CORAÇÃO BATE BEM NO PEITO DE JOÃO


Rim transplantado já funciona normalmente

Rio com o 1.o enxerto de pancreas no mundo

Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 27 de maio de 1968

Neste texto foi mantida a grafia original

RIO, 27 (Sucursal) - A medicina brasileira acaba de colher uma nova vitoria, com a realização de uma operação de transplante de pancreas, no Hospital Silvestre, na Guanabara.
A delicada intervenção cirurgica, a primeira do genero no mundo, foi efetivada por uma equipe medica chefiada pelo cirurgião Edson Teixeira, na madrugada de sabado e somente hoje divulgada à imprensa. O Hospital Silvestre, ao confirmar esta manhã o exito da intervenção, informou que o boletim medico, das 8 horas de hoje, atesta o excelente estado de saude do paciente, que antes sofria de grave diabete.

Há 15 dias, começava a ansiosa vigilia no HC

No dia em que o governador Abreu Sodré começou a rolar a bola de neve do transplante, dizendo que "era iminente a operação", acabou o sossego do Hospital das Clinicas e se iniciou o suspense. Depois, este tambem terminou e, em muitos momentos, durante a longa vigilia da imprensa, houve alguns lances comicos.
Assim que a noticia foi divulgada, a Força Publica e a Guarda Civil aproveitaram para marcar melhor sua presença.
A Guarda-Civil, como soube que o sr. Abreu Sodré gostaria de assistir à operação colocou em serviço de rotina guardas com uniformes de gala - de talabarte e espadim dourado - para recepcionar o governador. E como não sabiam por qual porta Sodré chegaria guarneceram todas as entradas do HC com dois guardas em uniforme de festa.
A Força Publica não podia ficar atrás na assessoria ao governador e colocou, na entrada principal do HC, uma viatura com praças que tinham ordens - era voz corrente entre os reporteres - de imediatamente avisar o titular da 4a. delegacia, para que, assim que o transplante ocorresse, o delegado mandasse alguem buscar Sodré no Palacio dos Bandeirantes.
Outra piada muito divulgada na longa vigilia dos jornalistas foi a de que "o governador quer vir ao HC para dar o "corte inicial da operação", numa evidente alusão ao "chute inicial" com que as personalidades politicas frequentemente brindam nosso futebol.

Nem interno se salvou

Quando os boatos sobre a realização do transplante atingiram o auge, a Administração do HC, cansada das constantes invasões ao hospital, resolveu não permitir a entrada de jornalistas no saguão do HC. Foi o começo uma verdadeira "guerra de nervos." O primeiro interno do HC que passou pela barreira dos porteiros, de avental e livros debaixo do braço, foi denunciado como "reporter". O porteiro correu atrás do estudante, passou-lhe uma descompostura e exigiu que se identificasse. O rapaz era interno realmente.
O segundo também foi perseguido pelos porteiros pois os jornalistas afirmavam que "esse tambem é reporter." E era interno tambem. Lá pelo 5.o ou 6.o jovem uniformizado que passou, o porteiro não pediu mais identidade. E quem entrou foi um reporter.
Às 10 horas da manhã do 10.o dia da vigilia, apareceu um rapaz de cor numa perua "Kombi", levando para o HC uma pilha de revistas especializadas sobre Medicina. Quando o rapaz entrava no hospital o batalhão de fotografos começou a simular que tirava fotos e os reporteres a gritar "pega esse, que coração de negro é bom para transplante." O crioulo não teve duvida - largou as revistas na escada do hospital, entrou na "perua" e foi embora correndo.
A verdade é que, desde a noticia da iminencia da operação a população de São Paulo foi tomada por uma nova doença: a psicose do transplante. Os n.o de acidentados registrados no PS do Hospital das Clinicas diminuiu muito durante a vigilia da imprensa. De 350 a 400 pessoas que davam entrada diariamente no Pronto-Socorro, desde a noticia de que se esperava um doador para o Transplante, passaram a ser atendidos cerca de 250 pessoas por dia. E a conclusão que os medicos tiravam do fato é de que "ou o povo passou a tomar mais cuidado na rua, evitando acidentes, ou ninguem mais quer vir ao HC, com medo de perder o coração."

