O PRISIONEIRO DO CAUCASO

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 16 de setembro de 1934

Neste texto foi mantida a grafia original


LEON TOLSTOI

Um fidalgo servia no Caucaso como official. Chamavam-no Giline. Uma vez, chegou-lhe uma carta de sua mãe dizendo assim: "Estou muito edosa e desejo tornar a ver-te antes de morrer. Vem passar junto de mim o pouco tempo que me resta de vida. Depois, quando eu estiver morta, poderás voltar a teu serviço. Encontrei-te uma noiva, uma moça, que é intelligente, bôa e tem alguma fortuna. Pode ser que ella te agradas, e se casares com ella, poderás ficar aqui para sempre".
Giline teve um momento de hesitação. De facto sua mãe já não poderia durar muito; se elle não attendesse a esse appello talvez nunca mais a visse...
Foi procurar seu coronel, obteve uma licença, despediu-se de seus camaradas, offereceu a seus soldados quatro pipotes de alcool e dispoz-se a partir. Ora, havia então guerra no Caucaso. Não se podia andar pelas estradas nem de dia nem de noite. Desde que um Russo sahia das fortalezas, os Tartaros matavam-o levavam-o para as montanhas. Por isso, todas as semanas sahiam escoltas de fortaleza a fortaleza para assegurar o percurso dos que precisavam de viajar. Era no estio. Ao alvorecer, organisou-se a caravana diante da fortaleza e poz-se em marcha com os primeiros raios do sol. Giline ia a cavallo e uma carriola levava suas bagagens. Mas o grupo ia tão lentamente que elle se impacientou. "Meu cavallo é dos melhores —pensou elle— posso muito bem ir só. Se encontrar alguma patrulha tartara, não me será difficil distancial-a". Deteve-se hesitante, Kosta, um outro official, homem gordo, pesado e vermelho, tivera, ao que parece, o mesmo pensamento e approximou-se.
— Queres tentar a viagem sósinho? Se o queres vou comtigo.
— Vamos - disse Giline resolutamente.
E partiram a trote largo, de olhar alerta, observando a planicie, que se estendia immensa em torno delles. Mas, ao fim de uma hora, o steppe terminou. A estrada mettia-se entre duas montanhas .
— Aqui é que preciso ter cuidado —disse Giline.
— Eu vou subir um pouco para vêr se não ha emboscada preparada.
Seu cavallo era um animal de raça. Subia como um gamo a aspera encosta e apenas chegou ao alto de um comoro o official viu, a cerca de mil metros, uns trinta Tartaros a cavallo. Quiz recuar, mas os Tartaros já o tinham visto e precipitaram-se. Giline lançou sua montaria pelo declive bradando a Kosta.
—Alerta! Alerta!
Kosta perdeu a cabeça e, em vez de fugir, saltou do cavallo para se abrigar atras dele, com a louca idéia de fazer frente aos Tartaros com uma só espingarda. Giline lançou seu cavallo e galope em direção à planicie, com a esperança de alcançar os soldados. Mas seis Tartaros surgiram do outro lado do monte e galoparam para cortar-lhe o caminho. Era o dessastre irremediavel. Antes que pudesse refletir, Giline viu-se cercado. Tirou o sabre e precipitou-se pára o inimigo mais proximo, um gigante com grande barba ruiva. Mas os outros fizeram fogo e as balas attingiram seu cavallo, que cahiu quasi de subito, prendendo-lhe uma perna. Seis braços o prenderam logo; elle tentou resistir ainda, mas os Tartaros bateram-lhe com as coronhas das carabinas e elle perdeu os sentidos. Quando voltou a si, estava amarrando à garupa do homem de barba ruiva, com o rosto encostado a suas costas robustas. Caminharam todo o resto do dia e parte da noite para chegar afinal a um acampamento no meio da montanha.
