O RETRATO OVAL

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 14 de fevereiro de 1937.

Neste texto foi mantida a grafia original

EDGAR ALLAN POE

Especial para a "Folha da Manhã"

O castello cuja porta de entrada meu creado ousára forçar, para que eu não passasse a noite ao relento, no estado lastimavel em que me encontrava, ferido, era um desses edificios de uma imponencia cheia de tristeza, que durante longos seculos se erigiram entre os montes Appeninos, tanto na realidade quanto na fantasia de "mistress" Radcliffe.
Segundo toda a apparencia, elle fôra abandonado por seus habitantes, não havia muito tempo.
Installamo-nos em uma sala pequena e das menos sumptuosamente guarnecidas. Ficava em uma torre bastante afastada do centro do edificio e mesmo assim mau grado seu estado de abandono e aspecto vetusto, sua decoração era rica. As paredes estavam cobertas com tapeçarias e panoplias varias, além de extraordinario numero de quadros modernos, na verdade, cheios de vida, em molduras luxuosas com arabescos dourados. Esses quadros —suspensos não somente nos pontos das paredes mais espaçosos e mais cheios de luz, mas tambem nos numerosos recantos formados pela singular architectura do castello —esses quadros— repito, por effeito, sem duvida, do estado de semi-delirio em que eu me encontrava, excitaram em mim uma especie de fascinação. Como já fosse noite, dei ordem a Pedro para fechar as pesadas janellas do quarto, accender todos os braços de um enorme candelabro, collocado junto de minha cabeceira e afastar largamente as cortinas de velludo negro com franjas, que envolviam o leito. Essas disposições tinham por fim permittir-me, caso não conseguisse dormir, ao menos examinar os quadros detalhadamente, com o auxilio de um opusculo, encontrado sobre o travesseiro e cujo assumpto era a critica e explicação desses quadros.
Fiquei, por algum tempo lendo, alheio a tudo o mais. Piedosamente erguia os olhos do livro e contemplava o quadro, cuja explicação já lêra.
As horas passaram rapidas e, finalmente, a meia noite bateu.
Como o candelabro não estivesse collocado a meu gosto, estendi a mão com cuidado para não perturbar o somno de meu creado e colloqueio-o de forma tal que elle lançava a luz mais directamente sobre o livro.
Porém esse meu gesto teve um effeito, que eu estava longe de prever. A luz das velas —pois eram muitas— cahia, agora, sobre um angulo do quadro até então mergulhado em espessas trevas, devido à cabeceira do leito, que era muito alta.
Um quadro, que eu ainda não vira, appareceu-me então inteiramente.
Era o retrato de um adolescente, quasi uma mulher. Envolvi todo quadro em um rapido olhar e, quasi em seguida, fechei os olhos.
Por que motivo? Não o compreendi immediatamente. Continuando com as palpebras cerradas, perguntava a mim mesmo por que as fechára. Fôra um movimento impulsivo, afim de ter tempo para reflectir, assegurar-me de que era victima de uma illusão visual... E tambem para acalmar minha imaginação e preparal-a para um exame mais detalhado e efficaz.
Ao fim de poucos instantes, fitei novamente o retrato.
Não podia mais duvidar do testemunho de meus olhos, porque o primeiro lampejo das velas sobre essa tela tivéra por effeito dissipar a estupefacção sonhadora em que meus sentidos estavam mergulhados e, de um só golpe, chamaram-me à vida normal.
O retrato, como já disse, era o de uma adolescente. Viam-se, apenas, a cabeça e os hombros, no estylo de Sully. Os braços e os seios e, mesmo, um pouco da luminosa cabelleira desappareciam insensivelmente na sombra vaga e tambem profunda, que constituia o fundo de téla. A moldura era oval, sumptuosamente dourada e filigranada, à maneira mourisca. Como obra de arte, não se podia sonhar coisa mais admirável. Mas não eram talvez, nem suas qualidades de execução nem a immortal belleza da retratada, que haviam determinado em mim uma emoção tão forte e repentina.