Na casa do cirurgião, a alegria do exito

"Dona Dirce Costa Zerbini está muito feliz com o êxito da operação de transplante", é o que declarou d.a Iracema, empregada há muitos anos na casa do primeiro brasileiro a realizar um transplante de coração.
Segundo d.a Iracema, a esposa do dr. Zerbini tinha passado a noite inteira em estado de "grande tensão nervosa", e por isso não podia atender à imprensa. Descansava.
A residencia do famoso cirurgião foi, durante todo o domingo, insistentemente assediada por jornalistas, despertando a atenção dos vizinhos do dr. Zerbini, que procuravam, a todo o momento, colher informações sobre o transplante e colaborar com os reporteres, que tentavam conseguir uma entrevista com o cirurgião.
De camisa vermelha, oculos de grossas lentes, sorrindo, Roberto Zerbini, um dos filhos do famoso cirurgião, declarou tendo ao lado dois cães que latiam sem parar , - que tambem estava "muito feliz" com o sucesso do pai. Mas lembrou que "ainda é preciso algum tempo para que se saiba se o doente vai sobreviver".
Os outros dois filhos do dr. Zerbini não apareceram no jardim da casa, mas D. Iracema assegurou que "êles tambem estão bastante contentes com o exito do pai."

No futuro, um hospital só para transplantes

Em 1971 os transplantes de coração em São Paulo poderão ser feitos em um hospital especializado, de 10 andares, com 270 leitos, que uma lei estadual criou há cinco anos e nos ultimos meses começou a ser construido. É o instituto de Doenças Cardio Pulmonares, que funcionará, junto ao Hospital das Clinicas no campo de pesquisa e ensino, e promete ser o mais avançado do mundo no setor de cirurgia cardiaca, cardiologia e doenças pulmonares.
A remoção de terra e o estaqueamento do edificio começam a ser preparados em uma grande area situada na avenida dr. Enéas Carvalho de Aguiar, defronte ao Hospital das Clinicas. O prazo para conclusão da obra é de 36 meses, mas o governo do Estado demonstra interesse em conclui-la antes desse prazo.

Diagnosticos em computadores

Construido o predio, o governo deverá conceder verba para a compra de equipamento, que será - segundo se anuncia - o que se conhece de mais avançado. Computadores eletronicos auxiliarão na obtenção de diagnosticos e em outras atividades do hospital.
O estado de saude de doentes com enfarte do miocardio tambem serão controlados por equipamento eletronico. Pacientes com essa doença receberão tratamento intensivo em salas especiais.
Tecnicas avançadas serão utilizadas para a instalação do centro cirurgico do Instituto.

Equipe do HC

As equipes dos setores de cirurgia cardiaca, cardiologia e doenças pulmonares que atuam no Hospital das Clinicas - entre elas a do professor Zerbini - passarão a trabalhar no Instituto de Doenças Cardio-Pulmonares. No HC deverá ser mantido apenas um nucleo para ensino.
Alem do equipamento moderno que equipará o Instituto, os cirurgiões contarão com materiais que o Hospital das Clinicas fabrica. Em operações com circulação extra-corporea (um aparelho coração-pulmão faz as vezes do coração do paciente) os medicos usarão valvulas e peças especiais, atualmente fabricadas pelo dr. Seigo Tsuzuki, no subsolo do Hospital das Clinicas.

Trafego racionalizado

Medicos e pessoal especializado do Hospital das Clinicas assessoram o grupo de arquitetos que planejou e vai construir o Instituto. Sucessivas reuniões de arquitetos e medicos resultaram em novas concepções de instalações hospitalares e racionalização de metodos de serviço.
Os doentes dos ambulatorios, por exemplo, trafegarão somente em um mandar do predio e não terão trafego nos demais pavimentos. A circulação dos visitantes será externa até os andares onde se encontrarão os pacientes que podem receber visitas. Com isso o trafego de doentes e visitantes não afetará o do pessoal e de enfermagem.
A disposição dos setores do Instituto, a partir do terreo, será: parte experimental, ambulatorio, administração e laboratorios especializados, centro cirurgico e emodinamico, residencia para estagiarios - inclusive estrangeiros - e enfermeiras.

