DEZ ANOS DE ANTIBIOTICOS
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Publicado
na Folha da Manhã, domingo, 12 de outubro de 1952
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Neste texto foi mantida a grafia original
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Apenas uma decada passou desde aquele dia um dos mais famosos
de toda a historia da medicina em que, na enfermaria Radcliffe,
de Oxford, a penicilina foi pela primeira vez injetada em um ser
humano, na expectativa de que repetisse, no doente, as mesmas curas
que já havia realizado nos animais de experiencia. Era uma
penicilina ainda muito impura, que provocava arrepios e surtos de
febre nas pessoas em que era injetada. Mas não havia duvida
que era uma droga extraordinaria, capaz de realizar curas antes
jamais vistas.
A descoberta inglesa encontrou, na historia norte-americana e na
imensa rede de laboratorios especializados dos Estados Unidos, os
elementos capazes de transformar, em poucos anos, a delicada penicilina,
antes tão rara e dispendiosa, num remedio barato e de atividade
muito maior. Num abrir e fechar de olhos criou-se uma industria
nova e imensa. Basta dizer que só o capital investido em
edificios e maquinas destinados à produção
de antibioticos andava pela casa dos duzentos milhões de
dolares no ano de 1950, e que a produção de penicilina,
nos Estados Unidos, atingiu no ano passado a fabulosa cifra de 350
trilhões de unidades, no valor de 140 milhões de dolares
(produto bruto, não embalado). No mesmo ano, a estreptomicina
alcançou produção de 150 toneladas, no valor
de 57 milhões de dolares. E os outros antibioticos, todos
juntos, representaram em 1950 o valor global de 90 milhões
de dolares.
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Remedio
de pobre |
O aumento da produção trouxe naturalmente o barateamento
do preço unitario. A penicilina, que a principio era uma
raridade que os especialistas procuravam até recuperar da
urina dos pacientes com ela tratados, transformou-se, com o correr
dos anos, num dos remedios mais baratos que se conhecem, apesar
de seu crescente aperfeiçoamento. Milagres da ciencia e da
tecnica bem orientadas.
Tantas vezes contada e recontada, não mais é preciso
repetir a historia da penicilina. Importante é, todavia,
guardar que sua importancia historica não reside apenas nas
curas que tem realizado, nas infecções que venceu,
mas tambem no fato de ter aberto um caminho novo na historia da
luta do homem contra as doenças, o caminho dos antibioticos,
isto é, de substancias extraidas de microbios e capazes,
elas mesmas, de combater a ação de outros microbios.
Esperançados com os resultados colhidos com o emprego da
penicilina, os cientistas entregaram-se à tarefa sistematica
de procurar novos antibioticos, experimentando para tal fim microbios
já conhecidos e tentando isolar outros, ainda desconhecidos
da ciencia. Estudaram-se microbios do ar e microbios da terra, assim
como outros, de origem muito diversas. E a caçada não
se limitou apenas ao grupo dos cogumelos ou fungos, dos microbios
aparentados com o bolor que dera a penicilina. Estendeu-se tambem
às bacterias. A colheita foi grande, não há
duvida. Nada menos de trezentos antibioticos já foram até
agora isolados e acham-se descritos nas revistas especializadas.
A verdade, porem, é que nem todos apresentam interesse pratico,
como remedios contra as infecções; uns são
fracos demais, outros são muito toxicos. Mas nenhum deles
pode ser considerado desinteressante do ponto de vista cientifico,
uma vez que, estudados nos laboratorios, seja nas infecções
em animais, seja diretamente nos tubos de cultura, podem trazer
ensinamentos uteis sobre os mecanismos pelos quais os microbios
atacam o organismo e este se defende.
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Os
cinco "grandes" |
Dos trezentos antibioticos conhecidos, cinco assumiram papel importante
na luta contra as doenças. São a penicilina, a cloromicetina,
a aureomicetina, a terramicina e a estreptomicina. Todos eles são
retirados de fungos e somente a cloromicetina, até hoje,
foi preparada sinteticamente, a partir de drogas quimicas sem auxilio
do microbio que normalmente a fabrica.
Dos antibioticos produzidos por bacterias os mais conhecidos são
a tirotricina, a bacitracina e a polimixina. A tirotricina, que
é um dos mais antigos antibioticos conhecidos, usa-se exclusivamente
para tratamentos locais (pele, garganta, etc.) e não pode
ser injetada no organismo, por ser muito toxica. A bacitracina,
que serve para tratamento de feridas e de certas complicações
das vias aereas superiores, tambem se usa na disenteria amebiana;
mas é toxica para os rins e sua aplicação,
que em certos casos dá resultados brilhantes, só pode
ser feita em condições especiais, sob estrito controle
medico. A polimixina é especialmente ativa contra um grupo
de microbios que às vezes se metem nas feridas, dando origem
a um pus de cor azulada (bacilo piocianico); mas tambem ela é
perigosa para os rins e só pode ser aplicada em clinica hospitalar,
sob fiscalização severa.
