POR QUE BRIGAM OS ANIMAIS?


Publicado no Folha da Manhã, domingo, 28 de fevereiro de 1954

Neste texto foi mantida a grafia original


Há brigas entre os animais. Perseguido por um predador, é claro que o animal, por mais pacifico, luta, pois ninguem gosta de morrer sem mais nem menos na boca ou nas garras do inimigo. Mas esse tipo de luta não é o mais interessante, nem o mais frequente entre os animais. De muito maior sentido, tanto para o pesquisador ocupado no estudo do comportamento social dos animais, quanto para estes ultimos, é a luta que ocorre entre os animais da mesma especie, geralmente na epoca da reprodução (luta sexual) e menos vezes para assegurar o dominio dentro do grupo (luta hierarquica).

A luta da reprodução

A luta sexual varia de aspecto nas diversas especies. O comum é os animais, que brigam, tocarem-se uns nos outros, com a boca, as patas, os chifres, etc. Mas há casos em que a luta é à distancia, como acontece com certos peixes, que lançam jatos de agua uns contra os outros, procurando cada um atingir com a pancada da agua a "linha lateral" do rival (a linha lateral é uma serie de orgãos cutaneos, extremamente sensiveis); os jatos são produzidos por meio de pancadas que os peixes dão na agua, com a cauda. A luta sexual, apesar de frequente durante a epoca da procriação, raramente assume o carater de combate mortal, no qual os rivais se machuquem. Ela mais parece um combate simulado, ou uma competição esportiva, e muitas vezes não passa mesmo, de puro fingimento, de simples ameaça. Cada animal tem sua forma tipica de ameaça, que às vezes obedece a complicados rituais, envolvendo outras vezes a exibição de belos aspectos de seu corpo. A ameaça tanto pode expressar-se por atos dirigidos ao sentido da vista quanto por manifestações outras, endereçadas ao olfato (é para isso que os cães marcam de urina os postes e paredes; as hienas, as camurças e os antilopes depositam no chão, nas moitas, nos troncos, nas pedras, a secreção de glandulas especiais que possuem; o urso pardo esfrega as costas nas arvores, urinando ao mesmo tempo, etc.), ao ouvido (o canto das aves tanto serve para atrair as femeas, quanto para "ameaçar" e repelir os machos).

Quem briga?

Na grande maioria dos casos, quem toma parte na luta sexual são os machos, que só atacam outros machos da mesma especie. Em algumas especies as femeas tambem brigam, sempre porem com outras femeas, cabendo aos machos lutar entre si. Bem mais raros são os casos em que só as femeas lutam (algumas especies de aves).
A função evidente da luta sexual é evitar que dois rivais tomem conta do mesmo territorio. Desse modo os individuos da especie vão-se espaçando, cada qual estabelecendo o seu "territorio", que abrange o objeto central (a femea, a toca, o buraco) e uma area, maior ou menor, em torno dele. As opiniões divergem quanto ao verdadeiro fim do territorio. Em alguns casos ele parece garantir a provisão de alimentos para os filhos. Noutros, parece assegurar a defesa da prole contra os predadores. É curioso notar, a esse respeito, que quando a concentração de proles é muito grande (por exemplo, ninhos da mesma especie muito proximos) os predadores se "especializam" nesse material, tornando muito dificil a defesa dos perseguidos; esse fato tambem explica por que os animais que usam "camuflagem" são solitarios e espaçados.

Espaçar ou reunir?

Surge aqui um problema interessante. Vimos que o espaçamento tem suas vantagens. Mas por outro lado a vida social oferece lá seus indiscutiveis beneficios, não sendo poucos os animais que se reunem em grupos maiores que o da familia. Formam-se desse modo grandes associações de familias ou animais isolados, sem qualquer laços de parentesco. Tais agrupamentos são comuns entre os animais superiores, mas tambem se vêem entre os inferiores. Os beneficios decorrentes da vida coletiva são varios, em primeiro lugar o da melhor defesa contra os predadores; em grupo eles resistem e em grupo observam a aproximação dos inimigos. Allee estudou minuciosamente, e demonstrou, experimentalmente, os beneficios sociais da vida coletiva, assunto já aqui tratado noutra oportunidade: os peixinhos dourados comem mais e crescem mais rapidamente em grupo (o mais rapido crescimento não depende do maior consumo de alimento); certas planarias resistem melhor às variações de salinidade da agua quando em grupos; as baratas orientam-se melhor quando se encontram reunidas em grupos de duas ou três; certos micro-crustaceos são menos vulneraveis à ação dos predadores, que parecem confundir-se quando vêem muita presa junta.
Observando certas especies de gaivotas é possivel verificar que elas deram solução intermedia ao problema que propusemos: espaçar ou reunir? Desse modo colhem beneficios, embora não completos, de ambas as situações. E provam que o "in medio virtus" já erra delas conhecido, antes de o expressarmos nós em latim.

Por que brigar?