Na casa do irmão, um indisfarsavel orgulho

"O transplante que hoje aconteceu é fruto de trabalho, de pesquisa e dedicação. Resultado normal de quem sempre confiou obstinadamente no trabalho de equipe. Consequencia natural de quem sempre compreendeu que o homem não nasce sozinho, que tem obrigações para com o mundo e para com a sua gente".
Sem trair qualquer emoção, certo de que não poderia ser outro o autor do primeiro transplante na America Latina, o general (cassado pela Revolução) Euryale Jesus Zerbini, irmão do medico Zerbini, recebe a noticia da operação realizada pela madrugada no Hospital das Clinicas. Chama para seu lado o filho Euricledes, enquanto confessa não ter podido manter muito contato com o mano, pois trabalha numa industria do Interior, e só passa os domingos em São Paulo.

Coração de menino abre caminho

O general Zerbini não se cansa de repetir que sobre uma equipe de homens capazes repousam todos os sucessos do irmão. "E é assim que ele tem encarado as repetidas situações".
E relembra o primeiro sucesso do irmão no campo da cirurgia cardiaca. Foi na Santa Casa de Misericordia, onde era medico, antes de 1940. Um menino, atingido por estilhaços de aço, no coração, estava entre a vida e a morte. A operação tinha de ser tentada.
"Sua especialidade era cirurgia toracica. Mas era uma vida humana, ainda jovem, em suas mãos. A operação tinha de ser tentada. O desafio foi aceito. O menino foi salvo. Seus recursos tecnicos, valendo-se dos movimentos das mãos, num campo operatorio inundado de sangue, o corpo estranho foi retirado".
Era o primeiro grande milagre conseguido pelo jovem medico Zerbini. À sua frente, abria-se um outro campo, que terminaria por consagrá-lo.
"Aqui, no Brasil, e em países sulamericanos, há milhares de corações que continuam pulsando, graças ao trabalho de uma equipe dedicada, estudiosa, pesquisadora, da qual o meu irmão faz parte".

O homem solidário

Na quietude do bairro do Pacaembu, onde mora, o general Euryale Zerbini fala sôbre o irmão mundialmente famoso, não devido apenas ao transplante. Relembra os tempos duros de estudante, das madrugadas mal dormidas sôbre os livros.
"Desde pequeno, jamais pensou em ser outra coisa que não em ser médico. Por tradição de família, deveria ser militar, ou advogado. Mas êle, como já acontecera com o Euripedes, o mais velho, preferiu a medicina. E a adotou como sacerdócio. Depois de especializar-se nos Estados Unidos, lançou-se de corpo e alma no trabalho que terminaria por consagra-lo".
Para o general, o médico Zerbini não é um homem timido.
"É humilde. Faz as coisas mais sérias, com a naturalidade de quem encara a vida com seriedade. Se fôsse timido, não aceitaria os desafios que diariamente lhe são antepostos".
E acrescenta: "É, sim, um homem que tem grande aprêço pela vida humana. Vive em estado constante de emoção. Em cada tentativa de salvar uma vida, deixa no trabalho um pouco da sua. Inclusive nas experiências repetidas que fez em cães. Muitas vezes referia-se ao sacrificio do animal com a dor estampada nos olhos, apesar de saber, como provou, que cada sacrificio daqueles era um passo adiante no caminho dificil do transplante do coração no homem".
E mais: "Eurycledes jamais recusou um doente. Rica ou pobre, era uma vida em jôgo. Eu mesmo, encaminhei quando no Exército, dezenas de doentes, do Amazonas ao Sul do país, para meu irmão. Outros militares fizeram o mesmo. E Zerbini jamais deixou de os atender, colocando fora de perigo a quase totalidade".
O médico Eurycledes de Jesus Zerbini está hoje com 56 anos de idade. Acorda, diariamente, às 6 horas da manhã e trabalha até as 20 horas. As operações que faz, duram, em média, de 6 a 8 horas. Não tem tempo para manter vida social. Nas folgas, vai para o campo em companhia de espôsa e filhos.
"Pena é que mamãe não possa ter assistido ao maior sucesso do filho. Imagino o que meu pai, com 93 anos de idade, não deve estar sentindo hoje. Ele, que nos transmitiu a imagem de que o "homem vale pelo seu esfôrço e trabalho", deve agora, se algo lhe faltasse ainda, sentir-se inteiramente realizado".