Durante trez dias, deixaram-no sosinho em uma choça infecta onde lhe atiravam alimentos grosseiros como a um cão. Apenas por duas vezes elle teve uma visita piedosa. Uma menina de dez a doze annos, vestida e ornada como um idolo, com o pescoço carregado de collares multicores, veiu vêl-o e ficou longas horas a seu lado. Falava um pouco de russo e como Giline se queixasse de fome trouxe alguns bolos de milho, que, em comparação com o regime a que estava submettido, pareceram-lhe deliciosos. Depois informou-se.
Ella se chamava Dinah e era filha de Abdul Mural, o chefe daquelle bando tartaro. Essas visitas foram o unico consolo trazido a Giline em sua infecta prisão. Por fim, uma noite vieram buscal-o e levaram-o à presença do homem ruivo, que elle soube ser então Abdul Mural. O chefe só falava tartaro e cercado por seus principaes auxiliares ordenou ao interprete da tribu que lhe transmitisse suas ordens: — elle tinha que escrever a sua familia pedindo trez mil rubros para seu resgate.
— Não —disse Giline resolutamente.
— Eu não sou rico. Minha mãe não poderia pagar essa quantia. O maximo que poderá dar é um resgate de quinhentos rublos.
— É pouco —declarou o interprete. — O chefe diz que se não escreveram pedindo trez mil rublos elle mandará chicotear-te.
Mas Giline sabia como se deve fallar a Tartaros, sabia que, mostrar receio diante delle é o peor. Ergueu-se e disse como ar furioso:
— E tú dize a teu chefe que se me maltratar não darei nem um hapeck. Poderá chicotear-me ou maltratar-me mas não terá cousa alguma.
O interprete traduziu e o chefe discutiu por algum tempo com seus tenentes, depois voltou-se para Giline.
— Urusse Dgiquite (rapaz valente) - disse elle. — Dá mil rublos.
— Quinhentos rublos; nem um mais. Nem que me matem.
O chefe hesitou um pouco, depois deu uma ordem. O interprete sahiu e não tardou a voltar trazendo, Kosta, estarrapado e com os pés em sangue.
— Ahi está —disse o chefe. — A este exigi cinco mil rublos e elle já escreveu a sua familia.
— Elle é rico; eu não sou.
O chefe abriu uma caixa. Tirou umas folhas de papel, penas, tinta, poz tudo diante delle e disse :
— Escreve.
Era a acceitação. Giline aproveitou a situação.
— Escreverei — disse elle. — Mas has de dar roupas decentes a mim e a meu companheiro, tirar o tóro de madeira que nos acorrentaram ás pernas e deixar-nos juntos.
O chefe desatou a rir e concordou menos com relação ao tóro de madeira, que — declarou — só será retirado à noite.
Giline então escreveu a carta mas poz-lhe um endereço falso, pensando: "Hei de arranjar um meio de fugir e minha mãe não precisará de vender nossa casinha para me libertar." Apenas se viu fechado em companhia de Kosta expoz-lhe seu plano. Mas o infeliz estava com os pés tão feridos que tiveram de esperar quasi um mez inteiro para que elle melhorasse. Por fim decidiram-se. Giline fez no fundo da choça uma abertura bastante larga para que pudessem passar; e, depois, de fazer o signal da cruz puzeram-se a caminho. Mas ao fim de uma hora de marcha, os pés de Kosta recomeçaram a sangrar e elle pediu ao companheiro que o abandonasse. Giline porém persistiu. Havia de se salvar ou se perder juntos. E por um longo trecho carregou o outro, arquejando de fadiga. Chegando a uma curva onde se inciava um declive aspero e duro, deteve-se para respirar um pouco e ouviu vozes atraz de si. Atirou-se com Kosta para dentro de uma moita. Dois tartaros surgiram descendo a ladeira e teriam passado sem vel-os se não viessem com um cão. O animal descobriu-os pelo faro e denunciou-lhes a presença. Trazidos de novo ao acompanhamento de Abdul Mural sua existencia tornou-se horrivel. Desta vez não lhes tiraram mais os tóros de madeira dos pés e prenderam-os não mais em uma choça mas em um "silo", uma cova aberta no chão em forma de funil invertido, isso é, com o fundo circular e largo sobre uma abertura muito estreita. Não era possivel sahir dalli senão içado por cordas. No dia seguinte Dinah veiu ajoelhar-se à borda da fossa e contemplou-os com ar de profunda piedade.
