OS SONHOS QUE NÓS SONHAMOS


Publicado na Folha da Manhã, domingo, 13 de abril de 1952

Neste texto foi mantida a grafia original


Desde que o homem é homem os sonhos perseguem-no e ele persegue os sonhos, no intuito de desvendar-lhes o sentido. Divinas mensagens, visitas de mortos, profecias disfarçadas em linguagem simbolica, realização de recalcados desejos, tentativas de compreensão do proprio eu, ou de resolução de conflitos internos, expressão da maneira de viver de cada qual... tudo isso, e muito mais, a criatura humana já quis enxergar nas historias que o sono lhe apresenta, tão simples às vezes, tão desconcertantes outras.
Calvin S. Hall, que dirige a Divisão de Psicologia da Universidade de Western Reserve, entendeu de fazer um estudo estatistico dos sonhos de pessoas tidas como normais. Mais de dez mil relatos de sonhos foram por ele examinados. A pessoa "autora" do sonho enchia um questionario no qual prestava informações sobre varias caracteristicas de cada sonho (cenario, idade e sexo dos personagens, as emoções experimentadas pelo "sonhador", e ainda se o sonho era um sonho banal, em branco e preto, ou algo de extra, em "tecnicolor").

Sonhos e mais sonhos

O material assim obtido foi classificado, para que pudesse ser submetido a analise estatistica. De inicio, os sonhos foram distribuidos segundo cinco caracteres essenciais: o cenario, o elenco, o enredo, as emoções provocadas na pessoa que sonha e, finalmente, a existencia ou não de cor.
Tratemos de dar aos leitores um resumo das principais observações colhidas pelo prof. Hall.
Para que se tenha uma idéia de como variam os cenarios, podemos dizer que nada menos de 1.328 deles, diferentes, foram assinalados pelos tecnicos. As cenas mais comuns passam-se no interior de comodos ou partes de habitações. Seguem-se, na ordem de frequencia, os veiculos, os edificios completos, lugares de recreio, ruas ou estradas, zonas do interior (roça), casas de comercio, escritorios ou fabricas, etc. Dos sonhos que se passam dentro de habitações, as cenas mais frequentes são as que se circunscrevem à sala de estar, e depois ao quarto de dormir, à cozinha, à escala e ao porão. O cenario em geral é prosaico e, mesmo que não reproduza nenhum local especifico que o sonhador conheça, costuma ser ambiente familiar. O local de trabalho comparece com frequencia que é sem duvida pequena, quando se tem em vista o tempo que as pessoas consomem em tais lugares, durante toda a vida; o que parece emergir disso, segundo Hall, é que no sonho o individuo manifesta uma especie de horror ao trabalho que o escraviza.

Os atores

Quanto ao elenco, Hall separou os sonhos dos moços dos das pessoas de mais idade. Não encontrou diferenças importantes entre os dois grupos, em relação à natureza do elenco. Mas parece que os velhos sonham mais do que os moços com pessoas da familia e com parentes. Tambem os velhos sonham mais com gente moça do que com gente velha. As crianças sonham com os pais, e os pais com os filhos: esta é uma das conclusões gerais de Hall. Um fato que impressiona tanto nos sonhos dos velhos quanto nos sonhos dos moços é a raridade com que nele se movem, como estrelas de primeira grandeza, os figurões importantes. Isso revelaria um fenomeno que Hall acha verdadeiro, segundo outros elementos que diz possuir; é que os sonhos raramente dizem respeito aos fatos do dia.

Os que voam

Quanto às ações praticadas nos sonhos, verificou-se que voar e flutuar são acontecimentos raros, ao contrario do que em geral se imagina. Na maioria dos sonhos, porem, existe movimento ativo por parte das pessoas. É muito raro aparecerem, nos sonhos, operações domesticas comuns, como cozinhar, passar a ferro, lavar roupa. Ao contrario, são muito frequentes as atividades esportivas fortes, levadas até o cansaço. Resumindo, afirma o dr. Hall que nos sonhos as pessoas preferem viajar e locomover-se, a fazer coisas.
Manifestações de hostilidade ocorrem em maior porcentagem do que as manifestações amistosas. Num e noutro caso, podem observar-se todos os extremos de hostilidade ou de amistosidade.
E que sentem os "sonhadores" ou o que referem ter sentido? Qual o "gosto" dos sonhos? Na maioria das vezes eles trazem apreensão, seguindo-se a irritação (inclusive frustração), a tristeza, a felicidade e a excitação (surpresa, inclusive). A grande maioria das emoções que os sonhos trazem são, pois, de natureza negativa e desagradavel (oh, vida amarga... nem no sonho?!...)

