A AVENTURA DE WALTER SCHNAFFS

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 9 de dezembro de 1951.

Neste texto foi mantida a grafia original

GUY DE MAUPASSANT

Desde a sua entrada na França com o exercito invasor, Walter Schnaffs se julgava o mais infeliz dos homens. Ele era obeso, caminhava com dificuldade, arquejava muito e sofria terrivelmente dos pés, que eram muito chatos e muito gordos. Era, por outro lado, pacífico e benevolo, nada valoroso ou sanguinario, pai de quatro filhos a quem adorava e casado com uma jovem loira, cujas ternuras, cuidados e beijos ele chorava desesperadamente todas as noites. Gostava de levantar-se tarde e deitar cedo, de comer lentamente boas coisas e beber cerveja nos bares. Pensava que tudo o que é bom na existencia desaparece com a vida, e tinha no coração um tremendo odio, instintivo e consciente ao mesmo tempo, aos canhões, aos fuzis, aos revolveres e aos sabres, mas principalmente às baionetas, pois sentia-se incapaz de manejar com bastante vivacidade essa arma rapida, para defender o seu volumoso ventre.
E quando, à noite, se deitava por terra, enrolado na sua manta, ao lado dos camaradas que roncavam, pensava longamente nos seus, que tinham ficado lá longe, e nos perigos semeados pelo seu caminho: — Se o matassem, que seria dos pequenos? Quem os haveria de alimentar e educar? Mesmo agora, não eram ricos, apesar das dividas que ele contraira ao partir, para lhes deixar algum dinheiro.
E Walter Schnaffs chorava às vezes.
No começo das batalhas, sentia nas pernas tal fraqueza, que se teria deixado tombar se não refletisse em que todo o exercito lhe passaria sobre o corpo. O assovio das balas lhe eriçava a pele.
Há meses vivia ele assim no terror e na angustia.
O seu exercito avançava para a Normandia; e ele foi um dia enviado em reconhecimento com um pequeno destacamento que devia simplesmente explorar uma parte da região e recolher-se em seguida. Tudo parecia calmo no campo, nada indicava uma resistencia preparada.
Ora, desciam tranquilamente os prussianos por um pequeno vale cortado de ravinas profundas, quando uma violenta fuzilaria os fez parar, derrubando uma vintena deles; e um grupo de franco atiradores, saindo bruscamente de um minusculo mato, avançou de baioneta calada.
Walter Schnaffs ficou a principio imovel, de tal modo surpreso e desvairado, que não pensou nem mesmo em fugir. Depois lhe veio um desejo louco de escapar o quanto antes; mas pensou em seguida que corria como tartaruga em comparação com os magros franceses que chegavam saltando como uma ponta de cabras. Então, percebendo a seis passos adiante de si um largo fôsso cheio de macegas e de folhas secas, saltou para dentro com os pés juntos, sem nem ao menos pensar na profundidade, como quem se lança de uma ponte num rio.
Passou, à maneira de uma flecha, através de uma camada espessa de lianas e de espinhos agudos que lhe dilaceravam as faces e as mãos, e caiu pesadamente sentado num leito de pedras.
Erguendo em seguida os olhos, viu o céu pelo buraco que fizera. Esse buraco revelador poderia denunciá-lo, e ele arrastou-se cautelosamente, de quatro pés, pelo fundo daquela toca, sob o teto de ramos enlaçados, andando o mais depressa possivel, afastando-se do local do combate. Depois parou e sentou-se de novo, escondido como uma lebre no meio das altas ervas sêcas.
Ouviu, por algum tempo ainda, detonações, gritos e lamentos. Depois os clamores da luta enfraqueceram, cessaram. Tudo se tornou de novo mudo e calmo.
De subito alguma coisa se mexeu a seu lado. Ele teve um terrivel sobressalto. Era um passarinho que, tendo pousado num ramo, agitava as folhas mortas. E, durante mais de uma hora, o coração de Walter Schnaffs bateu descompassadamente.
Descia a note, enchendo de sombra a ravina. E o soldado pôs-se a pensar. Que faria? Que seria dele? Deveria reunir-se a seu exercito? ... Mas como? Mas por onde? E era preciso recomeçar a horrivel vida de angustia, de sustos, de fadigas e de sofrimentos que levava desde o principio da guerra! Não! Não sentia mais coragem para isso! Não teria mais a energia necessaria para suportar as marchas e afrontar os perigos de todos os instantes.
