CORAÇÃO BATE BEM NO PEITO DE JOÃO
Rim
transplantado já funciona normalmente
Rio com o 1.o enxerto de pancreas no mundo
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Publicado
na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 27 de maio de 1968
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Neste texto foi mantida a grafia original
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RIO, 27 (Sucursal) - A medicina brasileira acaba de colher uma nova
vitoria, com a realização de uma operação
de transplante de pancreas, no Hospital Silvestre, na Guanabara.
A delicada intervenção cirurgica, a primeira do genero
no mundo, foi efetivada por uma equipe medica chefiada pelo cirurgião
Edson Teixeira, na madrugada de sabado e somente hoje divulgada à
imprensa. O Hospital Silvestre, ao confirmar esta manhã o exito
da intervenção, informou que o boletim medico, das 8
horas de hoje, atesta o excelente estado de saude do paciente, que
antes sofria de grave diabete.
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Há
15 dias, começava a ansiosa vigilia no HC |
No dia em que o governador Abreu Sodré começou a rolar
a bola de neve do transplante, dizendo que "era iminente a operação",
acabou o sossego do Hospital das Clinicas e se iniciou o suspense.
Depois, este tambem terminou e, em muitos momentos, durante a longa
vigilia da imprensa, houve alguns lances comicos.
Assim que a noticia foi divulgada, a Força Publica e a Guarda
Civil aproveitaram para marcar melhor sua presença.
A Guarda-Civil, como soube que o sr. Abreu Sodré gostaria de
assistir à operação colocou em serviço
de rotina guardas com uniformes de gala - de talabarte e espadim dourado
- para recepcionar o governador. E como não sabiam por qual
porta Sodré chegaria guarneceram todas as entradas do HC com
dois guardas em uniforme de festa.
A Força Publica não podia ficar atrás na assessoria
ao governador e colocou, na entrada principal do HC, uma viatura com
praças que tinham ordens - era voz corrente entre os reporteres
- de imediatamente avisar o titular da 4a. delegacia, para que, assim
que o transplante ocorresse, o delegado mandasse alguem buscar Sodré
no Palacio dos Bandeirantes.
Outra piada muito divulgada na longa vigilia dos jornalistas foi a
de que "o governador quer vir ao HC para dar o "corte inicial
da operação", numa evidente alusão ao "chute
inicial" com que as personalidades politicas frequentemente brindam
nosso futebol.
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Nem
interno se salvou |
Quando
os boatos sobre a realização do transplante atingiram
o auge, a Administração do HC, cansada das constantes
invasões ao hospital, resolveu não permitir a entrada
de jornalistas no saguão do HC. Foi o começo uma verdadeira
"guerra de nervos." O primeiro interno do HC que passou
pela barreira dos porteiros, de avental e livros debaixo do braço,
foi denunciado como "reporter". O porteiro correu atrás
do estudante, passou-lhe uma descompostura e exigiu que se identificasse.
O rapaz era interno realmente.
O segundo também foi perseguido pelos porteiros pois os jornalistas
afirmavam que "esse tambem é reporter." E era interno
tambem. Lá pelo 5.o ou 6.o jovem uniformizado que passou, o
porteiro não pediu mais identidade. E quem entrou foi um reporter.
Às 10 horas da manhã do 10.o dia da vigilia, apareceu
um rapaz de cor numa perua "Kombi", levando para o HC uma
pilha de revistas especializadas sobre Medicina. Quando o rapaz entrava
no hospital o batalhão de fotografos começou a simular
que tirava fotos e os reporteres a gritar "pega esse, que coração
de negro é bom para transplante." O crioulo não
teve duvida - largou as revistas na escada do hospital, entrou na
"perua" e foi embora correndo.
A verdade é que, desde a noticia da iminencia da operação
a população de São Paulo foi tomada por uma nova
doença: a psicose do transplante. Os n.o de acidentados registrados
no PS do Hospital das Clinicas diminuiu muito durante a vigilia da
imprensa. De 350 a 400 pessoas que davam entrada diariamente no Pronto-Socorro,
desde a noticia de que se esperava um doador para o Transplante, passaram
a ser atendidos cerca de 250 pessoas por dia. E a conclusão
que os medicos tiravam do fato é de que "ou o povo passou
a tomar mais cuidado na rua, evitando acidentes, ou ninguem mais quer
vir ao HC, com medo de perder o coração."
