LUIZ
GUIMARÃES JUNIOR
Cousas
do tempo antigo
É
o mimo da casa; as meninas contam-lhe todos os segredos; os escravos
a respeitam; as visitas reconhecem nella a redeira presumptiva das
malicias e indiscreções da familia; e sua vida resume-se em ser
a companheira da senhora moça em solteira e a creada particular
da senhora moça quando se casa.
É a favorita do lar domestico; uma especie de Montespan retinta,
azougada, de cabello aprumado, por cujas mãos têm de passar todos
os requerimentos que se dirijam à alta sabedoria do conciliabulo
familiar. Em Inglaterra chama-se Betty; em França Marton; em Portugal
Maria; no Brasil perde o nome de baptismo para grangear o honroso
qualificativo de "mucama".
Contam as chronicas antigas que o melhor medo de se attrahir a confiança
dos monarchas era em primeiro lugar angariar a sympathia das favoritas.
Ninguem levará a mal essa observação, desde que se lembrar da Pompadour,
da La Valliére, da duqueza Dubarry, da duqueza de Chevreuse, de
Maintenon, da Parabére e de outras estrellas galantes do escandaloso
horizonte do seculo XVIII.
Pois no Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, essa pleiade
de figuras gentis, essas duquezas, princezas, marquezas, loiras,
morenas, infieis, ousadas encantadoras resumem-se numa simples perfil
cujo maior luxo é o de trazer o cabello aspero repartido e empinado,
os olhos vivos, o dente claro, o motejo e o "muxoxo" promptos, o
vestidinho engommado, a côr envernizadamente negra e uma insolencia
à prova dos mais rispidos preconceitos sociaes.
Seria preciso nomear a mucama? Quem não a reconheceu já nos rapidos
traços, que aqui deixamos, embora toscos e incolores?
Um espirito superior em nossa literatura desenhou em quadro de mestre
a physionomia garrida, impertinente, cruel, engraçada e arisca do
"moleque", o demonio familiar, o secretario do "senhor moço", o
terror das visitas, e o cofre indiscreto de todos os mysterios da
casa e da vizinhança! Só a mesma penna seria capaz de pôr em relevo
o typo da mucama brasileira. Devo-lhe esta venia, antes de metter
a mão na custosa seára. A mucama é uma confidente, que digo?
É uma pessoa da familia, uma parenta e quasi sempre uma filha. Identifica-se
com os gostos, os defeitos, os cacoetes dos senhores, a tal ponto
que eu ouvi um sujeito perguntar, ha tempos, à minha vista, à mucama
durante o jantar:
Oh! pequena! Devo principiar pelo frango ou pelo carneiro?
Ella respondeu não sei o que, e curvou-se immediatamente, para dizer
qualquer cousa ao ouvido da menina. O sujeito, respeitando o meu
honesto pasmo, disse-me rindo: - É a mucama de minha filha. E ao
meu ouvido:
É um azougue!
A mucama é quem veste a nossa noiva, quem a pentêa, quem lhe ensina
o meio de nos fazer ciumes no ar, quem vê primeiro os figurinos
da ama, e os escolhe, quem nota os defeitos e as bellezas das visitas
da casa, quem as despede à porta da rua, quando lhe apraz, quem
acompanha a menina à charara, ao quarto, à cama, e é quem, na hora
do noivado lhe préga o ultimo alfinete, murmurando seja o que fôr
que obriga a noiva a corar e a rir diabolicamente.
E vae se casar sempre com o Santos, nhanhã? perguntou uma
à senhora moça, no dia em que esta acceitára o pedido do pretendente.
Vou. Que é que tem?
Não era eu! Olhe, disso estava elle livre!
Por que?
E a verruga do pescoço
A verruga?
Os olhos da noiva brilharam, e suas faces tingiram-se de um purpurino
arrebol.
Só hoje foi que eu dei pela cousa proseguiu o demonio negro.
E matizava as palavras de gargalhadas intermittentes. Hoje à hora
do chá!
Mas...
Ora, tinha que vêr; uma moça do Cassino, uma fregueza da
"Notre Dame" e que anda no "coupé" do papae!
Explica-te! explica-te!
Eu lhe conto. Quando a gente veio tomar chá, eu dei para
ficar por traz delle. Meu dito, meu feito. Não tirei mais os olhos
de cima do homem. Conversa puxa conversa; e abaixa aqui, e abaixa
acolá, o certo é que de uma vez que elle se debruçava para um lado,
o collarinho afastou-se e eu vi com estes olhos mesmo uma verruga
do tamanho de um tento com que meu senhor joga o sollo!!
Feissima, hein?
Deus me defenda! Parecia um besouro... Então, com pena de
nhanhã...
Está bom. Vae te deitar.
Não quer nada mais?
