A MUCAMA

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 21 de maio de 1933

Neste texto foi mantida a grafia original

LUIZ GUIMARÃES JUNIOR

Cousas do tempo antigo

É o mimo da casa; as meninas contam-lhe todos os segredos; os escravos a respeitam; as visitas reconhecem nella a redeira presumptiva das malicias e indiscreções da familia; e sua vida resume-se em ser a companheira da senhora moça em solteira e a creada particular da senhora moça quando se casa.

É a favorita do lar domestico; uma especie de Montespan retinta, azougada, de cabello aprumado, por cujas mãos têm de passar todos os requerimentos que se dirijam à alta sabedoria do conciliabulo familiar. Em Inglaterra chama-se Betty; em França Marton; em Portugal Maria; no Brasil perde o nome de baptismo para grangear o honroso qualificativo de "mucama".

Contam as chronicas antigas que o melhor medo de se attrahir a confiança dos monarchas era em primeiro lugar angariar a sympathia das favoritas. Ninguem levará a mal essa observação, desde que se lembrar da Pompadour, da La Valliére, da duqueza Dubarry, da duqueza de Chevreuse, de Maintenon, da Parabére e de outras estrellas galantes do escandaloso horizonte do seculo XVIII.

Pois no Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, essa pleiade de figuras gentis, essas duquezas, princezas, marquezas, loiras, morenas, infieis, ousadas encantadoras resumem-se numa simples perfil cujo maior luxo é o de trazer o cabello aspero repartido e empinado, os olhos vivos, o dente claro, o motejo e o "muxoxo" promptos, o vestidinho engommado, a côr envernizadamente negra e uma insolencia à prova dos mais rispidos preconceitos sociaes.
Seria preciso nomear a mucama? Quem não a reconheceu já nos rapidos traços, que aqui deixamos, embora toscos e incolores?
Um espirito superior em nossa literatura desenhou em quadro de mestre a physionomia garrida, impertinente, cruel, engraçada e arisca do "moleque", o demonio familiar, o secretario do "senhor moço", o terror das visitas, e o cofre indiscreto de todos os mysterios da casa e da vizinhança! Só a mesma penna seria capaz de pôr em relevo o typo da mucama brasileira. Devo-lhe esta venia, antes de metter a mão na custosa seára. A mucama é uma confidente, — que digo?
É uma pessoa da familia, uma parenta e quasi sempre uma filha. Identifica-se com os gostos, os defeitos, os cacoetes dos senhores, a tal ponto que eu ouvi um sujeito perguntar, ha tempos, à minha vista, à mucama durante o jantar:
— Oh! pequena! Devo principiar pelo frango ou pelo carneiro?
Ella respondeu não sei o que, e curvou-se immediatamente, para dizer qualquer cousa ao ouvido da menina. O sujeito, respeitando o meu honesto pasmo, disse-me rindo: - É a mucama de minha filha. E ao meu ouvido:
— É um azougue!
A mucama é quem veste a nossa noiva, quem a pentêa, quem lhe ensina o meio de nos fazer ciumes no ar, quem vê primeiro os figurinos da ama, e os escolhe, quem nota os defeitos e as bellezas das visitas da casa, quem as despede à porta da rua, quando lhe apraz, quem acompanha a menina à charara, ao quarto, à cama, e é quem, na hora do noivado lhe préga o ultimo alfinete, murmurando seja o que fôr que obriga a noiva a corar e a rir diabolicamente.
— E vae se casar sempre com o Santos, nhanhã? perguntou uma à senhora moça, no dia em que esta acceitára o pedido do pretendente.
— Vou. Que é que tem?
— Não era eu! Olhe, disso estava elle livre!
— Por que?
— E a verruga do pescoço
— A verruga?
Os olhos da noiva brilharam, e suas faces tingiram-se de um purpurino arrebol.
— Só hoje foi que eu dei pela cousa proseguiu o demonio negro. E matizava as palavras de gargalhadas intermittentes. Hoje à hora do chá!
— Mas...
— Ora, tinha que vêr; uma moça do Cassino, uma fregueza da "Notre Dame" e que anda no "coupé" do papae!
— Explica-te! explica-te!
— Eu lhe conto. Quando a gente veio tomar chá, eu dei para ficar por traz delle. Meu dito, meu feito. Não tirei mais os olhos de cima do homem. Conversa puxa conversa; e abaixa aqui, e abaixa acolá, o certo é que de uma vez que elle se debruçava para um lado, o collarinho afastou-se e eu vi com estes olhos mesmo uma verruga do tamanho de um tento com que meu senhor joga o sollo!!
— Feissima, hein?
— Deus me defenda! Parecia um besouro... Então, com pena de nhanhã...