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Na
casa do cirurgião, a alegria do exito |
"Dona
Dirce Costa Zerbini está muito feliz com o êxito da operação
de transplante", é o que declarou d.a Iracema, empregada
há muitos anos na casa do primeiro brasileiro a realizar um
transplante de coração.
Segundo d.a Iracema, a esposa do dr. Zerbini tinha passado a noite
inteira em estado de "grande tensão nervosa", e por
isso não podia atender à imprensa. Descansava.
A residencia do famoso cirurgião foi, durante todo o domingo,
insistentemente assediada por jornalistas, despertando a atenção
dos vizinhos do dr. Zerbini, que procuravam, a todo o momento, colher
informações sobre o transplante e colaborar com os reporteres,
que tentavam conseguir uma entrevista com o cirurgião.
De camisa vermelha, oculos de grossas lentes, sorrindo, Roberto Zerbini,
um dos filhos do famoso cirurgião, declarou tendo ao lado dois
cães que latiam sem parar , - que tambem estava "muito
feliz" com o sucesso do pai. Mas lembrou que "ainda é
preciso algum tempo para que se saiba se o doente vai sobreviver".
Os outros dois filhos do dr. Zerbini não apareceram no jardim
da casa, mas D. Iracema assegurou que "êles tambem estão
bastante contentes com o exito do pai."
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No
futuro, um hospital só para transplantes |
Em 1971
os transplantes de coração em São Paulo poderão
ser feitos em um hospital especializado, de 10 andares, com 270 leitos,
que uma lei estadual criou há cinco anos e nos ultimos meses
começou a ser construido. É o instituto de Doenças
Cardio Pulmonares, que funcionará, junto ao Hospital das Clinicas
no campo de pesquisa e ensino, e promete ser o mais avançado
do mundo no setor de cirurgia cardiaca, cardiologia e doenças
pulmonares.
A remoção de terra e o estaqueamento do edificio começam
a ser preparados em uma grande area situada na avenida dr. Enéas
Carvalho de Aguiar, defronte ao Hospital das Clinicas. O prazo para
conclusão da obra é de 36 meses, mas o governo do Estado
demonstra interesse em conclui-la antes desse prazo.
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Diagnosticos
em computadores |
Construido
o predio, o governo deverá conceder verba para a compra de
equipamento, que será - segundo se anuncia - o que se conhece
de mais avançado. Computadores eletronicos auxiliarão
na obtenção de diagnosticos e em outras atividades do
hospital.
O estado de saude de doentes com enfarte do miocardio tambem serão
controlados por equipamento eletronico. Pacientes com essa doença
receberão tratamento intensivo em salas especiais.
Tecnicas avançadas serão utilizadas para a instalação
do centro cirurgico do Instituto.
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Equipe
do HC |
As equipes
dos setores de cirurgia cardiaca, cardiologia e doenças pulmonares
que atuam no Hospital das Clinicas - entre elas a do professor Zerbini
- passarão a trabalhar no Instituto de Doenças Cardio-Pulmonares.
No HC deverá ser mantido apenas um nucleo para ensino.
Alem do equipamento moderno que equipará o Instituto, os cirurgiões
contarão com materiais que o Hospital das Clinicas fabrica.
Em operações com circulação extra-corporea
(um aparelho coração-pulmão faz as vezes do coração
do paciente) os medicos usarão valvulas e peças especiais,
atualmente fabricadas pelo dr. Seigo Tsuzuki, no subsolo do Hospital
das Clinicas.
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Trafego
racionalizado |
Medicos
e pessoal especializado do Hospital das Clinicas assessoram o grupo
de arquitetos que planejou e vai construir o Instituto. Sucessivas
reuniões de arquitetos e medicos resultaram em novas concepções
de instalações hospitalares e racionalização
de metodos de serviço.
Os doentes dos ambulatorios, por exemplo, trafegarão somente
em um mandar do predio e não terão trafego nos demais
pavimentos. A circulação dos visitantes será
externa até os andares onde se encontrarão os pacientes
que podem receber visitas. Com isso o trafego de doentes e visitantes
não afetará o do pessoal e de enfermagem.
A disposição dos setores do Instituto, a partir do terreo,
será: parte experimental, ambulatorio, administração
e laboratorios especializados, centro cirurgico e emodinamico, residencia
para estagiarios - inclusive estrangeiros - e enfermeiras.
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Na
casa do irmão, um indisfarsavel orgulho |
"O
transplante que hoje aconteceu é fruto de trabalho, de pesquisa
e dedicação. Resultado normal de quem sempre confiou
obstinadamente no trabalho de equipe. Consequencia natural de quem
sempre compreendeu que o homem não nasce sozinho, que tem obrigações
para com o mundo e para com a sua gente".
