BEBÊ DE PROVETA, POLÊMICA MUNDIAL


Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 27 de julho de 1978

A pequena Patricia Brown, concebida num tubo de ensaio e nascida um pouco antes da meia-noite de anteontem, desencadeou um apaixonado debate cientifico, filosófico e religioso em todo o mundo, inclusive no Brasil.
Embora a Igreja Católica continue firme na sua posição contrária a esse tipo de experiência - que obteve êxito só depois de 12 anos de trabalhos - certas áreas cientificas e juridicas consideram o fato uma abertura para uma nova tomada de consciência sobre a maternidade e a evolução humana.
Um advogado de São Paulo chegou a dizer: "Eva foi o primeiro bebê de proveta. Não foi concebida no útero de uma mulher, foi criada pelas mãos de Deus e enquanto o homem não reproduziu essa façanha não ficará satisfeito."

Bebê de proveta: o medo e a esperança

A euforia do pai e dos médicos e a polêmica filosófico-religiosa são as consequências mais imediatas do nascimento do "primeiro bebê de proveta " do mundo nascido mulher dia 25 com dois quilos e 600 gramas em Oldham, na Inglaterra.
O bebê chegou nove dias antes da data prevista, e seu nascimento era aguardado com ansiedade, não apenas por seus pais, mas também pelos cientistas e pelas mulheres que confiam nesta nova técnica avançada - concepção fora do útero - para poder dar à lua a um filho sonhado.
A mãe, Lesley Brown, que na próxima segunda-feira fará 31 anos, está também passando muito bem após o parto. Seu marido, John Brown, ferroviário, de 38 anos, ficou esperando fora da sala de parto durante a operação. Estava nervoso e fumava muito como muitos pais nessa hora de ansiedade.
A criança - que se chamará Patricia em homenagem ao médico Patrick Steptoe, ginecologista pioneiro no desenvolvimento dessa técnica - foi a primeira nascida no mundo depois de concebida fora do útero. A senhora Brown - que durante nove anos estava tentando ter um bebê, sofre de obstrução das rompas de falópio e não pode conceber naturalmente.
Eva foi o primeiro bebê de proveta. Não foi concebida no útero de uma mulher, foi criada pelas mãos de Deus, e enquanto o homem não reproduzir esta façanha, não ficará satisfeito. Esta é a sintese do pensamento de um médico e de um advogado, que embora não sejam especialistas no assunto, conseguem definir o limite da curiosidade humana, personificada na figura do cientista.
Alencar Rossi, presidente do Movimento Familiar Cristão, se preocupa com as brechas abertas pela divisão do método de fertilização in vitro. A experiência pode abrir caminho para a concretização das idéias de criação de uma raça pura, como defendia Adolf Hitler, com muito menos recursos técnicos. Atrás do bebê concebido artificialmente vem o caminho para a discriminação racial, para o uso desta experiência com fins políticos, na defesa de interesses de grupos.
Há quem vá mais longe. O advogado Walter Ceneviva, sem esconder seu entusiasmo pela experiência, se pergunta se ela não é "a abertura para novas iniciativas que terminarão por criar, como previu Aldous Huxley, o seres humanos de criação inteiramente artificial, cujas características serão previstas e determinadas pela policia do Estado, alheios aos sentimentos dos homens e das mulheres, fabricados somente para atender às conveniências das forças dominadoras do mesmo Estado".
Desonestidade, suborno, problemas de herança, são algumas das implicações que passam pela cabeça do doutor Fábio Dória do Amaral, do Conselho Regional de Medicina. Como garantir que o óvulo é mesmo da mulher que está se submetendo à intervenção? Como evitar que uma mesma mulher conceba doze filhos por ano, criando uma vasta confusão entre os direitos de cada um?
Nas pastoral da Familia, o pessoal evita dar uma opinião. Ninguém pretende condenar a priori a experiência, mas a impressão é de que não vêm o valor social da descoberta. Eles acham que embora possa resolver o problema especifico de um ou outro casal, não interessa a dois terços da humanidade. Na maioria dos paises do terceiro mundo "as crianças estão morrendo à míngua". São crianças que não tiveram televisão na hora do parto, como esta menina que nasceu anteontem em Manchester, mas que já estão geradas buscando sobreviver. "Se analisarmos do ponto de vista das prioridade dentro da realidade dos países subdesenvolvidos a experiência do dr. Streptoe não interessa". Esta é a conclusão da conversa entre um padre e dois integrantes do Movimento Familiar Cristão, que no entanto, consideram a fertilização in vitro "louvável como esforço humano para encontrar uma solução para problemas concretos de esterilidade."
Ninguém tem uma posição formada. A Igreja se limita a responder através dos discursos do Papa Pio XII, que em 1949 se pronunciou sobre a fecundação artificial. Na época tudo que tinha se obtido era a introdução do espermatozóide no útero da mulher com o auxilio da técnica a inseminação artificial. Foi quando Pio XII, no Congresso Internacional de Médicos Católicos, em Roma, condenou o que chamou de métodos artificiais e permitiu todos os que se destinam simplesmente a facilitar o processo natural de reprodução ou a conseguir a fecundação depois de uma relação sexual. A Igreja, ao contrário do que muitos pensam, se limita a condenar a masturbação (mesmo para recolher o espermatozóide), a utilização de sêmen de terceiros e, por exemplo, a utilização de um óvulo que não seja da mesma mulher que vai gestá-lo.
A posição assumida pela Igreja, em 1949, foi seguida, quase que integralmente pelo Código de Ética que orienta os médicos brasileiros desde 1957. Em seu artigo 53, se lê: "A inseminação artificial heteróloga não é permitida; a homóloga poderá ser praticada se houver consentimento expresso dos cônjuges".
No mesmo ano em que, no Brasil, se proibe por lei a inseminação que não seja feita entre marido e mulher, nos Estados Unidos, cerca de 10 mil crianças já haviam sido concebidas com sêmen de um homem que não é o marido da mãe.

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