EMIR
MACEDO NOGUEIRA
Cada
louco com sua mania. Balduino, apesar de não ser louco pelo
contrario, era até um individuo bem lucido, perfeitamente
normal tambem tinha a sua mania: a mais prosaica, a mais inofensiva,
talvez a mais tola das manias: colecionar caixas de fosforos. Bem
conservadas ou não, de qualquer formato, de qualquer marca.
Balduino nunca se vexou de apanhar uma caixa de fosforos na rua,
mesmo que estivesse acompanhado por sua namorada (mais tarde sua
esposa), por um amigo ou pelo patrão.
Para se compreender bem o que aconteceu com o Balduino, em consequencia
de sua mania, não se pode esquecer que ele viveu a vida toda
em uma cidadezinha pequena, dessas onde todo o mundo se conhece.
Não é de estranhar, portanto, que todos soubessem
de seu singular habito, a ponto de ninguem mais reparar nele. Para
a Mariazinha, vizinha do Balduino e que o namorou durante nove anos,
vindo depois a casar-se com ele, nem essa atenuante ficou: a de
poder dizer aos tribunais que "ele era um sujeito muito bonzinho,
equilibrado, um chefe de familia exemplar mas de repente pegou uma
mania, uma verdadeira obsessão, que transformou a vida conjugal
em um 'inferno'".
A verdade é que a Mariazinha sempre pareceu ser muita compreensiva
e tolerante, em relação à mania do Balduino,
pelo menos enquanto não o desposou. No longo tempo de namoro
e noivado (este durou seis anos), ela até o ajudava a encontrar
novas caixas de fosforo, não reprimia interjeições
admirativas diante dos castelos que ele construia com esse modesto
material e até mesmo o incentivava a juntar mais e mais.
Foi só casar, porem, e... Minto. Começou antes. Já
a confecção do bolo do casamento provocara a primeira
rusga seria entre os dois. Balduino insistia em que o bolo tivesse
a forma de uma caixa de fosforo, meio aberta, com os palitos aparecendo.
E no alto dela, duas figurinhas simbolizando o casal de noivos.
Mariazinha fez pé firme e, numa demonstração
de como agiria depois de casada, colocou o futuro marido num dilema:
ou ela (a caixa de fosforos) ou eu. Acredito que em outras circunstancias
Balduino não hesitaria: optaria pela sua caixa de fosforo,
sem pensar duas vezes. Mas, fosse porque gostasse mesmo da Mariazinha,
ou porque os convites já tivessem sido distribuidos, os doces
prontos, a cerimonia religiosa encomendada - fosse porque fosse,
enfim - decidiu ceder dessa vez. Mas com uma conclusão: a
de que as alianças fossem levadas, por dois garotinhos, para
o casamento na igreja, dentro de caixas de fosforos, artisticamente
enfeitadas...
Dizem as más linguas que, no dia do casamento Mariazinha
ficou mais de meia hora em frente ao padre, com a igreja cheia,
os convidados impacientes, esperando o noivo, que lá ficara,
na casa que tinha alugado para a nova vida, tentando arrumar um
lugar "decente" para as suas caixas de fosforos. Pode
ser que seja verdade, mas eu não garanto.
Enfim, com todos esses pequeninos contratempos, o casamento se realizou.
Durante os primeiros meses, parece que tudo correu normalmente,
porque, como eu já disse, Balduino era um bom sujeito, compreensivo,
muito simpatico e gostava da Mariazinha. Ninguem sabe quando esta
começou de fato, realmente, ferozmente, a implicar com a
mania do Balduino. A principio, apenas o impediu de apanhar novas
caixas na rua. Quando os dois passavam para ir ao cinema, ou dar
uma volta no jardim e Balduino vislumbrava na rua um dos pequeninos
objetos que eram a sua obsessão, imediatamente começava
a dobrar a espinha, para apanhá-lo e metê-lo no bolso.
Mas com a Mariazinha ao lado, o gesto ficava inacabado. Ela se agarrava
ao braço do marido, puxava-o com força e passava-lhe
um sermão em regra, sobre comportamento de pessoas na rua,
"o ridiculo a que muita gente se submete", etc. De tal
forma o azedume da cara-metade era pronunciado, nessas ocasiões,
que Balduino teve de resignar-se a renunciar a 312 caixinhas de
fosforos, bem contadas, que lhe apareceram sob as vistas, sempre
que estava em companhia da Mariazinha (durante os sete meses em
que permaneceram juntos). Em compensação, os companheiros
de trabalho do Balduino (trabalhavam numa modesta selaria que até
hoje não sei porque cargas dagua se chamava "A Agulha
de Aço"), nunca deixaram de lhe aumentar a coleção,
seja reservando-lhe as proprias caixas que usavam, seja guardando
para ele as que acaso achavam na rua.
