ROTA DEVE SER DESATIVADA JÁ

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 1983

A Rota deve ser desativada sem condescendência e sem demora, afastando-se das ruas exceto nos casos de emergência que exijam mobilização de tropa de choque. Esta é a proposta que a "Folha" apresenta ao futuro governo paulista, no editorial "Desativar a Rota", como uma das medidas necessárias à aplicação da diretriz básica já anunciada pelo indicado secretário da Segurança Pública: reforçar o policiamento ostensivo em toda a Capital por parte da PM, numa ação preventiva, restando à Polícia Civil a tarefa de encaminhar à Justiça criminosos eventualmente não detidos em flagrante.
Para este jornal, os métodos de operação da Rota são incapazes de conter a criminalidade; ao contrário, alimentam-na pela própria habitual da violência, comportamento afinal seguido por outras unidades.

Desativar a Rota

Com a saída do general Arnaldo Braga do comando da Polícia Militar de São Paulo a 1° de março próximo, a corporação voltará a ser comandada por um coronel de suas próprias fileiras, pela primeira vez depois de muitos anos.
A mudança, esperada desde que um decreto-lei recentemente assinado pelo presidente da República abriu caminho para desligar os oficiais do Exército do comando das PMs de Estados que passarão a ser governados pelas oposições, já foi bastante analisada e discutida do ponto de vista de suas implicações políticas gerais. Cabe indagar: e do ponto de vista do cotidiano da população, que novidades essa devolução (aliás muito parcial) da autonomia das milícias estaduais permite esperar?
Cada governador terá seus planos ou pelo menos suas intenções para o setor de segurança pública, é claro. Os do futuro governador de São Paulo, senador Franco Montoro, foram focalizados numa série de reportagem deste jornal dias atrás. Quanto à PM, a diretriz básica, por sinal coincidente com a orientação da Inspetoria Geral das Polícias Militares do Estado-Maior do Exército para 1983, prevê maior ênfase no policiamento ostensivo de caráter preventivo, que em toda parte é a missão principal dos policiais fardados.
Em suma, pretende-se que os efetivos da PM façam presença constante nas ruas, o que teria o efeito de desencorajar o crime e permitir a pronta intervenção em defesa das vítimas, deixando à Polícia Civil a tarefa de identificar e apresentar à Justiça os criminosos que escapem à prisão em flagrante.
Tal seria o ponto de partida para enfrentar o desafio bem caracterizado pelo futuro secretário da Segurança Pública, desembargador Manoel Pedro Pimentel, quando de sua indicação para o cargo: combater a criminalidade com o rigor exigido pela população, sem entretanto aterrorizá-lo com constantes violações dos direitos humanos pela autoridade policial.
Ora, se essas idéias - cuja sensatez acreditamos incontestável - devem ser levadas à prática, conviria saber em primeiro lugar por que até hoje não foram. Por que a maioria dos moradores da periferia da Grande São Paulo sente-se à mercê dos assaltantes, enquanto a imagem de uma polícia atuante se confunde cada vez mais com a legenda sanguinária das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar - Rota?
A questão é de extrema complexidade, e por certo não tem a ver tão-somente com a organização policial. Para ficar nesse plano, contudo, algumas constatações se impõem, numa linha de resto já conhecida dos nossos leitores.
Primeiro, tanto a PM quanto a Polícia Civil de São Paulo se ressentem das enorme deficiências materiais e de pessoal que caracterizam a maior parte dos serviços públicos neste País; em ambas falta tudo, desde gasolina para os veículos até homens tecnicamente bem-preparados para os cargos que ocupam.
Segundo, ambas experimentaram intensamente nos últimos anos, cada qual a seu modo, duas formas de degeneração burocrática - potências e corrupção - típicas dos regimes autoritários.
Terceiro, pela própria circunstância de que a PM estava sob virtual intervenção federal, enquanto a Polícia Civil ainda se subordinava ao governo do Estado, houve um desentrosamento crescente entre as duas corporações, com superposição de funções e o espírito de competição predominando sobre a cooperação.