— Por que não me salvas? — perguntou-lhe Giline, sem saber o que dizia.
— Elles estão muitos zangados com você — disse a menina — Muito zangados porque você fugiu e porque seus irmãos andam ahi por perto.
Seus irmãos? Ella de certo se referia aos soldados russos. Teriam as tropas ganho terreno a ponto de estar nos arredores da montanha? Uma esperança deslumbrante ergueu-se em seu coração.
— Dinah... ouve — balbuciou elle com voz supplice. — Se tens pena de mim... traze-me um pau... O mais comprido que poderes encontrar ahi perto.
A menina afastou-se com ar pensativo e hesitante. Giline deixou-se cahir de joelhos e orou com profundo fervor. Mas teve que esperar muito. Ouvia grande movimento em torno. Patrulhas chegavam e partiam a cada instante. As paras dos cavallos resoavam pesadamente no chão. Era já noite escura quando elle sentiu terra cahir da borda da fossa sobre sua cabeça. Olhou para cima e viu uma vara que descia lentamente. Era o que pudera encontrar, um cabo de lança tartara; longa e fina. Mas era bastante solida. E Giline não era pesado. Despediu-se de Kosta que não podia acompanhal-o com os pés informes e doridos e agarrou-se á vara tendo o cuidado de collocal-a o mais a prumo que lhe foi possivel afim de evitar que ella vergasse. Mas o peso do tóro acorrentado a um de seus pés perturbava-lhe os movimentos e por duas vezes elle sahiu sem ter podido alcançar a borda. Por fim consegiu-o retirar a vara e recomendou a Dinah: Colloca-a onde a encontraste para que não desconfiem de ti. Ella afastou-se arrastando a vara e Giline, apanhando no chão uma pedra cortante tentou forçar o cadeado da corrente para se libertar do tóro de madeira. Então, como não convinha perder tempo, poz-se em marcha carregando o tóro de madeira afim de andar mais depressa. Já conhecia o caminho e venceu oito verste sem hesitar. Mas conseguiria alcançar a floresta antes que a patrulha surgisse? Atravessou um riacho e chegou às primeiras arvores quando a lua apparecia. Sentou-se para repousar um pouco e de novo tentou abrir o cadeado. Suas unhas sangraram em vão nessa tentativa. Teve que prosseguir carregando o pesado tóro. Era uma canseira tamanha que tinha que se deter de dez em dez passos. Caminhou assim durante toda a noite tendo encontrado apenas dous Tartaros a cavallo. Mas escondeu-se entre a folhagem e não foi visto. Ao amanhecer estava quasi no limite da floresta. Espreitou attentamente por entre as arvores e viu uniformes, carabinas. Eram cossacos que estavam acampados alli, a menos de uma verste. Mas junto das arvores, bem perto, viu tres Tartaros. Elles tambem o viram e precipitaram-se. Giline, allucinado, delirante de pavor e esperança, precipitou-se pela encosta gritando:
— Irmãos! Irmãos!
A lembrança das palavras de Dinah fazia-o chamar assim os soldados de sua raça. Seus gritos foram ouvidos e os cossacos accudiram a galope obrigando os Tartaros a um recuo prudente para a floresta. Duas horas depois, o commandante da sotnia, informado por Giline, dava um ataque brusco ao acampamento dos Tartaros para libertar Kosta.


*

Quando relatava essa historia Giline concluia, — Eis por que nunca mais vi minha mãe nem me casei. Era meu destino.


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