NOVIDADE: 417 ANOS SEM AGUA


Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 25 de janeiro de 1971

Neste texto foi mantida a grafia original

A vida intensa de S.Paulo, seu passado e presente

Não faz muito tempo o governo do Estado trocou o nome do sistema de abastecimento de aguas de São Paulo —em construção na serra da Cantareira— de Sistema Juqueri para Sistema Cantareira. O governo não justificou a troca de nomes, mas comentarios ironicos nas assessorias de imprensa do Estado dizem que devido as dimensões da obra —que fornecerá 11 metros cubicos de agua por segundo à uma cidade até então abastecida com apenas 15 metros cubicos por segundo— a troca de nomes é uma forma de evitar que o conjunto venha a ser considerado como uma obra de loucos —analogia muito simples de ser feita pois na mesma região das obras está o famoso hospicio do Juqueri.
Se o Sistema Juqueri, ou melhor, Cantareira é uma obra de loucos só o futuro poderá responder. Mas uma coisa é certa, desde ha muito tempo o problema da falta de agua é uma das preocupações constantes de toda a população da cidade, e no passado deu margem a muitas loucuras.
No chafariz da Misericordia, no qual os historiadores não registram o aparecimento de nenhum tipo de fantasma, os escravos formavam longas filas de madrugada, para apanhar agua em potes de barro, aproveitando a ocasião para bate-papos amigaveis.
Contudo, nem sempre o chafariz da Misericordia funcionava com regularidade. E nas epocas de escassez, quando a agua rareava ali tambem, alguns escravos, cansados de tanto conversar e esperar, tentavam furar a fila. O resultado: os bate-papos amigaveis eram trocados por sopapos e pauladas nada agradaveis —conflitos generalizados que se estendiam por horas seguidas, após os quais sempre sobravam potes de barro quebrados e cabeças rachadas, alem de uma séde ainda maior.
Não era facil, porem, resolver o problema da falta dagua na epoca. A água retirada das fontes vinha até os chafarizes atravessando terrenos tortuosos conduzida por encanamentos ou mesmo valetas precárias. Para se ter uma idéia os comentaristas da época escreveram que as águas das bicas se escoavam, antes de chegar aos chafarizes, em enormes formigueiros.
Parece que os únicos paulistanos que conseguiram uma boa maneira de se livrar do problema da falta dagua foram os estudantes. Através de uma maneira peculiar de comportamento, os estudantes conseguiram buscar agua na bica Miguel Carlos, espantado por completo as longas filas que ali se formavam: à noite, muniam-se de jarros, bacias, baldes e outros vasilhames e improvisavam um cortejo até o chafariz em que figuravam sujeitos mais ou menos em trajes de Adão —uns em fraldas de camisa, outros em ceroulas e de cartola.


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