Em seu recente livro "Social Behaviour in Animals", Tinbergen procura descobrir as causas que determinam a luta sexual dos animais, que por sua vez lhes assegura os decididos beneficios do espaçamento territorial.
A luta limitada, ou contra qualquer animal, não poderia assegurar os beneficios que a especie colhe desse tipo de associação, pois acarretaria, aos que lutam, maiores probabilidades de se ferirem e invalidarem, e mesmo falta tempo para outras funções. Impõe-se, pois, sua restrição ao territorio e contra individuos que o invadem.
Segundo Tinbergen é o proprio rival quem fornece muitos dos estimulos exteriores que tornam possiveis os varios aspectos da coordenação que assegurar a luta naquelas condições de equilibrio, e não nestas outras, que seriam lesivas á especie.
O macho só ataca em seu territorio. Fora dele, foge do rival que nele atacaria. Para demonstrá-lo, Tinbergen imaginou interessante experiencia, que se faz em um aquario. Colocam-se os machos do peixinho "espinhudo" em tubos de ensaio; quando se mergulham os tubos no territorio do macho A, este assume atitude agressiva e o outro tenta fugir; em situação oposta, é B quem ataca e A quem foge. Não se sabe ainda por que cada animal escolhe este ou aquele territorio, mas perece certo que o escolhe principalmente tendo por base propriedades a que reage inatamente. Por isso os machos da mesma especie escolhem territorios semelhantes. Ocorre, porem, uma complicação: cada macho se apega ao seu proprio territorio, e isto já é resultado de um aprendizado, de um condicionamento; com efeito, o espinhudo mostra inata tendencia para escolher por territorio uma região de aguas razas e ricos de vegetação. Cada espinhudo, porem, uma vez eleito o territorio, por força desses impulsos naturais, afeiçoa-se a ele, que aprende a identificar por determinadas marcas (uma pedra, certa planta, etc.). Se mudarmos essas marcas, ele muda de territorio, seguindo-as. Os animais que reagem a algum objeto especial (um buraco, um molusco no qual depositem os ovos, por exemplo) em geral reagem de maneira inata a estimulos proporcionados por esse objeto, estimulos que podem ser visuais, quimicos ou outros quaisquer.

Quando brigar?

Tambem depende de fatores externos o "horario" das brigas. É claro que o impulso inicial para a luta é dado pelos hormonios sexuais, que dependem, através da hipofise, de fatores ritmicos, como o tamanho do dia. Os hormonios põem o animal em condições de brigar. Mas a hora exata da luta é determinada por estimulos externos, partidos do rival que se aproxima do territorio. Esses sinais têm dupla função: quando exibidos por um estranho, atiçam contra ele o atacado. Quando exibidos por um atacante em seu proprio territorio, intimidam o estranho. Com modelos é possivel reproduzir ambas as reações no mesmo individuo. E esses modelos não precisam de ser copias exatas dos animais, mas apenas ostentar algumas caracteristicas "marcas", segundo já referimos noutra ocasião (experiencias com o "espinhudo", o pintar-roxo, etc.) Tais marcas são encontradas tanto em vertebrados quanto em invertebrados, e são tão importantes que quando a femea apresenta qualquer sinal que com elas se pareça, passam a ser atadas pelos machos a que deveriam atrair.

A luta hierarquica

Os animais que vivem juntos encontram varias oportunidades de luta, afora as da reprodução. Assim, têm de lutar pelo alimento, pelo melhor abrigo, e por outros motivos. À custa de muitos choques eles aprendem a respeitar os mais fortes e assim se estabelece a ordem hierarquica, que é a ordem das bicadas, nos galinheiros. Todos já repararam que há, no bicar, uma certa disciplina. Existem aves que bicam mais e aves que são bicadas mais vezes que outras. A mais dominadora bica todas e não é incomodada por nenhuma outra. A seguir vem a "vice", que só é bicada pela primeira. E assim por diante. O fenomeno tem sido observado tambem em mamiferos e peixes.
Há nessa historia de "ordem das bicadas" muita sutileza que os zoologos vão descobrindo. Lorenz notou, por exemplo, que quando uma ave de baixa categoria na ordem de bicar é acasalada com um macho altamente colocado, passa automaticamente à condição dele. Ao contrario, porem, do que muitos supõem, a ordem de bicar não é o unico principio que orienta a organização social dos animais.
Em certas gralhas a submissão exprime-se de maneira curiosa: elas curvam-se para a frente e mostram a parte de trás da cabeça, precisamente a mais vulneravel do corpo, marcada aliás por uma area cinzenta clara. O resultado não se faz esperar: o rival para imediatamente, como se houvessem atirado agua ao fogo de seu instinto lutador. Desse modo estabelece-se ordem de prestigio e de posição social estavel na sociedade das referidas gralhas com um minimo de luta.
Entre esses animais formam-se uniões mais ou menos permanentes e a femea toma a posição social do macho, mas este nunca aceita uma femea que lhe seja superior na hierarquia social.

Lutar é cooperar...

E aqui termina a conversa sobre a luta entre os animais. Resta dizer, para bem resumir o que escreve Tinbergen em seu livro que a luta dentro da mesma especie não é, como pode parecer à primeira vista, manifestação de antagonismo, porem de cooperação. Ela não serve, é claro, aos interesses dos individuos, mas aos da especie. Os riscos que corre o individuo, nesses torneios, não são maiores que os encontrados na união sexual ou na defesa da prole. A utilidade da luta, para a especie, ficou demonstrada no que atrás dissemos a respeito do territorio e do espaçamento.


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