Mas que fazer? Não podia ficar escondido naquela ravina até o fim das hostilidades. Certamente que não. Se não fosse preciso comer todos os dias.
E ele se achava assim, inteiramente só, armado, de uniforme, em territorio inimigo, longe daqueles que poderiam defendê-lo. Arrepios lhe estremeceram e pele.
De subito pensou: "Se ao menos eu estivesse prisioneiro!" E o seu coração palpitou de desejo, de um desejo violento, imoderado, de ser prisioneiro dos franceses. Prisioneiro! Ele seria salvo, alimentado, alojado ao abrigo das balas e dos sabres, sem apreensões possiveis, numa boa prisão bem guardada. Prisioneiro! Que sonho!
E a sua resolução foi imediatamente tomada:— Eu vou constituir-me prisioneiro.
Ergueu-se resolvido a executar esse projeto sem mais demora. Mas ficou imovel, assaltado de subito por penosas reflexões e novos terrores.
Aonde iria ele constituir-se prisioneiro? Como? Para que lado? E imagens horriveis, imagens de morte se precipitaram na sua alma.
Iria correr perigos tremendos, aventurando-se sozinho pelos campos, com o seu capacete ponteagudo.
E se encontrasse camponeses? Aqueles camponeses, vendo um prussiano perdido, um prussiano sem defesa, o matariam como a um cão vagabundo. Eles o massacrariam com os seus forcados, os seus picões, as suas foices, as suas enxadas. Fariam dele uma mixordia, um pirão com um encarniçamento de vencidos desesperados.
E se encontrasse franco-atiradores? Esses franco-atiradores, fanaticos sem lei nem disciplina, o fuzilariam para divertir-se, por passatempo, só para rirem da cara dele. E ele se supunha já apoiado contra um muro, em face de doze canos de fuzis, cujos buraquinhos redondos e negros pareciam olhá-lo.
E se encontrasse o proprio exercito francês? Os homens da vanguarda o tomariam por um batedor, por algum atrevido e habil soldado que partira sozinho em reconhecimento, e logo lhe fariam fogo. E ouvia já as detonações irregulares dos soldados deitados nas moitas, enquanto ele, de pé no meio de um campo, caia, furado como uma espumadeira pelas balas que sentia penetrarem na sua carne.
Tornou a sentar-se, desesperado. A sua situação parecia sem saida.
A noite descera totalmente, a noite muda e negra. Ele não se movia mais, estremecendo a todos os rumores desconhecidos e leves que perpassam nas trevas. Um coelho, batendo o traseiro à borda de um barranco, quasi pôs em fuga Walter Schnaffs. Os gritos das corujas lhe cortavam a alma, atravessando-o de terrores subitos, dolorosos como ferimentos. Ele arregalava os seus grandes olhos, tentando ver através da sombra; e imaginava a todo momento ouvir passos perto de si.
Após interminaveis horas e angustias de alma penada, vislumbrou, através do teto da ramagem, o céu que se tornou claro. Então, um alivio imenso o penetrou; seus membros se distenderam, repousados de subito; seus olhos se fecharam. Adormeceu.
Quando despertou, o sol lhe pareceu haver chegado mais ou menos ao meio do céu; devia ser meio-dia. Nenhum ruido perturbava a paz melancolica dos campos; e Walter Schnaffs se apercebeu de que estava acometido de uma fome aguda.
Ele bocejava, com a boca cheia dagua ao pensamento do salsichão, do bom salsichão dos soldados; e o seu estomago lhe fazia mal.
Ergueu-se, deu alguns passos, sentiu que as pernas estavam fracas, e sentou-se para refletir. Durante duas ou três horas ainda, considerou os prós e os contras, mudando, a todo instante de resolução, incerto, desgraçado, atenazado pelas razões mais contraditorias.
Uma idéia afinal lhe pareceu logica e pratica: era espiar a passagem de um camponês solitario, sem armas e sem utensilios perigosos, ir ao seu encontro e entregar-se em suas mãos, fazendo-lhe bem compreender que se tratava de uma rendição.
Então tirou o capacete, cuja ponta poderia traí-lo, e emergiu a cabeça para fora do buraco, com infinitas precauções.
