CONTRABANDISTA

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 27 de novembro de 1949.

Neste texto foi mantida a grafia original

SIMÕES LOPES NETO

Batia nos noventa anos, o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos banhados do Ibiroçaí.
Esse gaucho desabotinado levou a existencia inteira a cruzar os campos de fronteira, à luz do sol, no desmaiado de lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas... Ainda que chovesse reinos acorelhados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada.
Conhecia as querencias pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-cavalo florescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão pelo ouvido: aqui cancha de grachains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro o areião. Até pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam aguas salobras e aguas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo.
Tinha vindo das guerras do outro tempo: foi um dos que pelearam na batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu. E sempre que falava no Anjo da Vitoria ainda tirava o chapéu, uma braçada larga, como se cumprimentasse alguem de muito respeito, numa distancia muito longe.
Foi sempre um gaucho quebralhão e despilchado sempre, por ser muito de mãos abertas.
Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balas-traçadas, reunida a gurizada da casa, fazia - pi! pi! pi! pi! - como pra galinhas e semeava as moedas, ruindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro.
Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de apanhar da paleta à verilha, e puxando a valer, tanto, que o bicho que o tomava, ficando entupido de dor e lambendo-se, depois de disparar um pouco é que gritava num - caim! caim! caim! - de desespero.
Outras vezes dava-lhe para armar uma jantaria e, sobre o fim do festo, quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma pinta da toalha e lá vinha, de tirão seco, toda a traquinada dos pratos e copos e garrafas e retos de comidas e caidas de doces!
Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que aproveitava o vento e le echaba cuentas de gran capitan...
Era um pagodista!
Aqui ha poucos anos - coitado! - pousei no arranchamento dele. Casado ou doutro jeito estava afamiliado. Não nos viamos desde muito tempo.
A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui prazenteira: de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma mocinha - pro caso, uma moça - que era - Santo-Antoninho-onde-te-porei! - daquela gente toda.
E era mesmo uma formosura: e prendada, mui habilidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila.
E noiva, casadeira, já era.
E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vesperas do casamento, estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela.
O noivo chegou no outro dia: grande alegria. Começaram os aprontamentos e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.
O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval da filha.
Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda antiga mas, como cada um manda no que é seu...
Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutorio na matança dos leitores e no tiramento dos essados com couro.
Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde antes da tomada das Missões.
Naqueles tempos o que se fazia era sem malicia, e mais por divertir e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços, abanava o poncho e vinha à meia rede; apartava-se a portada e largava-se o resto; os de lá faziam conosco a mesma coisa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados.
Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do mesmo jeito.
Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla, do Haedo. O mais era varzea!
Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e aguentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!
Foi o tempo do manda quem pode! E foi o tempo que o gaucho, o seu cavalo e o seu facão sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!
Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o capitão-general; ele dava as semarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros...
Vancê tome tenencia e vá vendo como as coisas, por si mesmas, se explicam.
Naquela era, a polvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graudo poderia ter em casa um polvarim...
Tambem só na vila de Porto Alegre é que havia baralhos de jogar, que eram feitos só na fabrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim senhor, das cartas de jogar e ninguem podia comprar senão dessas!
Por esses tempos antigos tambem o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar fluxo aos reinóis...
Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas etiquetas e pedindo louvado, pra se defender, pra se divertir e pra luxar!... O tal rei nosso senhor não se enxergava, mesmo!
E logo com quem! Com a gauchada!
Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado, nos espanhóis, buscar polvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios... e ninguem pagava dizimos dessas coisas.
As vezes, lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa explosão da polvora; doutras, uma partida de milicianos saía de atravessado e tomava conta de tudo, a couce d'arma; isto foi ensinando a escaramuçar com os golas de couro.
Nesse serviço foram-se aficionando alguns gauchos: recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta, que vinha do reino e fumo em corda, que vinha da Baía, e algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase.
Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se entendiam.
Isto veio mais ou menos assim até à guerra dos Farrapos; depois vieram as californias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas.
Aí inundou-se a fronteira da provincia de espanhóis e gringos emigrados.
A coisa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta... Entrou nos homens e sedução de ganhar barato; basta ser campeiro e destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo...
Não se lidava com papéis nem contas de coisas; era só levantar os volumes, encangalhar, tocar e entregar!
Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se.
Rompeu a guerra do Paraguai.
O dinheiro do Brasil ficou muito caro; uma onça de ouro. Que corria por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil réis! Imagine o que a estrangeirada bolou nas contas!
Começou-se a cargueirar de um tudo; panos aguas de cheiro, armas, miniganchas, remedios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca!
Apareceram tambem os mascates de campanha com baús escangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar aqui...
Policia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas coletorias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas...
Ora!... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a arvore ramalhuda, que vencê sabe, do contrabando de hoje.
O Jango Jorge foi maioral nesses estrupicios. Desde moço, até à hora da morte, eu vi.
Como disse, na madrugada, vespera do casamento, o Jango Jorge saiu par ir buscar o enxoval da filha.
Passou o dia; passou a noite.
No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada.
Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e cozinhos de licor de butiá.
Toncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de musica na sala.
Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados.
A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido, estava sossegada , ao menos ao parecer.
Às vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.
Surgiu dum quatro o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, diterios, elogios.
Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de laranjeira, que o país fora buscar e ainda não trouxera.
As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.
Entardeceu.
Nisto correu voz que a noiva estava chorando; fizemos uma algazarra e ela - tão boazinha! - veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava contente.
A rir, sim, rindo na boca, mas tambem a chorar lagrimas grandes, que relevam devagar dos olhos pestanudos...
E rindo e chorando estava sem sabem por que... sem saber por que, rindo e chorando, quando alguem gritou do terreiro:
- Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!
Foi um vozeiro geral a moça porem ficou, como estava, no quadro da porta, rindo e chorando cada vez menos sem saber por que... pois o pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva...
Era já lusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.
E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silencio, tudo.
E o mesmo silencio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os olhos.
Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado...
Ninguem perguntou nada, ninguem informou de nada; todos entenderam tudo... que a festa estava acabada e a tristeza começada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enfeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse:
— A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto... e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram de balas... parado... Os ordinarios! Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!
A sia dona mãe da noiva levantou o balandrau de Jango Jorge e desamarrou o embrulho, e abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o seu véu branco, as flores de laranjeiras ...
Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas coisas bonitas como que bordada de colorado, num padrão esquisito, de feitios estrambolicos... com flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!
Então rompeu o choro na casa toda.



João Simões Lopes - É gaucho da cidade de Pelotas, tendo nascido em 1865 e falecido em 1916. A exceção dos poucos anos em que estudou medicina no Rio de Janeiro, jamais saiu do Rio Grande do Sul, tendo dedicado toda a sua atividade intelectual ao estudo da gente de sua terra natal, à recolha de seu populario, à recriação literario de sua lendas e à fixação de seus tipos, paisagens e almas. Foi, pois, um escritor regional. Ainda não está situado no lugar que merece, nas nossas letras, como grande escritor que é, em virtude da pouca publicidade dada até agora às suas obras. Mas tal há de ser considerado quando for mais conhecido, porque assim o exigem o valor poetico das "Lendas do Sul", por ele recolhidas e recriadas, e a verdade humana de algumas figuras de seus "Contos Gauchescos", dentre as quais se destaca esta do "Contrabandista".

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