Sem trair qualquer emoção, certo de que não poderia
ser outro o autor do primeiro transplante na America Latina, o general
(cassado pela Revolução) Euryale Jesus Zerbini, irmão
do medico Zerbini, recebe a noticia da operação realizada
pela madrugada no Hospital das Clinicas. Chama para seu lado o filho
Euricledes, enquanto confessa não ter podido manter muito contato
com o mano, pois trabalha numa industria do Interior, e só
passa os domingos em São Paulo.
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Coração
de menino abre caminho |
O general
Zerbini não se cansa de repetir que sobre uma equipe de homens
capazes repousam todos os sucessos do irmão. "E é
assim que ele tem encarado as repetidas situações".
E relembra o primeiro sucesso do irmão no campo da cirurgia
cardiaca. Foi na Santa Casa de Misericordia, onde era medico, antes
de 1940. Um menino, atingido por estilhaços de aço,
no coração, estava entre a vida e a morte. A operação
tinha de ser tentada.
"Sua especialidade era cirurgia toracica. Mas era uma vida humana,
ainda jovem, em suas mãos. A operação tinha de
ser tentada. O desafio foi aceito. O menino foi salvo. Seus recursos
tecnicos, valendo-se dos movimentos das mãos, num campo operatorio
inundado de sangue, o corpo estranho foi retirado".
Era o primeiro grande milagre conseguido pelo jovem medico Zerbini.
À sua frente, abria-se um outro campo, que terminaria por consagrá-lo.
"Aqui, no Brasil, e em países sulamericanos, há
milhares de corações que continuam pulsando, graças
ao trabalho de uma equipe dedicada, estudiosa, pesquisadora, da qual
o meu irmão faz parte".
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O
homem solidário |
Na quietude
do bairro do Pacaembu, onde mora, o general Euryale Zerbini fala sôbre
o irmão mundialmente famoso, não devido apenas ao transplante.
Relembra os tempos duros de estudante, das madrugadas mal dormidas
sôbre os livros.
"Desde pequeno, jamais pensou em ser outra coisa que não
em ser médico. Por tradição de família,
deveria ser militar, ou advogado. Mas êle, como já acontecera
com o Euripedes, o mais velho, preferiu a medicina. E a adotou como
sacerdócio. Depois de especializar-se nos Estados Unidos, lançou-se
de corpo e alma no trabalho que terminaria por consagra-lo".
Para o general, o médico Zerbini não é um homem
timido.
"É humilde. Faz as coisas mais sérias, com a naturalidade
de quem encara a vida com seriedade. Se fôsse timido, não
aceitaria os desafios que diariamente lhe são antepostos".
E acrescenta: "É, sim, um homem que tem grande aprêço
pela vida humana. Vive em estado constante de emoção.
Em cada tentativa de salvar uma vida, deixa no trabalho um pouco da
sua. Inclusive nas experiências repetidas que fez em cães.
Muitas vezes referia-se ao sacrificio do animal com a dor estampada
nos olhos, apesar de saber, como provou, que cada sacrificio daqueles
era um passo adiante no caminho dificil do transplante do coração
no homem".
E mais: "Eurycledes jamais recusou um doente. Rica ou pobre,
era uma vida em jôgo. Eu mesmo, encaminhei quando no Exército,
dezenas de doentes, do Amazonas ao Sul do país, para meu irmão.
Outros militares fizeram o mesmo. E Zerbini jamais deixou de os atender,
colocando fora de perigo a quase totalidade".
O médico Eurycledes de Jesus Zerbini está hoje com 56
anos de idade. Acorda, diariamente, às 6 horas da manhã
e trabalha até as 20 horas. As operações que
faz, duram, em média, de 6 a 8 horas. Não tem tempo
para manter vida social. Nas folgas, vai para o campo em companhia
de espôsa e filhos.
"Pena é que mamãe não possa ter assistido
ao maior sucesso do filho. Imagino o que meu pai, com 93 anos de idade,
não deve estar sentindo hoje. Ele, que nos transmitiu a imagem
de que o "homem vale pelo seu esfôrço e trabalho",
deve agora, se algo lhe faltasse ainda, sentir-se inteiramente realizado".
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A
marca no homem |
Eurípedes,
Euryale e Eurycledes", foram irmãos sempre unidos. Até
mesmo quando houve convulsão maior no país. Em 1932,
combateram pela reconstitucionalização do país,
quase sempre em trincheiras vizinhas. Esse tempo, contudo, passou,
não deixando marcas em nenhum deles.