Não, acudiu a menina um pouco febril. Vae-te deitar.
No dia seguinte desmanchava-se o casamento. Desta vez, a fatalidade
rebentou no seio de uma familia sob o aspecto de uma... verruga?
Qual? Sob o aspecto de uma mucama! A mesma menina, atenazada pelo
demonio negro, casou com um biltre que o injuriava dia e noite,
para dar razão à mucama. Isso é vulgar! A mucama consegue dominar
todos os representantes da familia, desde o chefe até o ultimo parente.
É muitas vezes o pomo da discordia. Uns defendem-n'a, outros censuram-n'a;
outros nem a censuram nem a defendem; ficando ella na posição altamente
historica de Helena, pela qual brigaram os valentes heróes de Homero!
A educação brasileira, que não é, por fim de contas, o ideal das
educações racionaes, deve banir de seu gremio essa figura ironica,
trahidora e graciosa da mucama.
A mucama é um perigo; um perigo que se insinua, quasi imperceptivelmente,
à maneira do arranhão do gato ou das febres intermitentes.
Depende muitas vezes della o socego do lar domestico, e não é para
admirar que o seu espírito infernal sirva de peso na balança das
nossas contribuições sociaes e politicas. Em tempo de eleições:
Rapariga, vae vêr quando passa o Cunha e entrega-lhe isto.
São as chapas da nossa freguezia!
Pouco depois pára junto à janela um Cupido, que costuma cortejar
a menina da casa.
Então, pequena, que ha de novo?
Nada. Só eu que aqui estou à espera do sr. Cunha, para lhe
dar as chapas.
Que chapas? Eu sei?! Da frequezia do meu senhor! Olhe! E
mostra o embrulho.
O Cupido tem uma subita inspiração.
Oh, pequena, dá cá isso!
Para que?
Ora vamos! Dá cá, e toma estas!
Hein?
Se me queres bem!... Não sejas má... então?
E trocam-se os embrulhos. O certo é que na apuração das cedulas,
o homem entra em casa desorientado:
Isto só por artes do diabo! Vocifera elle. Rapariga! Vem
a mucama; olhos serenos, peito tranquilo, e com um sorriso apenas
malicioso no canto da bocca. - Entregaste as chapas ao Cunha?
Sim, senhor! Elle que diga!
Diabo, diabo!...
E enquanto o derrotado heróe da frequezia arranca os cabellos e
as barbas a mãos juntas, a mucama estala de riso, por traz do bastidor
da senhora moça! A mucama está collocada entre o escravo e a familia;
nem é propriamente filha, nem propriamente escrava. Para ella se
inventou um meio termo de censura e de caricia: um "quasi" beliscão
e um "quasi" beijo.
Ella nasceu no mesmo dia em que a menina veio ao mundo: os gostos,
os dissabores, as malicias, as ingenuidades, os caprichos da menina
reflectem-se nella. Se está pezarosa a senhora, a mucama pezarosa
está; se a senhora vive alegre, o mundo descobre esse lisonjeiro
estado no nariz esperto, no cabello reluzente e nos labios perigosos
do travesso demonio. A menina esconde um segredo, dois segredos,
o maior segredo de sua alma à sua mãe; à mucama, não. E tente-o!
Ella vem sorrateiramente como a cobra, como a pulga, como a trahição.
Olha para a senhora moça; tosse de manso; demora-se em arrumar alguma
cousa na "toilette"; estaca a examinar um vidro de perfume; pergunta
mil vezes se não ha necessidade de cousa alguma, e por fim exhala
um retumbante suspiro, com os olhos piedosamente erguidos ao tecto.
Que tens tu?
E palavra depois de palavra, phrase seguida a phrase, questões,
reticencias, armadilhas, maliciosas perfidias, até que emfim...
Até que emfim, a mucama, ao romper do dia, vae contar à dona da
casa, com certo aprumo, tudo quanto a menina occultou às lagrimas
e supplicas maternas. É uma raça damninha realmente mas é o lado
espirituoso, é o lado galante, é o lado anecdotico e gentil da escravidão
brasileira. De todos os escravos, o mais perigoso, terrivel, invencivel
e fatal é a mucama. Terrivel, por ser justamente o mais seductor!
Ha paes que dizem, apresentando a filha ao noivo, como o seu melhor
elogio:
Não tem parentes! Se
elles dissessem: Não tem mucama! Seria cousa de lisonjear,
com mais vantagem, o espirito e o socego de um noivo consciencioso.
A proposito de noivo... Um janota fluminense, rapaz esbelto, atoleimado,
rico, socio do Jockey-Clube, e talento capaz de, no peior bilhar,
levar a cabo uma duzia de carambolas em dez minutos, um moço
perfeito emfim! estava a pular de cobiça pelo dote de uma
herdeira riquissima, cento e cincoenta apolices, dois predios magnificos,
madrinha milionaria, etc., etc.!