Quarto, a subordinação da PM ao Estado-Maior do Exército contribuiu provavelmente para acentuar, na milícia estadual, padrões de organização e treinamento, não tanto de polícia, mas de tropa combatente, o que aliás corresponde às tradições da antiga Força Pública.
Por fim, essa mesma circunstância talvez explique a exacerbação, nas fileiras da PM, de um sentimento de honra tipicamente militar, com forte caráter corporativo e supervalorização das demonstrações de bravura diante do "inimigo".
É um quadro esquemático, mas que responde à dupla pergunta colocada acima. Por um lado, a precariedade das delegacias de polícia e a rarefação das rondas policiais normais deixam realmente a população da periferia das cidades à mercê da violência dos criminosos; por outro lado, na Grande São Paulo, esse vazio acabou sendo preenchido de forma desastrosa por um ramo da PM que levou a extremos a noção falsamente militar de "caça aos bandidos".
Não é sem motivo, portanto, que a maioria dos paulistanos quer a Rota nas ruas, como mostrou uma enquete feita recentemente por este jornal. Nos bairros distantes, ali onde acabam o asfalto e a iluminação pública, os homens das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar têm sido a única presença efetiva da polícia.
Isso não impede que a criminalidade continue aumentando, cada vez mais violenta, a despeito das nada menos que duas centenas de mortos feitos por esses policiais no ano passado; nem que os mesmos bairros da periferia fervam de indignação e medo quando por azar os caça-bandidos liquidam a pessoa errada, isto é, um jovem ou um pai de família trabalhador, sem antecedentes criminais.
Com efeito, o método de operação consagrado pela Rota e imitado, nos últimos tempos, por outras unidades da PM não é apenas essencialmente ilegal, porque baseado na detenção de "suspeitos" identificados por uma nebulosa intuição policial; não é só atentatório aos direitos humanos, porque conduz frequentemente à eliminação sumária desses "suspeitos" ou à extração de confissões mediante sevícias; é também intrinsecamente incapaz de conter a escalada da criminalidade, mas ao contrário a alimenta com doses de violência cada vez mais desatinada.
Isto até constrange dizer, porque é o óbvio comprovado pela experiência de todos os países onde existe polícia organizada.
Trata-se muito mais, como indagamos no início, de saber o que falta para que idéias obviamente sensatas possam ser colocadas em prática na atuação da nossa polícia.
Admitimos, em princípio, que não falte ao futuro secretário da Segurança Pública o conhecimento, ao menos em suas linhas gerais, dos problemas que terá de enfrentar. Em suas primeiras declarações à imprensa ele mostrou disposição de enfrentá-los com firmeza, nos vários níveis da organização policial.
É preciso, no entanto, que tal disposição se traduza desde logo em atos que assinalem para a opinião pública e para a própria polícia a direção em que se pretende mudar a situação existente. E pelo menos na Grande São Paulo, não duvidemos, essa situação tem um símbolo que todos identificam - a Rota -, através do qual as piores manifestações da impotência policial diante da criminalidade passaram a ser glorificadas dentro da PM, onde seus homens constituem uma suposta elite intocável, e reverenciadas por boa parte da população.
Mesmo com sua atuação contida, como nos últimos tempos, os caça-bandidos permanecem como um exemplo para o restante da corporação a que pertencem. A selvageria exibia em episódios recentes por membros do patrulhamento Tático Móvel indica que esse exemplo, até por emulação profissional, só tende a frutificar, o que seria altamente pernicioso quando se pretende aumentar a presença da PM nas ruas dentro de um esquema racional de patrulhamento.
Por isso, sem prejuízo das tantas medidas necessárias para preencher o vazio de policiamento nos bairros de periferia, somos de opinião que o batalhão Tobias de Aguiar deve ser definitivamente afastado das ruas, exceto em suas funções tradicionais de tropa de choque, a ser mobilizada em casos de emergência.
O que implica desativar a Rota - sem condescendência e sem demora.

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