, o auxilio da Repartição de Aguas e Exgottos, de quem ha de esperar o povo as providencias inadiaveis que a sua angustia reclama? De quem, se o fornecimento de agua pela pipinha dos bombeiros e pelos caminhões da pavimentação obedece à hierarchia existente na administração publica da capital? Fazer a distribuição do saudoso liquido da maneira como vem sendo feita, é semear a irritação num campo onde por emquanto só temos visto o desespero. Abastecer em primeiro logar a casa dos poderosos, para só depois tratar de encher a cópa de um chapéo para o vulgo, é levar muito longe o direito, que só as olygarchias conferem aos alygarchas, de zombar da afflicção de toda uma cidade.
Temos insistido neste ponto, porque diariamente nos chegam queixas de todas as partes da capital. No alto das Perdizes, em Hygienopolis e Villa Mariana, que são os arrabaldes abastecidos pela adductora de Cotia, a situação é de tão grande alarme, e é tão desesperadora, que muitas familias, desanimadas de poderem contar com a agua das pipinhas e dos caminhões, já se viram hontem na contingencia de se abastecer com as aguas da chuva. O vasilhame de que puderam ellas dispôr dormiu ao relento, sob o temporal. E é esse liquido, tratado por processos caseiros, que vae nos pótes e nas panellas fazer as vezes daquelle desalmado hagá-dois-ó que parece ter feito viagem par ao além dos aléns, com o anno velho.

Uma visita ao local das reparações

Ao recebermos hontem uma communicação telephonica de que os autos destinados a Cotia estavam sahindo da garage da Repartição de Aguas e Exgottos, tomamos um automovel e rumamos para a rua da Consolação, à espera da passagem dos referidos vehiculos.
Não tardou muito o apparecimento da caravana. Primeiramente um "Saurer" com 20 operarios; depois um "Chevrolet" com 7 operarios; um outro "Chevrolet" com 3 e afginal um "Ford" tambem com 3 operarios. Ao todo 33 homens.
Chegamos ao largo dos Pinheiros. Ahi presenciamos uma pequena scena que não deixa de ser interessante. Um motorista e dois operarios estavam emendando as correntes com fios de arame de um modo positivamente nunca visto. O mau humor era visivel. A chuva começava a cahir fina e impertinente. O motorista estava explicando aos operarios como se devia fazer o serviço...
Depois a caravana proseguiu vagarosamente a sua marcha em demanda dos syphões desarranajados.
A chuva augmentava.
Um quarto de hora depois encontramos um caminhão em concerto e entabolamos uma conversa com o pessoal que o dirigia. Eram pessoas do logar e ao par das "providencias" da R. A. E.
- O serviço não pode ser perfeito, disse uma dellas. Como está feito o concreto, nenhum resultado duradouro se obterá. Todos os dias vêm novos operarios. Os que trabalham estão desanimados com a chuva e lama. Não obedecem às ordens, largam o serviço e retiram-se.
- É isso mesmo, confirmou uma outra, essa desordem já vem de ha muito. como poderá um homem percorrer sósinho 13 kilometros de tubos, inspeccionando as junturas?
- Dizem, tornou a primeira, que em poucos dias a cidade terá agua em abundancia. Nós, porem, aqui em Pinheiros já estamos bem informados que sómente dentro de um mez é que o serviço estará prompto, se a chuva não impedir. Só assim é que se poderá contar com o abastecimento de agua igual ao que era antes do rompimento dos syphões.
Após essas informações, prosseguimos o nosso caminho em procura do local dos concertos.
Mal chegamos a um ponto não muito distante da turma, cahiu uma nova carga de chuva.
Os operarios permaneciam no trabalho. Não pudemos dar mais um passo, porque o caminho era intransitavel.
Dirigimo-nos a um encarregado do serviço. Este promptificou-se a prestar-nos algumas informações. Disse que, de facto, toda a extensão do tubo adductor está dividida em 3 secções: a primeira, da captação até o syphão do kilometro 32; a segunda, deste ultimo ponto ao kilometro 14; a terceira, dalli até a caixa de distribuição.
Cada uma dessas secções é inspeccionada por "corredores", mas não convenientemente como devia ser. Nota-se em diversas partes a passagem de vehiculos naturalmente ruinosa à tubulação e offensiva ao envolucro de chumbo.
Esses "corredores" trazem comsigo seis ferramentas e um pouco de chumbo macio.
Encontrando alguma junta onde o chumbo se ache repuxado, corta-se a parte saliente e enche-se a abertura com o chumbo.
Quanto à parte cimentada do adductor, os empregados da R. A. E. têm manifestado algum receio. Todos estão convictos de que os romprimentos successivos provem do pouco cuidado na inspecção e regularização do abastecimento. A tubulação tem supportado uma pressão superior à calculada no momento da construção. O augmento do consumo d'agua não póde comportar o mesmo adductor.
Eis o que pudemos colher no local dos concertos. Urge que a R. A. E. disponha de toda a sua actividade para um serviço seguro, afim de que brevemente se evitem novas avarias na tubulação, occasionando os graves inconvenientes de agora.

Agua em abundancia...

Na rua do Carmos, esquina da rua Floriano Peixoto, no canto do edificio onde está installada a Recebedoria de Rendas, existe um registro de agua que, dia e noite, extravasa grande porção do preciosissimo liquido.
Ahi está. Uns tem muito e outros nem uma gota. Não será proposital essa generosidade da R. A. E. Se assim fôr... que gente feliz é essa da Recebedoria!...

*

Até agora não foi resolvido o terrivel problema da agua! Uma grande parte da população soffre dolorosamente as consequencias da eterna incuria governamental e das continuas informações officiaes de que "amanhã" vae haver agua.
Amanhã!
Quando será este amanhã?
Talvez quando a população já tiver morrido de sêde e de sujeira, ou tiver fugido, allucinadamente, para... o deserto do Sahara, porque lá, ao menos, ainda ha o recurso dos oasis.
Mas fóra de brincadeira: que governos deliciosos nós temos tido, heim?!

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