Entenda-se

Mas aqui ocorre um fato curioso. A classificação acima foi baseada na reação referida pelas pessoas. Interrogadas, porem, sobre se o sonho em geral tinha sido agradavel ou desagradavel, a maioria das pessoas referiu que o gosto final havia sido bom... E é de notar que os velhos costumam ter sonhos mais desagradaveis que os moços.
As mulheres sonham "colorido" mais vezes do que os homens. E talvez as pessoas acima de 50 anos tambem sonham mais "colorido" do que as pessoas mais novas. Comparando os sonhos coloridos com os comuns, Calvin Hall não conseguiu encontrar nenhuma diferença psicologica entre eles. O mesmo que ocorre no cinema, talvez: muitas vezes nos perguntamos por que tal ou qual produtor fez determinada fita em tecnicolor, e não outra. Tambem não é possivel associar nenhum sentido especial e simbolico a qualquer das cores que tingem os sonhos.
Depois de haver apresentado suas estatisticas oniricas, Calvin Hall procura apresentar tambem sua teoria sobre os sonhos. Ele acha que o sonho não é mais do que a expressão, por meio de imagens, dos pensamentos que compomos durante a noite. Uma especie de historia em quadrinhos daquilo que nossa mente "descobre" enquanto dorme. Durante o sonhos nós pensamos, e naturalmente pensamos sobre nossos problemas, nossos temores, nossas condições. Fazemos uma especie de analise de nós mesmos, concentramos em nós a nossa energia intelectual. Esses pensamentos são traduzidos em imagens, e o desenrolar delas diante de nossos olhos, põe-nos em situação igual à de quem, por algum artificio, pudesse estar dentro da pessoa que sonha e, desse modo, ver o que essa pessoa pensa de si mesma.

Auto-retrato

Aquilo que o "sonhador" fez no sonho representa a idéia que ele forma de si proprio. E todas as pessoas que entram no sonho, afirma Hall, estão envolvidas de algum modo, e emocionalmente, na vida do "sonhador". Por que então sonhamos, tantas vezes, com pessoas estranhas, que nunca vimos mais gordas? É que esses estranhos não são, na verdade, estranhos, mas apenas a representação das qualidades ou dos defeitos, dissociados, das pessoas que conhecemos. Em vez de um amigo a quem no intimo julguemos autoritario, podemos ver um policial ou um guerreiro... mas esse policial e esse guerreiro são, na linguagem de quadrinhos do sonho, o nosso amigo, que assim poderá ter inumeros aspectos.
O cenario, calmo ou brusco, claro ou nevoento, reflete a idéia que cada qual faz do mundo. Mais ainda, o "sonhador" exprime no sonho aquilo que pensa de seus proprios impulsos. Se pensa bem deles, colhe, no sonho, impressões agradaveis de tais impulsos, os quais tanto podem ser os atos da vida sexual quanto os impulsos de agressão. Se pensa mal deles, o que colhe são martirios ou aborrecimentos.

Conflitos

Há sempre, no sonho, um conflito da vida real, que às vezes volta como "leit-motiv" em muitos e muitos sonhos seguidos. A intensidade do sonho, ou melhor, de seu enredo, revela a importancia que o sonhador atribui a esse conflito. Alguns desses conflitos puderam ser identificados por Hall, como frequentes e muito espalhados na população. É o caso do conflito entre os impulsos da maturidade, que buscam o progresso e a conquista, e os da infancia, de natureza regressiva, que buscam proteção e estabilidade dependencia e passividade. Tal conflito, que é um dos mais importantes da vida, costuma dominar os sonhos da adolescencia, mas pode perdurar por toda a vida, com força maior ou menor. E como este, outros muitos conflitos existem. Pelo que se vê, o que pretende Calvin S. Hall é, através dos sonhos, descobrir a concepção que cada pessoa faz de si mesma. A ele não interessa descobrir o desejo que motiva o sonho, e que era o objeto de Freud, mas determinar a maneira pela qual o "sonhador" se imagina ou se julga a si proprio. Pelo sonho a pessoa mostrar-nos-ia até como é que ela se vê a si mesma, como é que, no seu entender, os outros a encaram, e, finalmente, como é que ela concebe a vida. De posse desses dados, é claro que o psicanalista terá excelente material para o seu trabalho orientador e diagnosticador.


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