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Auxiliar
dos antibioticos |
Não poucos trabalhos têm sido publicados, nestes ultimos
tempos, sobre produtos bacterianos de grande interesse para o tratamento
das feridas cheias de pus ou de outros produtos de reação
contra os microbios; trata-se da estreptodornase e da estreptocinase.
Não são, propriamente antibioticos, mas fermentos
capazes de dissolver o pus, limpando as feridas e tornando-as mais
faceis de cicatrizar. Esse precioso produto, quando aplicado juntamente
com antibioticos, pode facilitar muito a sua ação,
removendo ou dissolvendo formações que serviram de
abrigo aos microbios, subtraindo-os à ação
do antibiotico. O que é curioso é que esses fermentos,
auxiliares tão uteis dos antibioticos, são extraidos
de estreptococos hemoliticos, germes perigosissimos, causadores
de infecções muito graves. Aí está,
pois, um exemplo muito interessante de microbio patogênico
que é, ao mesmo tempo, fornecedor de remedio.
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Os
feitos da penicilina |
Mas voltemos aos "cinco grandes". De todos eles a penicilina
é ainda hoje o mais usado e o menos toxico. "Antigamente",
isto é, nos primeiros anos desta ultima decada, era bem trabalhoso
o tratamento pela penicilina, pois o doente tinha de ser injetado
de três em três horas. Isso representava aborrecimento
para o doente e para os que dele tratavam, que tinham de estar acordados
a noite toda, à espera de que passasse cada periodo de três
ou quatro horas. Mas logo se descobriu um meio de injetar a penicilina
menos vezes. Bastou combiná-la com outras substancias, a mais
conhecida das quais é a procaina, o que dá um produto
que só lentamente é absorvido pelo organismo.
Mas a penicilina é, tambem, o antibiotico de ação
menos variada, dentre os "cinco grandes". Isto quer dizer
que ela age sobre um numero relativamente pequeno de microbios, ao
passo que os demais, e muito em particular a cloromicetina, a aureomicina
e a terramicina têm ação sobre uma porção
de microbios diferentes. isto poder ser muito bem compreendido em
uma de nossas figuras, imitada de Raper.
A penicilina é usada para combater as infecções
provocadas pelos pneumococos, pelos estafilococos, pelos gonococos,
pelos estreptococos, pelo bacilo do carbunculo (que no homem produz
a chamada pustula maligna) e pelo espiroqueta da sífilis e
outros, parecidos. Antes da penicilina e das sulfas as infecções
pneumococicas eram altamente mortiferas; hoje essa mortalidade é
minima. A propria meningite pneumococica, que outrora matava 99 por
cento dos doentes, teve sua mortalidade reduzida para 50 por cento.
Vinte e cinco por cento dos doentes atacados pela endocardite pneumococica,
que outrora não poupava nenhum deles, já hoje conseguem
sobreviver. Outro grande fantasma da medicina eram as infecções
estreptococicas.
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Doenças
que desaparecem |
Quando
os terriveis microbios, em formato de cadeia de contas, invadiam o
sangue, os medicos meneavam tristemente a cabeça, porque sabiam
que em 85 por cento de tais casos o resultado era a morte; pois a
penicilina cortou para dez por cento esse indice de mortalidade. Tornaram-se
raridades as mastoidites e as otites medias, de natureza estreptococica,
que outrora eram complicações frequentes da infecção
por esse germe. E quem falava confiantemente, outrora, das mastoidites?
Essa palavra era bastante para provocar arrepios. Hoje, entretanto,
um pequeno buraquinho no osso e uma lavagem com penicilina resolvem
o que outrora era um verdadeiro drama. O mesmo se pode dizer da endocardite
estreptococica subaguda, que outrora matava todos os doentes por ela
atacados, e que hoje só consegue matar trinta por cento, porque
os outros setenta a penicilina salva.
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Como
cachos de uva |
Os estafilococos
são microbios redondinhos, que vivem em cachos. Sempre andaram
apostando corrida com os estreptococos para ver qual deles era mais
perigoso para a saude humana. Penetrando no sangue ou na medula ossea,
eram causa de incriveis sofrimentos e de muita morte e mutilação.
Com o antibioticos modernos, eles são "tão inofensivos"
como os estreptococos... A infecção causada pelos gonococos
antigamente martirizava os doentes por tempo longuissimo, deixando-os
sempre sob a ameaça de tremendas complicações.
O pecado de um minuto era, por vezes, a infelicidade de uma vida inteira.
Como em relação à sifilis, a penicilina "chegou,
viu e venceu" o gonococo.
Lembram-se os leitores da febre tifóide e das disenterias?
Que quadros tristes e desalentadores! Esse é, hoje, o terreno
da cloromicetina, da terramicina e da aureomicina.
As doenças do grupo do tifo exantematico, as chamadas riquetsioses,
que durante tanto tempo desafiaram a argucia dos medicos, encolhem-se
hoje diante da cloromicetina, da aureomicina e da terramicina. E a
velha coqueluche vacila (quem diria?) ante a terramicina e a aureomicina.