Nenhuma criatura isolada se mostrara no horizonte. Alem, à direita, uma aldeia enviava para o céu o fumo de seus telhados, o fumo das cozinhas! À esquerda, ele divisava das arvores de uma alameda, um grande castelo flanqueado de torreões.
Esperou assim até a tardinha, sofrendo terrivelmente, sem nada mais ver que os voos dos corvos, sem nada mais ouvir que as queixas de suas proprias entranhas.
E a noite tombou de novo sobre ele.
Estendeu-se no fundo de seu retiro e caiu num sono febril, assombrado de pesadelos, num sono de esfomeado.
A aurora outra vez se ergueu sobre a sua cabeça. Ele se pôs de novo em observação. Mas a campanha continuava vazia como na vespera; e um medo novo acometia o espirito de Walter Schnaffs, o medo de morrer de fome. Via-se estirado no fundo de seu buraco, de costas, com os olhos fechados. E animais, depois, pequenos animais de toda especie se aproximavam de seu cadaver e se punham a devorá-lo, atacando-o por toda parte ao mesmo tempo, metendo-se-lhe por debaixo das roupas para morder a sua pele fria. E um grande corvo lhe picava os olhos com o seu bico afiado.
Então, desvairado, imaginando que ia desmaiar de fraqueza e que não mais poderia dar um passo, ele se dispunha já a lançar-se para a aldeia, resolvido a tudo ousar, a tudo desafiar, quando avistou três camponeses que se dirigiam aos campos com os seus forçados ao ombro. E remergulhou no esconderijo.
Mas, logo que a noite escureceu a planice, saiu lentamente do fosso, e pôs-se a caminho, curvado, temeroso, o coração a bater, para o castelo distante, preferindo entrar lá dentro a entrar na aldeia, que lhe parecia temivel como um covil cheio de tigres.
As janelas debaixo brilhavam. Uma delas até estava aberta; e por ela escapava-se um forte cheiro de carne cozida, um cheiro que penetrou bruscamente no nariz e até o fundo do ventre de Walter Schnaffs, e que o crispou, o fez arquejar, atraindo-o irresistivelmente, lançando-lhe no coração uma audacia desesperada.
E, bruscamente, sem refletir, ele apareceu, de capacete, no quadro da janela.
Oito criados jantavam em redor de uma grande mesa. Mas subito uma criada estacou boquiaberta, deixando cair o copo, com os olhos fixos. Todos os olhares seguiram o seu!
Avistaram o inimigo!
Senhor! os prussianos atacavam o castelo!...
Foi primeiro um grito, um unico grito, feito de oito gritos lançados em oito tons diferentes, um grito de panico, depois um tumultuoso levantar, um atropelamento, uma misturada, uma desamparada fuga para a porta dos fundos. As cadeiras tombaram, os homens derrubavam as mulheres e passavam por cima delas. Em dois segundos, a peça ficou deserta, abandonada, com a mesa coberta de comezainas defronte de Walter Schnaffs estupefato, sempre de pé na sua janela.
Após alguns instantes de reflexão, ele saltou o poial e avançou para os pratos. Sua fome desesperada o fazia tremer como se estivesse com febre: mas um terror o retinha, o paralisava ainda. Ele pôs-se à escuta. Toda a casa parecia fremir; portas se fechavam, passos rapidos corriam no andar de cima. O prussiano, inquieto, aguçava o ouvido ante aqueles estranhos rumores; depois ouviu ruidos surdos como se corpos tivessem caido na terra mole, ao pé dos muros, corpos humanos, saltando do primeiro andar.
Depois todo movimento, toda agitação cessaram, e o grande castelo se tornou silencioso como um tumulo.
Walter Schnaffs sentou-se ante um prato que ficara intacto e pôs-se a comer. Comia à boca cheia, como se temesse ser interrompido muito cedo e não poder engolir o suficiente. Lançava a mãos ambas os bocados na sua boca-aberta como um alçapão e bolos de alimento lhe desciam sem parar no estomago, inflando-lhe a garganta na passagem. Às vezes ele se interrompia, prestes a rebentar como um saco muito cheio. Tomava então do garrafão de cidra e desobstruia o esofago, como se lava um cano entupido.