Podia, menos ainda, suppor que minha imaginação, sobresaltada em minha semi-somnolencia, tomára aquella physionomia pela de uma creatura viva. Notei logo que as particularidades do desenho, o aspecto do quadro, não deixariam de me afastar immediatamente de semelhante idéa, seriam mesmo sufficientes para me impedir admitttil-a, mesmo momentanea.
Reflectindo intensamente sobre esses diversos pontos, fiquei talvez uma hora, sentado no leito, com o olhar preso a esse retrato. Acabei de penetrar o verdadeiro segredo do effeito, que elle produzira sobre mim e deixei-me cahir, lentamente, sobre o travesseiro. Descobrira que a magia desse quadro consistia na expressão da vida absolutamente identica à propria vida.
Primeiramente eu estremecera e, depois, ficára confuso, dominado, petrificado. Presa de angustia profunda e respeitosa, voltei a collocar o candelabro em seu lugar primitivo. Tendo, assim, dissimulado a meus olhos o objecto de minha viva agitação, apanhei febrilmente o livro onde se falava nesse quadro e seu historico. Folheei-o até o numero, que correspondia ao retrato oval e li esse estranho e mysterioso comentario.
"- Era uma moça de rara belleza e caracter tão amavel, quão apurado. Sua "má hora" foi aquella em que conheceu, amou e desposou o pintor; elle, rude e apaixonado, trabalhador e já possuindo uma esposa: sua Arte. Ella, de rara belleza e um caracter tão amavel quão esmerado, toda luz e sorriso, alegre como um passaro. Para tudo tinha thesouros de amor, detestando apenas a arte, sua rival. Só temia as palhetas e os pinceis, todos esses instrumentos importunos, que afastaram della o pensamento do amado.
Assim, foi uma terrivel coisa para ella, quando o pintor lhe exprimiu o desejo de fazer seu retrato. Porém era humilde, submissa e durante varias semanas manteve-se sentada, muito quieta, na sombria e alta sala da torre, onde a luz só filtrava do alto, sobre a pallida tela. Porém elle, pintor acima de tudo, punha toda sua gloria em seu trabalho, que proseguia de hora em hora, de dia em dia. E era um homem apaixonado, genioso, taciturno e que se perdia, muitas vezes, em seus sonhos.
De tal forma que não notou, ou não quiz notar a acção malefica da luz, que cahia do alto, arruinando a saude e o espirito de sua esposa; todos a viam definhar, todos, menos elle.
No entanto, ella sorria sempre e sempre, sem o menor queixume, porque via o pintor cujo renome era grande, alegre e orgulhoso, trabalhar dia e noite com paixão febril no retrato daquela, que tanto amava.
Ai, d'ella! Cada dia mais sem forças, mais sem côr... Na verdade, os que vinham vêr o retrato confessavam em voz baixa que a semelhança era um milagre - provando não só o talento do pintor como seu grande amor por aquella, que pintava de modo tão maravilhoso...
Mas com o tempo, quando já a obra tocava a seu fim, ninguem mais foi admittido na torre; o pintor, no ardor incrivel de seu trabalho, não destacava mais do que raramente os olhos de sua tela, mesmo, afim de olhar para sua joven e linda esposa.
E não "queria" notar que as côres, que applicava sobre a tela, era como se as tirasse das faces da doce creatura, que se mantinha immovel, diante delle. E quando muitas semanas foram passadas e restava pouca coisa a fazer —um golpe leve do pincel sobre a bocca, um retoque nos olhos— a alma do modelo vacillou como a chamma de uma vela, que se extingue.
O golpe de pincel final foi dado e o pintor maravilhoso ficou, por alguns instantes, em extase, diante da obra admiravelmente perfeita; mas quando assim a contemplava, eis que um arrepio percorreu todo seu corpo e, muito pallido, elle exclamou:
"— Mas é a propria Vida!..."
Voltou-se rapidamente para a Amada.
"Ella estava morta..."

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