— Está bom. Vae te deitar.
— Não quer nada mais?
— Não, acudiu a menina um pouco febril. Vae-te deitar.
No dia seguinte desmanchava-se o casamento. Desta vez, a fatalidade rebentou no seio de uma familia sob o aspecto de uma... verruga? Qual? Sob o aspecto de uma mucama! A mesma menina, atenazada pelo demonio negro, casou com um biltre que o injuriava dia e noite, para dar razão à mucama. Isso é vulgar! A mucama consegue dominar todos os representantes da familia, desde o chefe até o ultimo parente. É muitas vezes o pomo da discordia. Uns defendem-n'a, outros censuram-n'a; outros nem a censuram nem a defendem; ficando ella na posição altamente historica de Helena, pela qual brigaram os valentes heróes de Homero! A educação brasileira, que não é, por fim de contas, o ideal das educações racionaes, deve banir de seu gremio essa figura ironica, trahidora e graciosa da mucama.
A mucama é um perigo; um perigo que se insinua, quasi imperceptivelmente, à maneira do arranhão do gato ou das febres intermitentes.
Depende muitas vezes della o socego do lar domestico, e não é para admirar que o seu espírito infernal sirva de peso na balança das nossas contribuições sociaes e politicas. Em tempo de eleições:
— Rapariga, vae vêr quando passa o Cunha e entrega-lhe isto. São as chapas da nossa freguezia!
Pouco depois pára junto à janela um Cupido, que costuma cortejar a menina da casa.
— Então, pequena, que ha de novo?
— Nada. Só eu que aqui estou à espera do sr. Cunha, para lhe dar as chapas.
— Que chapas? Eu sei?! Da frequezia do meu senhor! Olhe! E mostra o embrulho.
O Cupido tem uma subita inspiração.
— Oh, pequena, dá cá isso!
— Para que?
— Ora vamos! Dá cá, e toma estas!
— Hein?
— Se me queres bem!... Não sejas má... então?
E trocam-se os embrulhos. O certo é que na apuração das cedulas, o homem entra em casa desorientado:
— Isto só por artes do diabo! Vocifera elle. Rapariga! Vem a mucama; olhos serenos, peito tranquilo, e com um sorriso apenas malicioso no canto da bocca. - Entregaste as chapas ao Cunha?
— Sim, senhor! Elle que diga!
— Diabo, diabo!...
E enquanto o derrotado heróe da frequezia arranca os cabellos e as barbas a mãos juntas, a mucama estala de riso, por traz do bastidor da senhora moça! A mucama está collocada entre o escravo e a familia; nem é propriamente filha, nem propriamente escrava. Para ella se inventou um meio termo de censura e de caricia: um "quasi" beliscão e um "quasi" beijo.
Ella nasceu no mesmo dia em que a menina veio ao mundo: os gostos, os dissabores, as malicias, as ingenuidades, os caprichos da menina reflectem-se nella. Se está pezarosa a senhora, a mucama pezarosa está; se a senhora vive alegre, o mundo descobre esse lisonjeiro estado no nariz esperto, no cabello reluzente e nos labios perigosos do travesso demonio. A menina esconde um segredo, dois segredos, o maior segredo de sua alma à sua mãe; à mucama, não. E tente-o! Ella vem sorrateiramente como a cobra, como a pulga, como a trahição. Olha para a senhora moça; tosse de manso; demora-se em arrumar alguma cousa na "toilette"; estaca a examinar um vidro de perfume; pergunta mil vezes se não ha necessidade de cousa alguma, e por fim exhala um retumbante suspiro, com os olhos piedosamente erguidos ao tecto.
— Que tens tu?
E palavra depois de palavra, phrase seguida a phrase, questões, reticencias, armadilhas, maliciosas perfidias, até que emfim... Até que emfim, a mucama, ao romper do dia, vae contar à dona da casa, com certo aprumo, tudo quanto a menina occultou às lagrimas e supplicas maternas. É uma raça damninha realmente mas é o lado espirituoso, é o lado galante, é o lado anecdotico e gentil da escravidão brasileira. De todos os escravos, o mais perigoso, terrivel, invencivel e fatal é a mucama. Terrivel, por ser justamente o mais seductor! Ha paes que dizem, apresentando a filha ao noivo, como o seu melhor elogio:
— Não tem parentes!
Se elles dissessem: — Não tem mucama! Seria cousa de lisonjear, com mais vantagem, o espirito e o socego de um noivo consciencioso.
A proposito de noivo... Um janota fluminense, rapaz esbelto, atoleimado, rico, socio do Jockey-Clube, e talento capaz de, no peior bilhar, levar a cabo uma duzia de carambolas em dez minutos, — um moço perfeito emfim! — estava a pular de cobiça pelo dote de uma herdeira riquissima, cento e cincoenta apolices, dois predios magnificos, madrinha milionaria, etc., etc.!