Esvaziou todos os pratos, todas as travessas e todas as garrafas; depois, intoxicado de liquidos e de solidos, embrutecido, vermelho, sacudido de soluços, o espirito perturbado e a boca pastosa, desabotoou o uniforme para respirar, incapaz aliás de dar um passo. Seus olhos se fechavam, suas idéias modorravam; ele pousou a fronte pesada nos braços cruzados sobre a mesa, e perdeu docemente a noção das cousas e dos fatos.
O crescente alumiava vagamente o horizonte acima das arvores do parque. Era na fria hora que precedia o dia.
Sombras deslizavam na espessura, numerosas e miudas; e por vezes um raio de lua fazia rebrilhar na sombra uma lamina de aço.
O castelo tranquilo erguia a sua grande silhueta negra. Apenas duas janelas brilhavam ainda no rés do chão.
Subito, uma voz trovejante berrou: — Avante! Atacar!
Então, num instante, as portas, persianas e as vidraças vieram abaixo sob uma onda de homens que avançou, quebrou, rebentou tudo, invadiu a casa. Num instante, cinquenta soldados armados até os cabelos irromperam na cozinha onde repousava pacificamente Walter Schnaffs e, pousando-lhe no peito cinquenta fuzis carregados, derrubaram-no, agarraram-no, ataram-lhe dos pés à cabeça.
Ele arquejava de pasmo, muito embrutecido para compreender, surrado, maltratado e louco de medo.
E, de repente, um corpulento militar cheio de dourados plantou-lhe um pé sobre o ventre, vociferando:— Você é meu prisioneiro, renda-se!
O prussiano não entendeu senão esta unica palavra "prisioneiro", e gemeu: "Ya, Ya, Ya".
Foi erguido, amarrado numa cadeira, e examinado com viva curiosidade pelos seus vencedores que sopravam como baleias. Varios sentaram-se, não podendo mais de emoção e de fadiga.
Ele sorria, agora, certo de estar finalmente prisioneiro!
Um outro oficial entrou e pronunciou:
— Meu coronel, os inimigos fugiram; varios parecem ter sido feridos. Nós ficamos senhores da praça.
O corpulento militar, que enxugava a fronte, vociferou: "Vitoria".
E escreveu numa pequena agenda de comercio que tirou do bolso:
"Após encarniçada luta, os prussianos tiveram de bater em retirada, carregando seus mortos e seus feridos, que se avaliam em cincoenta homens fora de combate. Varios ficaram em nossas mãos".
O jovem oficial tornou:
— Que disposições devo tomar, meu coronel?
O coronel respondeu:
— Nós vamos recuar, para evitar uma nova ofensiva do inimigo com artilharia e forças superiores.
E deu ordem de retirada.
A coluna se reformou nas trevas, junto aos muros do castelo, e, pôs-se em movimento, envolvendo por toda parte Walter Schnaffs, amarrado e seguro por seis guerreiros de revolver em punho.
Foram enviadas patrulhas de reconhecimento para explorar a estrada. Avançava-se com prudencia, fazendo alto de tempos em tempos.
Ao clarear do dia, chegavam à subprefeitura de La Roche-Oysel, cuja guarda nacional acabava de realizar aquele feito d'arma.
A população estava à sua espera, ansiosa e excitada. Avistado que foi o capacete do prisioneiro, explodiram formidaveis clamores. As mulheres erguiam o braço; velhas choravam; um avô lançou a sua muleta contra o prussiano e feriu o nariz de um dos guardas.
O coronel berrava:
— Velem pela segurança do cativo!
Chegaram enfim à prefeitura. A prisão foi aberta e Walter Schnaffs lançado lá dentro, livre das amarras.
Duzentos homens em armas montaram guarda em torno do edificio.
Então, mau grado os sintomas de indigestão que já o vinha atormentando, o prussiano, louco de alegria, pôs-se a dançar, a dançar perdidamente, erguendo os braços e pernas, a soltar risadas freneticas, até o instante em que tombou, exausto, junto à parede.
Ele estava prisioneiro! Salvo!
Foi assim que o Castelo de Champignet foi retomado ao inimigo, após seis horas apenas de ocupação.
O coronel Ratier, comerciante de tecidos, que levou a cabo tal façanha à frente da Guarda Nacional da la Roche-Oysel, foi condecorado.

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