A marca no homem

Eurípedes, Euryale e Eurycledes", foram irmãos sempre unidos. Até mesmo quando houve convulsão maior no país. Em 1932, combateram pela reconstitucionalização do país, quase sempre em trincheiras vizinhas. Esse tempo, contudo, passou, não deixando marcas em nenhum deles.
A grande marca, na vida do médico Zerbini, talvez tenha sido a morte do irmão mais velho. "Eurípedes contraiu de uma cliente encefalite letárgica. Tôdas as tentativas para salvá-lo foram inuteis. Terminou por morrer em 1946".
Daí para diante, a vida do médico Eurycledes de Jesus Zerbini foi mais que trabalho. Passou a ser um sacerdócio. A ponto de sua cunhada, dona Therezinha, espôsa do general Euryale afirmar que "seu trabalho é uma função eminentemente social. Zerbini é um instrumento da vontade de Deus. Como católicos, é assim que o consideramos. E é assim que êle considera o exercício da medicina. A vida de seu semelhante jamais foi medida em preço. Por isso, o transplante do coração, o primeiro da América Latina, veio a ser feito, naturalmente, por suas mãos".

"Ele ergueu os olhos e me fitou"

Dona Clarisse Ferrarini, diretora de enfermagem do HC estava sorridente ao deixar o centro cirurgico, pouco depois das 12 horas.
"Fiquei emocionada e me senti importante o tempo todo" - foi a primeira coisa que disse. E declarou: "acredito no sucesso absoluto do transplante porque foram feitos com muita tecnica e nos deixaram grande chance de exito".
A diretora de enfermagem coordenou o movimento das duas equipes que realizaram os transplantes: a do dr. Zerbini que transplantou o coração e a do dr. Campos Freire, que cuidou do enxerto do rim.
"Nossa movimentação foi muito grande e a cada passo eu telefonava para o dr. Geraldo (diretor do HC) para informá-lo" - disse dona Clarisse. Ao conversar com os reporteres no saguão do andar da diretoria, dona Clarisse segurava nos braços os graficos de eletroencefalograma do receptor do coração. Os graficos foram exibidos, a portas fechadas, para o diretor do HC.


As enfermeiras

Como dona Clarisse, que foi chamada em casa, quando se preparava para deitar, as enfermeiras de sua equipe começaram a trabalhar cedo, esta madrugada. Dona Minervina Zogbi Ribeiro Mello, supervisora do centro cirurgico há 12 anos, deixou o HC às 13 horas, depois de 21 horas de trabalho.
Trazia nas mãos seu avental com autografos dos cirurgiões-chefes das equipes e do governador Abreu Sodré. "A emoção foi tão grande e o serviço tão rapido que não dá nem para falar" - disse aos reporteres que a cercaram.
Na sala onde os cirurgiões operaram o doador trabalharam três enfermeiras: Neide de Fátima, instrumentadora; Luzia, circulante; e Elizabeth Coimbra do Prado, enfermeira chefe. Na sala onde o receptor recebeu o coração transplantado atuaram Doralice Constancia, circulante; Neide de Fátima, instrumentadora; e Tazuko Nizima, enfermeira chefe. O enfermeiro Gilberto cuidou da maquina coração-pulmão e Doralice Cardoso, quimica, fez a dosagem de sangue.

"Ergueu os olhos e me fitou"

Dona Clarisse Ferrarini, a diretora de enfermagem, abre um grande sorriso para contar: "Agora pouco (eram 12 horas) o moço que recebeu o coração abriu os olhos, ergueu-os lentamente e me fitou".
A diretora de enfermagem, como dona Minvervina, a supervisora do centro cirurgico, informaram que o receptor do coração deixou a sala de cirurgia com reflexos motores. Disseram ainda que o rim transplantado começou a funcionar três minutos antes de enxertado.
Um detalhe que dona Clarisse acha pitoresco: pouco antes de começar a ser preparado para receber seu novo coração, João Ferreira da Cunha ouvia uma guarania pelo radio.

Para Sodré foi um "momento histórico"

No Hospital das Clínicas, o governador Abreu Sodré declarou não ter sido colhido de surpresa, pois estava perfeitamente a par do que ia acontecer.
"Eu tive a honra de ser hoje acordado às 5 horas da manhã, por determinação do dr. Zerbini, com quem tive muitos contatos para participar, como governador do Estado, desse momento historico para o Brasil".
Sodré disse que só foi às Clinicas no fim da operação: não queria prejudicar o trabalho, mas estava em contato com o superintendente do HC de 15 em 15 minutos.
"Depois, vim trazer um abraço do povo brasileiro a este cientista do nosso país, deste Brasil que demonstra extraordinario grau de evolução nas ciencias medicas".
"Saio hoje daqui como brasileiro, orgulhoso dos medicos de São Paulo pelo que acabam de fazer".

