A VERDADEIRA FISIONOMIA DE MARTE


Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 7 de março de 1970

Neste texto foi mantida a grafia original

NOVA YORK - Em 31 de junho e 6 de agosto de 1969, dois engenhos automaticos norte-americanos de 380 kg cada um, o Mariner-6 e o Mariner-7, sobrevoaram o planeta Marte, aproximando-se dele, respectivamente, 3.431 e 3.430 km. Pela segunda vez Marte era observado assim e fotografado por engenhos não habitados. A primeira experiencia datava de julho de 1965, epoca em que um engenho pouco mais simples - o Mariner-4 - transmitia para a Terra as primeiras fotos aproximadas tiradas de um outro planeta do sistema solar.
Os resultados de 1965 tinham modificado completamente a idéia que geralmente se fazia do planeta. Para surpresa de todos, ele aparecia crivado de crateras: Marte é a Lua... Mas as fotografias dos engenhos Mariner-6 e Mariner-7 deviam, mais uma vez, obrigar os astronomos a modificar a descrição que davam do planeta. Afinal, Marte não é a Lua... Realmente, hoje existe a convicção de que o planeta vermelho não se parece com nenhum outro objeto conhecido do sistema solar, e sua evolução foi sem duvida diferente da Lua e da Terra.
Para discutir os resultados obtidos, os cientistas norte-americanos multiplicaram encontros e coloquios, marcadamente no Instituto For Space Studies, organismo que reune em Nova York uns quarenta especialistas dos problemas das atmosferas planetarias. Recentemente, realizou-se nova reunião em São Francisco.
Os engenhos Mariner-6 e Mariner-7 tiraram umas 150 fotografias ao aproximar-se do planeta; depois, durante o vôo sobre Marte, 157 fotos aproximadas, metade das quais permitia perceber pormenores de 300 m. Alem disso, durante a fase do vôo sobre o planeta, os dois engenhos fizeram medições com luz infra-vermelha, ultravioleta e com ajuda das ondas de radio, para determinar a temperatura e a pressão na superficie do planeta e a composição de sua atmosfera.