Apesar de pouco ter transpirado, é facil supor que a vida
do Balduino foi-se tornando um inferno, em vista da implicancia
da Mariazinha. Volta e meia se comentava um novo ato dela, com relação
direta à mania do marido: um dia, jogava no lixo (sem querer,
dizia ela) uma meia duzia de caixas que o Balduino pacientemente
tinha selecionado, entre as mais perfeitas da coleção;
outro, pisava (tambem inadvertidamente), em cima de alguma caixa
que o marido tinha esquecido de guardar); certa ocasião,
chegou a jogar no fogo um castelo muito bonito, estilo medieval,
que com paciencia beneditina o Balduino conseguira armar.
Como pobre casa sem ter nada e aos poucos vai comprando tudo aquilo
de que necessita, quando Balduino e Mariazinha chegaram ao quinto
mês de casados, sua modesta residencia já estava mais
ou menos abarrotada de moveis, utensilios domesticos e bugigangas
de toda especie. Mariazinha então começou a apertar
o cerco:
"Baldo, a gente já vive esprimidinha aqui dentro, não
tem nem lugar pra guardar a louça e você ainda enche
a casa com esses baús cheios de 'porcaria'". Precisamos
jogar essas porcarias fora."
Naturalmente, havia um certo exagero nas palavras de Mariazinha
porque Balduino tinha apenas dois baús, grandes, é
certo (de uns oitenta centimetros de comprimento), onde guardava
as suas caixas de fosforo. Mas a mulher insistia tanto, falava,
brigava, fazia cenas, que o Balduino decidiu adotar a solução
extrema, dois meses depois.
"Já faz sete meses que estamos casados. Nem sinal de
filho ainda. Quer dizer que Deus não abençoou mesmo
o nosso casamento. Ela me martiriza todo dia. Não compreende
a necessidade que eu sinto de ser artista, de criar alguma coisa,
um castelo feito com caixas de fósforo, por exemplo. Então,
o que é que eu estou fazendo nesta casa? Que vá às
favas o casamento".
Deve ter sido esse o pensamento de Balduino, pois logo depois ele
abandonou a mulher e voltou a residir com a mãe, viuva, com
a qual morava antes de casar-se. Não dramatizou o rompimento,
não discutiu, nem pediu ou impôs nada. Disse à
mulher que não poderiam viver juntos, que ela tambem voltasse
para a casa dos pais e ele continuaria dando-lhe uma pequena mesada,
do parco ordenado que recebia na selaria.
Não se sabe qual foi a reação da Mariazinha
diante da resolução do Balduino, porque se este, alma
simples e ingenua, contou todos os fatos acima narrados aos companheiros
de trabalho, ela não se abriu com ninguem.
O desfecho do caso não se fez esperar. Três dias depois
da separação, Mariazinha apareceu na selaria e pediu
para falar com o Balduino, num cantinho, longe dos ouvidos dos outros
empregados. Dizem que não conversaram mais de três
minutos. Um dos companheiros do Balduino, mais curioso, que não
despregara os olhos do casal, viu o rapaz balançar resolutamente
a cabeça, em sinal negativo, provavelmente diante de um pedido
de reconciliação da esposa. Imediatamente, Mariazinha,
desvairada, pegou em cima de uma mesa um instrumento de cortar couro,
afiadissimo, em forma de meia-lua, e cravou-o no pescoço
do Balduino, que não teve tempo de esboçar sequer
um gesto de defesa. Os companheiros acorreram rapidamente, mas nada
podiam fazer. O corte fora fundo, Balduino sangrava abundantemente
e morreu ali mesmo, poucos instantes depois.
A cidade comenta até hoje as razões do gesto de Mariazinha.
Para uns, foi a vaidade ferida, a vergonha de ter sido abandonada
e todo o mundo, onde viviam, saber isso. Outros acham que ela amava
realmente o marido e não poderia viver sem ele. Eu, por mim,
acho que foi vaidade, sim, vergonha tambem: mas vergonha por ter
sido vencida, na afeição do marido, por uma miseravel
caixinha de madeira, fragil e feia.
Todos os moradores da cidade onde se desenrolou o drama ficaram
profundamente consternados com a morte do Balduino. E, por iniciativa
dos companheiros de trabalho do assassinado, decidiram prestar-lhe
uma ultima homenagem, a mais significativa que puderam imaginar:
organizaram uma lista para custear o enterro. E mandaram fazer um
caixão com a forma, igualzinha, à de uma caixa de
fosforos.
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