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A
tuberculose |
Poucos
antibioticos terão despertado tantas esperanças como
a estreptomicina, que revelou precioso poder antagonista em relação
ao bacilo da tuberculose. É indiscutivel que esse antibiotico
consegue prolongar a vida de muitos pacientes e em outros acelera
a paralisação do processo infeccioso. mas ainda não
é certo que seu emprego haja, de um modo geral, feito baixa
a mortalidade pela tuberculose. Surgem, entretanto, de varios laboratorios
dos Estados Unidos e da America, as radiosas promessas das hidrazidas,
a realizar curas e melhoras realmente surpreendentes. Tudo leva a
crer que, pelo menos no terreno da luta contra a tuberculose, os interesses
se voltarão dos antibioticos para os quimioterapicos, as drogas
fabricadas pelo proprio homem, em suas retortas.
Mas no dia em que a estreptomicina perder o interesse que hoje possui
no tratamento da tuberculose, terá perdido todo o seu valor?
Nada disso. Embora a grande maioria da estreptomicina hoje produzida
no mundo se destine à luta contra a tuberculose, a verdade
é que ela tambem age sobre varios outros microbios é,
só ou acompanhada, representa arma de grande valor em muitos
tratamentos. Assim, por exemplo, misturada à aureomicina ou
à terramicina, é o tratamento por excelencia da brucelose
e da peste.
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A
arte de misturar |
Poucos
antibioticos terão despertado tantas esperanças como
a estreptomicina, que revelou precioso poder antagonista em relação
ao bacilo da tuberculose. É indiscutivel que esse antibiotico
consegue prolongar a vida de muitos pacientes e em outros acelera
a paralisação do processo infeccioso. mas ainda não
é certo que seu emprego haja, de um modo geral, feito baixa
a mortalidade pela tuberculose. Surgem, entretanto, de varios laboratorios
dos Estados Unidos e da America, as radiosas promessas das hidrazidas,
a realizar curas e melhoras realmente surpreendentes. Tudo leva a
crer que, pelo menos no terreno da luta contra a tuberculose, os interesses
se voltarão dos antibioticos para os quimioterapicos, as drogas
fabricadas pelo proprio homem, em suas retortas.
Mas no dia em que a estreptomicina perder o interesse que hoje possui
no tratamento da tuberculose, terá perdido todo o seu valor?
Nada disso. Embora a grande maioria da estreptomicina hoje produzida
no mundo se destine à luta contra a tuberculose, a verdade
é que ela tambem age sobre varios outros microbios é,
só ou acompanhada, representa arma de grande valor em muitos
tratamentos. Assim, por exemplo, misturada à aureomicina ou
à terramicina, é o tratamento por excelencia da brucelose
e da peste.
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Os antibioticos
hoje conhecidos podem ser usados sozinhos ou combinados. Misturá-los
é, todavia, uma arte sutil, pois às vezes eles, em vez
de reforçar-se uns aos outros, neutralizam-se, fazendo com
que o conjunto valha menos que qualquer das partes. E tambem, olhem
lá! o uso excessivo dos antibioticos pode, pela destruição
de bacterias uteis do tubo digestivo, favorecer o desenvolvimento
de outros microbios que aquelas mantinham sob controle. São
percalços naturais, o preço que se tem de pagar ao progresso,
mas um preço bem leve, quando se pensa nas terriveis doenças
que foram vencidas.
Demonstração, mais uma vez, de que o trabalho cientifico
não conhece fronteiras, foi a descoberta do valor dos antibioticos
como fator de crescimento. A historia já foi contada por miudo
nesta pagina. Enquanto uns cientistas verificavam, em certo laboratorio,
que o extrato de figado, com que se tratam as anemias perniciosas,
continha um fator de crescimento para determinadas bacterias, e que
acabavam por isolar a nova vitamina B-12, outros pesquisadores notavam
que o figado e a carne possuíam algum fator indispensavel ao
crescimento normal dos animais. Daí a verificar que em ambos
os casos o que estava em jogo era a mesma coisa foi um pulo. Mas a
historia não parou. No residuo das cubas de fabricação
dos antibioticos, outros pesquisadores encontraram vitamina B-12 e
verificaram que, com esse residuo, era possivel substituir o fato
que existe no figado e na carne, e sem o qual os animais não
cresciam bem...
E mais ainda: verificaram, com surpresa, que os proprios antibioticos,
quando incorporados em doses minimas às rações,
estimulam o crescimento dos animais, em sua fase inicial. Isto quer
dizer que os antibioticos, antes preparados como remedio, são
agora preparados tambem como alimento para as criações.
E eis aí, muito por alto, alguns dos progressos que em dez
anos se realizaram no campo dos antibioticos. Estamos habituados,
hoje, a ver o medico debelar com uma rapida receita enfermidades que
outrora deixavam apreensivos e desanimados os doutores, e exigiam
horas e dias de agonia e de expectativas. Seria um erro, entretanto,
esquecer que por trás de cada uma dessas receitas, aparentemente
tão simples, estendem-se anos e anos de pesquisas e perde-se,
anonimo, o trabalho de pesquisadores sem numero. Os dez ultimos anos
são exemplo disso.
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