A menina era galante, mas ingenua, de fórma que o sujeito tinha quasi por ganha a partida. Havia, porém, uma barreira no meio da aventura; e que barreira, Virgem purissima! — Havia uma mucama!
Pae, mãe, irmão, amigos, todos amaldiçoavam o dia em que o janota poz os olhos... nas apolices da donzella. A mãe, em varias conferencias intimas tratara de aconselhar a filha.
— Eu tenho mais de vinte anos, mamãe. Ou me caso com elle, ou então a lei...
A lei era um dos recursos a que se prendia a logica do namorado. Em todas as suas cartas elle falava na lei... A menina sentia-se vencida e fascinada. A mucama, por capricho ou por commiseração da familia, decidiu-se a cortar a crise. No momento de se deitar, disse-lhe a senhora moça, com a face incendiada e o seio convulsivo:
— Se papae não consentir, eu hei de ser tirada por justiça. Verás!
A mucama deixou de desacolchetar o vestido da menina, olhando-a com certa penetração.
— Nunca me viste?
— Estou admirada!
— Oh! oh! por que?
— Porque esse moço lhe quer tanto bem como a mim!
— Hein! Estás doida?
— Vamos apostar!
— Estás doida?
— Vamos apostar, sinhá! Em sendo horas amanhã eu vou para o portão, e o que se passar, vosmecê verá da janella do jardim.
— Que vaes tu' fazer, rapariga?
— Verá!
Os olhos da mucama fulguravam como duas brazas infernaes. A menina sorriu desdenhosa e entregou-se toda aos ineffaveis arroubos de sua poetica aventura. Na tarde do dia seguinte, a mucama approximou-se da senhora moça. Estava luzidia, viçosa, enfeitada, rutilante de perversidade e malicia.
— Espere um pouco, sinhá!
— Esperar por que, maluca?
— Pela prova que eu lhe disse hontem. Elle ha de vir buscar a resposta da carta...
— Se tu' fizeres alguma cousa...
— Esconda-se vosmecê por traz da persiana e conhecerá quem é o sujeitinho. Tambem póde acreditar, se elle não fôr como os outros, eu mesma lhe direi: — case-se já, já sem perda de tempo!
— Tola!
Às dez horas da noite o silencio cercava toda a sumptuosa habitação. A menina, entre a curiosidade e o enleio, acondicionou-se à sombra da persiana. Era a hora em que o janota vinha regularmente trocar entre as mãos da mucama as epistolas amatorias. Tic, tac, tic, tac, tac... Lá vinha elle! Chegou enfim! Examinou se alguem o seguia, se alguem o via, se o espreitava alguem... Adiantou-se até o portão. A mucama sahiu-lhe ao encontro.
— Então? Indagou o janota, estendendo a mão, à espera da carta habitual.
— Hoje não ha, meu senhor!... acudiu ella, desfazendo-se em meneios e momos graciosos.
— Tua senhora?
— Não está em casa.
— Como?!
— É verdade... eu estou só.
— A familia toda sahiu?
— Todinha.
E, momentos depois, ouviu-se no silencio da noite o ruido sonóro de um beijo. Immediatamente, porém, estalou uma gargalhada vibrante, acerada, estridente, e o portão fechou-se com estrondo nas barbas do novo D. Juan. A gargalhada crescia de furia, de expansão e de sonoridade. Ao mesmo tempo descerrava-se a persiana e surgia o rosto colerico e pallido da illudida enamorada.
— Então, sinhá? Ganhei ou perdi a aposta?
O janota enfurecido tentou abrir o portão. Acordou o feitor, apenas ia despertando o alarma na casa. Achou mais commodo retirar-se. Fe-lo com a maior prudencia e... presteza. Quando a mucama approximou-se à senhora moça, mal podia comprimir as risadas que a suffocavam. A menina olhava-se pasma e muda, sem saber se devia repellil-a ou acarinhal-a.
— Olhe, sinhá — observou o demonio com um ar genuinamente infernal — desses homens ha por ahi aos centos, como as moscas. Não vale a pena! Nem para mim!
E limpou desdenhosamente a face. Nunca mais se falou no namoro da moça, nem se viu a cara atoleimada do janota. A familia mal sabia a que attribuir tão feliz metamorphose. Um dia, em segredo, a menina narrou a scena do rompimento à mãe, a mãe ao pae, o pae ao filho; e de commum accôrdo, decidiram alforriar a crioula, conservando-a, porém, no posto de mucama predilecta. Ella preferiu ser ainda, ser sempre, ser toda a vida, mucama; mas... escrava.
Metternich não seria mais diplomata nem Machiavel mais astuto
.


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