Telegrama ao presidente

Ao presidente Costa e Silva, o governador Abreu Sodré enviou o seguinte telegrama:
"Tenho satisfação e orgulho de transmitir Vossencia exito primeira operação transplante cardiaco realizada hoje Hospital Clínicas S. Paulo. Foi doador pessoa sexo masculino, desconhecido, e receptor, J. F. C. também do sexo masculino. Na mesma oportunidade¸ sendo o mesmo doador, realizou-se outro transplante renal, tendo como receptor pessoal do sexo feminino.
Comunico ainda V. Exa que intervenções se realizaram sob responsabilidade das equipes dos ilustres cientistas profs. Euryclides de Jesus Zerbini, Luiz V. Decourt e Geraldo de Campos Freire. Este é grande feito ciencia medica brasileira que tem recebido Vossencia apoio inestimavel.
Expresso finalmente Vossencia jubilo governo e povo paulistas mais esse feito que significa e enaltece cientistas nosso país".

O transplante, minuto a minuto

As equipes chefiadas pelos medicos Euryclides de Jesus Zerbini (transplante do coração) e Geraldo de Campos Freire (transplante do rim) foram mobilizadas quatro vezes desde a tarde de sabado até a madrugada de ontem quando realizaram o transplante duplo no Hospital das Clinicas.
Nas primeiras vezes, os medicos conseguiram salvar os doadores - três acidentados com traumatismo craniano - e os transplantes (coração e rim) não foram feitos. Na quarta vez, entretanto, o doador - um jovem vitima de atropelamento - morreu e o transplante duplo foi realizado em beneficio de dois receptores: João Ferreira da Cunha (coração) e Mercedes Scudeiro Leme (rim).

As equipes

Às 13 h 30 de sabado, as equipes dos medicos Euriclydes de Jesus Zerbini e Geraldo de Campos Freire foram mobilizadas pela primeira vez neste fim de semana. Um homem, que sofrera desastre de automovel, chegou em estado de coma no Pronto-Socorro do Hospital das Clinicas.
Exames de laboratorio revelaram que o seu tipo de sangue era compativel com o dos receptores do coração e do rim. Duas horas depois, entretanto, o acidentado foi salvo. Entre os medicos que lutaram para salvá-lo estavam alguns das equipes de transplante.
Às 17 horas ocorreu a segunda mobilização das equipes dos medicos Euriclydes de Jesus Zerbini e Geraldo de Campos Freire. Uma outra vitima de desastre automobilistico - um homem de meia idade - chegava , também em estado de coma, ao Hospital das Clinicas.

Tipo de sangue

Mais uma vez o tipo de sangue do doador era compatível com o dos receptores. Mas, mais uma vez, os transplantes foram adiados porque os medicos conseguiram salvar a vida do acidentado.
Às 18 h 30 - a terceira mobilização das equipes de transplantes. Repetia-se a causa do ferimento - desastre de automovel - desta vez num homem de menos de trinta anos. Pela terceira vez, no sabado, o doador foi salvo e os transplantes não foram feitos.
O Hospital das Clinicas mantem sigilo sobre a identidade destes três homens. Um medico, que ajudou a salvar os três, revelou apenas a causa dos ferimentos e a idade aproximada dos acidentados.

Atropelado

Às 4h30 as duas equipes se reuniram no HC pela quarta vez e 25 minutos depois começaram a se preparar para fazer os dois transplantes: o do coração para João Ferreira da Cunha e o do rim para Mercedes Seudeiro Leme.
Pouco antes das 4h30 um jovem, que havia sido atropelado, chegava em estado grave, com traumatismo craniano, no Pronto-Socorro do Hospital das Clinicas.
Às 4h30 foram mobilizadas as equipes dos medicos Euryclides de Jesus Zerbini e Geraldo de Campos Freire. Exames de laboratorio revelaram que os dois transplantes - coração e rim - seriam possiveis.