A menina era galante, mas ingenua, de fórma que o sujeito tinha
quasi por ganha a partida. Havia, porém, uma barreira no meio da
aventura; e que barreira, Virgem purissima! Havia uma mucama!
Pae, mãe, irmão, amigos, todos amaldiçoavam o dia em que o janota
poz os olhos... nas apolices da donzella. A mãe, em varias conferencias
intimas tratara de aconselhar a filha.
Eu tenho mais de vinte anos, mamãe. Ou me caso com elle,
ou então a lei...
A lei era um dos recursos a que se prendia a logica do namorado.
Em todas as suas cartas elle falava na lei... A menina sentia-se
vencida e fascinada. A mucama, por capricho ou por commiseração
da familia, decidiu-se a cortar a crise. No momento de se deitar,
disse-lhe a senhora moça, com a face incendiada e o seio convulsivo:
Se papae não consentir, eu hei de ser tirada por justiça.
Verás!
A mucama deixou de desacolchetar o vestido da menina, olhando-a
com certa penetração.
Nunca me viste?
Estou admirada!
Oh! oh! por que?
Porque esse moço lhe quer tanto bem como a mim!
Hein! Estás doida?
Vamos apostar!
Estás doida?
Vamos apostar, sinhá! Em sendo horas amanhã eu vou para o
portão, e o que se passar, vosmecê verá da janella do jardim.
Que vaes tu' fazer, rapariga?
Verá!
Os olhos da mucama fulguravam como duas brazas infernaes. A menina
sorriu desdenhosa e entregou-se toda aos ineffaveis arroubos de
sua poetica aventura. Na tarde do dia seguinte, a mucama approximou-se
da senhora moça. Estava luzidia, viçosa, enfeitada, rutilante de
perversidade e malicia.
Espere um pouco, sinhá!
Esperar por que, maluca?
Pela prova que eu lhe disse hontem. Elle ha de vir buscar
a resposta da carta...
Se tu' fizeres alguma cousa...
Esconda-se vosmecê por traz da persiana e conhecerá quem
é o sujeitinho. Tambem póde acreditar, se elle não fôr como os outros,
eu mesma lhe direi: case-se já, já sem perda de tempo!
Tola!
Às dez horas da noite o silencio cercava toda a sumptuosa habitação.
A menina, entre a curiosidade e o enleio, acondicionou-se à sombra
da persiana. Era a hora em que o janota vinha regularmente trocar
entre as mãos da mucama as epistolas amatorias. Tic, tac, tic, tac,
tac... Lá vinha elle! Chegou enfim! Examinou se alguem o seguia,
se alguem o via, se o espreitava alguem... Adiantou-se até o portão.
A mucama sahiu-lhe ao encontro.
Então? Indagou o janota, estendendo a mão, à espera da carta
habitual.
Hoje não ha, meu senhor!... acudiu ella, desfazendo-se em
meneios e momos graciosos.
Tua senhora?
Não está em casa.
Como?!
É verdade... eu estou só.
A familia toda sahiu?
Todinha.
E, momentos depois, ouviu-se no silencio da noite o ruido sonóro
de um beijo. Immediatamente, porém, estalou uma gargalhada vibrante,
acerada, estridente, e o portão fechou-se com estrondo nas barbas
do novo D. Juan. A gargalhada crescia de furia, de expansão e de
sonoridade. Ao mesmo tempo descerrava-se a persiana e surgia o rosto
colerico e pallido da illudida enamorada.
Então, sinhá? Ganhei ou perdi a aposta?
O janota enfurecido tentou abrir o portão. Acordou o feitor, apenas
ia despertando o alarma na casa. Achou mais commodo retirar-se.
Fe-lo com a maior prudencia e... presteza. Quando a mucama approximou-se
à senhora moça, mal podia comprimir as risadas que a suffocavam.
A menina olhava-se pasma e muda, sem saber se devia repellil-a ou
acarinhal-a.
Olhe, sinhá observou o demonio com um ar genuinamente
infernal desses homens ha por ahi aos centos, como as moscas.
Não vale a pena! Nem para mim!
E limpou desdenhosamente a face. Nunca mais se falou no namoro da
moça, nem se viu a cara atoleimada do janota. A familia mal sabia
a que attribuir tão feliz metamorphose. Um dia, em segredo, a menina
narrou a scena do rompimento à mãe, a mãe ao pae, o pae ao filho;
e de commum accôrdo, decidiram alforriar a crioula, conservando-a,
porém, no posto de mucama predilecta. Ella preferiu ser ainda, ser
sempre, ser toda a vida, mucama; mas... escrava.
Metternich não seria mais diplomata nem Machiavel mais astuto.
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