A grande marca, na vida do médico Zerbini, talvez tenha sido
a morte do irmão mais velho. "Eurípedes contraiu
de uma cliente encefalite letárgica. Tôdas as tentativas
para salvá-lo foram inuteis. Terminou por morrer em 1946".
Daí para diante, a vida do médico Eurycledes de Jesus
Zerbini foi mais que trabalho. Passou a ser um sacerdócio.
A ponto de sua cunhada, dona Therezinha, espôsa do general Euryale
afirmar que "seu trabalho é uma função eminentemente
social. Zerbini é um instrumento da vontade de Deus. Como católicos,
é assim que o consideramos. E é assim que êle
considera o exercício da medicina. A vida de seu semelhante
jamais foi medida em preço. Por isso, o transplante do coração,
o primeiro da América Latina, veio a ser feito, naturalmente,
por suas mãos".
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"Ele
ergueu os olhos e me fitou" |
Dona Clarisse Ferrarini, diretora de enfermagem do HC estava sorridente
ao deixar o centro cirurgico, pouco depois das 12 horas.
"Fiquei emocionada e me senti importante o tempo todo" -
foi a primeira coisa que disse. E declarou: "acredito no sucesso
absoluto do transplante porque foram feitos com muita tecnica e nos
deixaram grande chance de exito".
A diretora de enfermagem coordenou o movimento das duas equipes que
realizaram os transplantes: a do dr. Zerbini que transplantou o coração
e a do dr. Campos Freire, que cuidou do enxerto do rim.
"Nossa movimentação foi muito grande e a cada passo
eu telefonava para o dr. Geraldo (diretor do HC) para informá-lo"
- disse dona Clarisse. Ao conversar com os reporteres no saguão
do andar da diretoria, dona Clarisse segurava nos braços os
graficos de eletroencefalograma do receptor do coração.
Os graficos foram exibidos, a portas fechadas, para o diretor do HC.
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As
enfermeiras |
Como dona
Clarisse, que foi chamada em casa, quando se preparava para deitar,
as enfermeiras de sua equipe começaram a trabalhar cedo, esta
madrugada. Dona Minervina Zogbi Ribeiro Mello, supervisora do centro
cirurgico há 12 anos, deixou o HC às 13 horas, depois
de 21 horas de trabalho.
Trazia nas mãos seu avental com autografos dos cirurgiões-chefes
das equipes e do governador Abreu Sodré. "A emoção
foi tão grande e o serviço tão rapido que não
dá nem para falar" - disse aos reporteres que a cercaram.
Na sala onde os cirurgiões operaram o doador trabalharam três
enfermeiras: Neide de Fátima, instrumentadora; Luzia, circulante;
e Elizabeth Coimbra do Prado, enfermeira chefe. Na sala onde o receptor
recebeu o coração transplantado atuaram Doralice Constancia,
circulante; Neide de Fátima, instrumentadora; e Tazuko Nizima,
enfermeira chefe. O enfermeiro Gilberto cuidou da maquina coração-pulmão
e Doralice Cardoso, quimica, fez a dosagem de sangue.
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"Ergueu
os olhos e me fitou" |
Dona Clarisse
Ferrarini, a diretora de enfermagem, abre um grande sorriso para contar:
"Agora pouco (eram 12 horas) o moço que recebeu o coração
abriu os olhos, ergueu-os lentamente e me fitou".
A diretora de enfermagem, como dona Minvervina, a supervisora do centro
cirurgico, informaram que o receptor do coração deixou
a sala de cirurgia com reflexos motores. Disseram ainda que o rim
transplantado começou a funcionar três minutos antes
de enxertado.
Um detalhe que dona Clarisse acha pitoresco: pouco antes de começar
a ser preparado para receber seu novo coração, João
Ferreira da Cunha ouvia uma guarania pelo radio.
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Para
Sodré foi um "momento histórico" |
No Hospital
das Clínicas, o governador Abreu Sodré declarou não
ter sido colhido de surpresa, pois estava perfeitamente a par do que
ia acontecer.
"Eu tive a honra de ser hoje acordado às 5 horas da manhã,
por determinação do dr. Zerbini, com quem tive muitos
contatos para participar, como governador do Estado, desse momento
historico para o Brasil".
Sodré disse que só foi às Clinicas no fim da
operação: não queria prejudicar o trabalho, mas
estava em contato com o superintendente do HC de 15 em 15 minutos.