Três especies de terreno

Ao passo que a descrição tradicional do solo marciano - visto através de telescopios terrestres - reconhecia duas especies de zonas, os "mares", zonas sombrias de cor verde-azul, e os "desertos", de cor amarelo-laranja, o exame das fotos do Mariner-6 e Mariner-7, que cobrem cerca de 20% da superficie total de Marte, levou a distinguir três tipos de regiões:
· Os terrenos ricos de crateras - Marte, como a Lua, foi visivelmente submetido a um demorado bombardeio de meteoritos, que formaram crateras às vezes muito amplas, de varias dezenas de quilometros de diametro. Seu tamanho permite classificá-las em duas categorias: as que têm mais de 700 m de diametro e as que têm mais de 7 km de diametro. Se considerarmos sua forma, outras duas familias aparecem, que subdividem as precedentes: crateras relativamente pequenas e profundas, em forma de taça, que se assemelham às crateras primarias da Lua (formadas pelo impacto de meteoritos), e relativamente grandes, de fundo chato.
· Os terrenos caoticos - As fotografias do Martiner-6 mostram cerca de 1 milhão de quilometros quadrados de terreno, onde pequenas cristas e depressões de poucos quilometros de comprimento se sobrepõem e se entrelaçam para formar um relevo atormentado e "caotico". Esse terreno que quase não apresenta crateras, parece estar em nivel inferior de uma zona cheia de crateras situada ao seu lado.
· Os terrenos planos - O melhor exemplo é o deserto circular Hellas que não revela crateras de tamanho superior à capacidade de maquina fotografica - 300 m - e que se estende por quase 2 mil quilometros: zonas desse tipo são desconhecidas na Lua.
Não se percebe muito bem o que acontece nessa descrição com os mares e os desertos, as zonas elevadas e as regiões baixas. Nas fotografias aproximadas distinguem-se mal limites das zonas claras e sombrias. Algumas dessas zonas de transição parecem coincidir com as bordas das crateras (os fundos das crateras são em geral sombrios), tal como certos "canais" parecem não ser mais do que uma fila de crateras.
Em geral se pensa que nas proximidades do cinturão de asteroides (multidão de pequenos objetos que gravitam mais ou menos agrupados entre Marte e Jupiter), Marte deve ter sofrido um bombardeio de meteoritos 25 vezes mais intenso do que na Lua. Ora, em Marte o bombardeio atual é tão lento que não poderia ter produzido o numero de crateras que se observam nas regiões em que há mais impactos, mesmo que durasse desde a origem do planeta, há uns 4,5 bilhões de anos. Admite-se assim que Marte (tal como a Lua) deve ter sido bombardeado muito mais brutalmente outrora do que hoje.
Todavia, as grandes crateras novas são raras. Algumas parecem ter sido formadas há muito tempo; talvez até, como na Lua, os terrenos tenham bilhões de anos. Sendo assim, o planeta talvez nunca tenha sofrido convulsões tectonicas tão acentuadas como aquelas que ainda ocorrem na Terra, e que apagaram todo vestigio de relevo antigo. Marte tambem nunca deve ter tido a atmosfera espessa, rica em agua, que a Terra possui; nas fotos não se observa nenhum vestigio da modelagem que essa atmosfera não teria deixado de imprimir no relevo.
Marte, porem, apresenta muitos vestigios de fenomenos de erosão e de obliteração de trechos de relevo debaixo de camadas de detritos. Mais erodidas do que as crateras lunares, as crateras marcianas perderam suas altas bordas circulares: ao redor delas não se vêm nem raios nem crateras secundarias (criadas na Lua pela ejeção de materias por ocasião do impacto primario). Nas regiões perfuradas de crateras, as pequenas e até as medias crateras de 20 a 50 km de largura são menos numerosas do que se esperava.
Estima-se assim que o ritmo de erosão (será o vento e a poeira?) foi varias centenas de vezes mais rapida do que na Lua. Alem disso, é preciso explicar porque os terrenos caoticos e os terrenos planos não possuem praticamente mais crateras. Os fenomenos que fizeram desaparecer as crateras em certas regiões não se verificaram em outras e as formas de erosão variaram de acordo com as zonas.
Nesse longo processo de modelagem do relevo, a atmosfera marciana deve ter desempenhado uma função. Essa atmosfera (isso já era sabido e as medições infra-vermelhas o confirmaram) compõe-se principalmente de gás carbonico. Ao contrario do que fôra noticiado um pouco apressadamente, parece que não existe nela nem metana nem amoniaco. O azoto tambem não foi detectado; se a atmosfera marciana o contem, esse gás não pode constituir mais que 1% de toda a camada atmosferica. Existe tambem uma pequenissima quantidade de agua (um bilhão de vezes menos do que na Terra).
Nenhuma foto do planeta deixa realmente supor a existencia de nuvens, exceto talvez sobre as regiões polares, onde, segundo as medições infra-vermelhas, parece haver em suspensão na atmosfera cristais de neve carbonica. Para explicar as variações de luminosidade de certas regiões "vistas" pelos "Mariner", fica-se reduzido a supor a existencia de uma bruma fina e leve; essa bruma não pode ser causada pela condensação de gás carbonico sobre as regiões equatoriais, pois as temperaturas reinantes na atmosfera são muito altas; mesmo a condensação de vapor d'agua se explica mal.
A unica observação certa que se fez é devida a varias fotografias feitas na orla do planeta: acima do disco marciano flutua, a algumas dezenas de quilometros de altura, uma camada estratificada, com a espessura de 10 km aproximadamente: pensou-se que são poeiras de silicio.
Por ser muito abundante, o gás carbonico desempenha um papel certamente importante. O Mariner-6 e o Mariner-7 trouxeram agora a prova de que o principal componente das calotas polares é a neve carbonica, sem duvida misturada com uma pequena quantidade de cristais de gelo. Quando o Mariner-7 começou a sobrevoar o limite da calota polar sul, no 61º de latitude sul, o radiometro infra-vermelho registrou repentinamente uma queda de temperatura: enquanto os terrenos de alta latitude não cobertos de "neve" estão numa temperatura de -48ºC, as bordas da calota de neve estão a -113ºC, para atingir -120ºC nas regiões da calota não iluminadas pelo sol.
Ora, a temperatura de congelação de um corpo depende da pressão. O estudo dos sinais de radio lançados pelo Mariner-6 e 7, por ocasião de sua passagem por trás do planeta, permitiu confirmar que, se o gás carbonico constitui 90% da atmosfera, a pressão se situa na superficie de Marte entre 6,4 e 7 milibares (1 milibar é um milesimo da pressão atmosferica terrestre). Nessa pressão tão fraca, o gás carbonico se congela à temperatura de -125ºC, o que corresponde quase às temperaturas medidas.
Em outros lugares as temperaturas marcianas são mais altas, mas raramente ultrapassam zero: no Equador, ao meio dia, é de cerca de 3ºC. À noite, aos 78º de latitude norte, a temperatura desce até o ponto de congelação do gás carbonico (-125ºC).
Na atmosfera marciana verificou-se um aumento surpreendente de temperatura a 40 km de altura, o qual continua sem explicação; simplesmente essa altura corresponde à da camada de aerosóis fotografada, e não é impossivel que exista uma ligação entre os dois fenomenos. Enfim, a 135 km de altura, as sondas detectaram a presença de uma ionosfera, mas somente do lado do planeta iluminado pelo sol. Aos 300 km parece haver uma fraca coroa de oxigenio, e aos 25 mil km, uma coroa de hidrogenio.

Vida em Marte?

Essa atmosfera marciana é ou pode ter sido propicia ao aparecimento da vida? Teremos que esperar sem duvida até 1975, data em que uma sonda automatica norte-americana pousará no planeta, para termos elementos precisos de resposta.
Hoje, pode-se dizer que os resultados dos dois Mariner não trouxeram nenhuma prova que reforce a possibilidade de haver vida em Marte. As medições ultravioletas mostraram que muitos raios ultravioletas atingem a superficie do planeta e devem quebrar assim todas as moleculas de gás que não têm ligações fortes, como o ozona, o amoniaco, os oxidos nitrosos... A vida, se ela existe, ou existiu, só pode ser uma forma primitiva que se tornou resistente às radiações ultravioletas (microbios, liquens...).
O que parece mais perturbador para os especialistas não é a pouca quantidade de azoto, como se afirmou varias vezes (basta só um pouquinho de azoto), mas a ausencia de agua. Segundo as teorias mais correntemente admitidas, a vida terrestre teria surgido e se desenvolvido numa especie de caldo de cultura aquoso. Marte já teve suficiente agua em sua superficie para que pudesse surgir a vida? A pergunta continua de pé.

© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.