O doador

Os medicos lutavam para salvar a vida do doador - um jovem cuja identidade não foi revelada. Às 4h55 as equipes de transplantes e os receptores já estavam preparados.
Às 6h15 o jovem acidentado sofreu a morte real. É a chamada morte da personalidade, que se traduz pela presença da linha isoeletrica cerebral continua ou difusa (silencio cerebral).
O cerebro morrera. Para confirmar a morte real, o dr. Paulo Vaz de Arruda fêz os estimulos sonoros, luminosos, mecanicos (dolorosos) e quimicos. O cerebro não reagiu, não acusou nada.

A morte

A morte do jovem acidentado foi observada, primeiro, pelo dr. Fulvio Pileggi. Este medico informou que o coração parara de bater.
O corpo do jovem foi entregue ao dr. Paulo Vaz de Arruda que, para constatar a morte real, fêz estes estimulos:
Sonoros: um aparelho especial produziu frequencia sonora diversa até 3.500 ciclos por segundo.
Luminosos: Um aparelho - o estroboscopio - produziu luz intermitente (que pisca) em intensidade e frequencia variavel. Esta luz é tão sensivel que pode causar desmaio e ataque se não for controlada.
Mecanicos: são os estimulos tambem chamados dolorosos (beliscões, trações nos musculos e outros).
Quimicos: injeção de drogas estimulantes nas veias. Uma das drogas aplicadas foi o Metrasol que estimula o cerebro e o faz reagir se ainda houver vida.

Exames

Enquanto estes exames estimulantes eram feitos, tomava-se o traçado eletroencefalografico. Durante dez minutos a linha do traçado se manteve isoeletrica: reta, horizontal, fixa. Se ela se movesse, num momento apenas, então haveria vida.
Mas, o cerebro não reagiu a nada. O jovem acidentado estava realmente morto. Morrera o cerebro (morte real ou chamada morte clinica). Morreram os orgãos. Morreram todos os orgãos um por um. O dr. Paulo Vaz de Arruda explica como morrem os orgãos.
- Primeiro morre o cerebro - a peça mais nobre do corpo humano. No cerebro, primeiro morre o cortex cerebral. Depois, o tronco cerebral. Após a morte do cerebro, começam a morrer os orgãos. O coração é o ultimo orgão a morrer. Mas, tudo, geralmente, morre em minutos. Constata-se a morte do cerebro com o eletroencefalograma (que acusa o resultado de todos os estimulos) e a do coração com o eletrocardiograma. Quando tudo morre o transplante pode começar.

Transplante

Às 6 h 25 começou o transplante do coração. O orgão foi retirado do jovem acidentado e colocado num receptaculo que contem uma substancia quimica especial. Neste receptaculo o coração se mantem biologicamente vivo durante alguns minutos.
Às 6 h 40 João Ferreira da Cunha recebia o coração do jovem acidentado. Depois, a cirurgia que durou até as 10 h 25.
Às 6 h 50 Mercedes Scudeiro Leme recebia o rim do jovem acidentado. Depois, a parte cirurgica do transplante renal que foi até às 9h 30.
Estava feito o primeiro transplante de coração no Brasil e o 24.o de rim.

Um médico

Quem confirma se o doador está morto, no Hospital das Clinicas, é o dr. Paulo Vaz de Arruda. Foi ele quem liberou o corpo do jovem acidentado para as equipes dos medicos Euryclides Jesus Zerbini e Geraldo de Campos Freire realizarem os transplantes do coração e do rim.
40 anos, casado com da. Teresa Vaz de Arruda, o dr. Paulo Vaz de Arruda é medico desde 1953, formado pela Faculdade de Medicina da USP. É psiquiatra e neuro-fisiologista. Assistente da Clinica Psiquiatrica da Faculdade de Medicina, Chefe do Serviço de Eletroencefalografia do Hospital das Clinicas e professor de Psico-neurofisiologia da Santa Casa. Estagiou nos Estados Unidos durante dois anos.
Atrás dos grossos bigodes, roupa esporte, três horas depois do transplante, o dr. Paulo Vaz de Arruda sorria, no seu apartamento, feliz com o resultado dos dois transplantes. Sobre outros tipos de transplantes acha que o do figado ocorrerá dentro de dois anos. Quanto ao do cerebro, diz:
- "É dificil falar nisso por enquanto. Só se a tecnica mudar e evoluir muito. É cedo para se pensar nisso ainda".


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