"Depois, vim trazer um abraço do povo brasileiro a este
cientista do nosso país, deste Brasil que demonstra extraordinario
grau de evolução nas ciencias medicas".
"Saio hoje daqui como brasileiro, orgulhoso dos medicos de São
Paulo pelo que acabam de fazer".
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Telegrama
ao presidente |
Ao presidente
Costa e Silva, o governador Abreu Sodré enviou o seguinte telegrama:
"Tenho satisfação e orgulho de transmitir Vossencia
exito primeira operação transplante cardiaco realizada
hoje Hospital Clínicas S. Paulo. Foi doador pessoa sexo masculino,
desconhecido, e receptor, J. F. C. também do sexo masculino.
Na mesma oportunidade¸ sendo o mesmo doador, realizou-se outro
transplante renal, tendo como receptor pessoal do sexo feminino.
Comunico ainda V. Exa que intervenções se realizaram
sob responsabilidade das equipes dos ilustres cientistas profs. Euryclides
de Jesus Zerbini, Luiz V. Decourt e Geraldo de Campos Freire. Este
é grande feito ciencia medica brasileira que tem recebido Vossencia
apoio inestimavel.
Expresso finalmente Vossencia jubilo governo e povo paulistas mais
esse feito que significa e enaltece cientistas nosso país".
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O
transplante, minuto a minuto |
As equipes
chefiadas pelos medicos Euryclides de Jesus Zerbini (transplante do
coração) e Geraldo de Campos Freire (transplante do
rim) foram mobilizadas quatro vezes desde a tarde de sabado até
a madrugada de ontem quando realizaram o transplante duplo no Hospital
das Clinicas.
Nas primeiras vezes, os medicos conseguiram salvar os doadores - três
acidentados com traumatismo craniano - e os transplantes (coração
e rim) não foram feitos. Na quarta vez, entretanto, o doador
- um jovem vitima de atropelamento - morreu e o transplante duplo
foi realizado em beneficio de dois receptores: João Ferreira
da Cunha (coração) e Mercedes Scudeiro Leme (rim).
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As
equipes |
Às
13 h 30 de sabado, as equipes dos medicos Euriclydes de Jesus Zerbini
e Geraldo de Campos Freire foram mobilizadas pela primeira vez neste
fim de semana. Um homem, que sofrera desastre de automovel, chegou
em estado de coma no Pronto-Socorro do Hospital das Clinicas.
Exames de laboratorio revelaram que o seu tipo de sangue era compativel
com o dos receptores do coração e do rim. Duas horas
depois, entretanto, o acidentado foi salvo. Entre os medicos que lutaram
para salvá-lo estavam alguns das equipes de transplante.
Às 17 horas ocorreu a segunda mobilização das
equipes dos medicos Euriclydes de Jesus Zerbini e Geraldo de Campos
Freire. Uma outra vitima de desastre automobilistico - um homem de
meia idade - chegava , também em estado de coma, ao Hospital
das Clinicas.
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Tipo
de sangue |
Mais uma
vez o tipo de sangue do doador era compatível com o dos receptores.
Mas, mais uma vez, os transplantes foram adiados porque os medicos
conseguiram salvar a vida do acidentado.
Às 18 h 30 - a terceira mobilização das equipes
de transplantes. Repetia-se a causa do ferimento - desastre de automovel
- desta vez num homem de menos de trinta anos. Pela terceira vez,
no sabado, o doador foi salvo e os transplantes não foram feitos.
O Hospital das Clinicas mantem sigilo sobre a identidade destes três
homens. Um medico, que ajudou a salvar os três, revelou apenas
a causa dos ferimentos e a idade aproximada dos acidentados.
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Atropelado |
Às
4h30 as duas equipes se reuniram no HC pela quarta vez e 25 minutos
depois começaram a se preparar para fazer os dois transplantes:
o do coração para João Ferreira da Cunha e o
do rim para Mercedes Seudeiro Leme.
Pouco antes das 4h30 um jovem, que havia sido atropelado, chegava
em estado grave, com traumatismo craniano, no Pronto-Socorro do Hospital
das Clinicas.
Às 4h30 foram mobilizadas as equipes dos medicos Euryclides
de Jesus Zerbini e Geraldo de Campos Freire. Exames de laboratorio
revelaram que os dois transplantes - coração e rim -
seriam possiveis.
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O
doador |
Os medicos
lutavam para salvar a vida do doador - um jovem cuja identidade não
foi revelada. Às 4h55 as equipes de transplantes e os receptores
já estavam preparados.
Às 6h15 o jovem acidentado sofreu a morte real. É a
chamada morte da personalidade, que se traduz pela presença
da linha isoeletrica cerebral continua ou difusa (silencio cerebral).
O cerebro morrera. Para confirmar a morte real, o dr. Paulo Vaz de
Arruda fêz os estimulos sonoros, luminosos, mecanicos (dolorosos)
e quimicos. O cerebro não reagiu, não acusou nada.
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A
morte |
A morte do jovem acidentado foi observada, primeiro, pelo dr. Fulvio
Pileggi. Este medico informou que o coração parara de
bater.
O corpo do jovem foi entregue ao dr. Paulo Vaz de Arruda que, para
constatar a morte real, fêz estes estimulos:
Sonoros: um aparelho especial produziu frequencia sonora diversa até
3.500 ciclos por segundo.
Luminosos: Um aparelho - o estroboscopio - produziu luz intermitente
(que pisca) em intensidade e frequencia variavel. Esta luz é
tão sensivel que pode causar desmaio e ataque se não
for controlada.
Mecanicos: são os estimulos tambem chamados dolorosos (beliscões,
trações nos musculos e outros).
Quimicos: injeção de drogas estimulantes nas veias.
Uma das drogas aplicadas foi o Metrasol que estimula o cerebro e o
faz reagir se ainda houver vida.
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Exames |
Enquanto
estes exames estimulantes eram feitos, tomava-se o traçado
eletroencefalografico. Durante dez minutos a linha do traçado
se manteve isoeletrica: reta, horizontal, fixa. Se ela se movesse,
num momento apenas, então haveria vida.
Mas, o cerebro não reagiu a nada. O jovem acidentado estava
realmente morto. Morrera o cerebro (morte real ou chamada morte clinica).
Morreram os orgãos. Morreram todos os orgãos um por
um. O dr. Paulo Vaz de Arruda explica como morrem os orgãos.
- Primeiro morre o cerebro - a peça mais nobre do corpo humano.
No cerebro, primeiro morre o cortex cerebral. Depois, o tronco cerebral.
Após a morte do cerebro, começam a morrer os orgãos.
O coração é o ultimo orgão a morrer. Mas,
tudo, geralmente, morre em minutos. Constata-se a morte do cerebro
com o eletroencefalograma (que acusa o resultado de todos os estimulos)
e a do coração com o eletrocardiograma. Quando tudo
morre o transplante pode começar.
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Transplante |
Às
6 h 25 começou o transplante do coração. O orgão
foi retirado do jovem acidentado e colocado num receptaculo que contem
uma substancia quimica especial. Neste receptaculo o coração
se mantem biologicamente vivo durante alguns minutos.
Às 6 h 40 João Ferreira da Cunha recebia o coração
do jovem acidentado. Depois, a cirurgia que durou até as 10
h 25.
Às 6 h 50 Mercedes Scudeiro Leme recebia o rim do jovem acidentado.
Depois, a parte cirurgica do transplante renal que foi até
às 9h 30.
Estava feito o primeiro transplante de coração no Brasil
e o 24.o de rim.
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Um
médico |
Quem confirma
se o doador está morto, no Hospital das Clinicas, é
o dr. Paulo Vaz de Arruda. Foi ele quem liberou o corpo do jovem acidentado
para as equipes dos medicos Euryclides Jesus Zerbini e Geraldo de
Campos Freire realizarem os transplantes do coração
e do rim.
40 anos, casado com da. Teresa Vaz de Arruda, o dr. Paulo Vaz de Arruda
é medico desde 1953, formado pela Faculdade de Medicina da
USP. É psiquiatra e neuro-fisiologista. Assistente da Clinica
Psiquiatrica da Faculdade de Medicina, Chefe do Serviço de
Eletroencefalografia do Hospital das Clinicas e professor de Psico-neurofisiologia
da Santa Casa. Estagiou nos Estados Unidos durante dois anos.
Atrás dos grossos bigodes, roupa esporte, três horas
depois do transplante, o dr. Paulo Vaz de Arruda sorria, no seu apartamento,
feliz com o resultado dos dois transplantes. Sobre outros tipos de
transplantes acha que o do figado ocorrerá dentro de dois anos.
Quanto ao do cerebro, diz:
- "É dificil falar nisso por enquanto. Só se a
tecnica mudar e evoluir muito. É cedo para se pensar nisso
ainda".
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