PORQUE OS GATOS COMEM OS RATOS

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 01 de junho de 1952

Neste texto foi mantida a grafia original

Há algum tempo escrevemos nesta pagina um artigo sobre a cooperação entre os animais. O titulo talvez não tenha sido esse, mas o assunto era, e isto é o que importa. Fizemos, então, referencia a experiencias muito cerebres de um chinês que trabalha nos Estados Unidos, o professor Kuo, sobre as relações entre o gato e os seus "classicos inimigos", isto é, os ratos e os camundongos.
Dado o interesse que despertam os assuntos de natureza psicologica, vamos hoje voltar a cuidar das experiencias do citado pesquisador. Dirá alguem que elas já são antigas (vinte anos, mais ou menos) e que por isso não mais interessem. Responderemos que é um erro pensar assim. Velhos assuntos às vezes despertam mais interesse que os novinhos em folha. E, alem disso, os que lêem estes artigos não são especialistas e bem podem ignorar, sem desdouro algum, fatos cientificos que os especialistas talvez cataloguem como velharias sabidas e ressabidas. Alem disso, quem divulga a ciencia não deve procurar apenas transmitir o conhecimento de fatos que se encontram facilmente nos almanaques, aos montes.

Lá vai o gato...

Antes de Kuo muitos outros pesquisadores haviam querido saber quais os fatores que determinam o comportamento dos gatos em relação aos camundongos e aos ratos. Que comportamento? Já percebem os leitores que nos referimos à reação que consiste em atacá-los (com habilidade!) e matá-los. Seria esse impulso matador um simples "instinto", no sentido de uma resposta nativa, que aparece naturalmente por força de fatores geneticos, e nas condições normais de ambiente, ou seria antes, pelo contrario, uma resposta adquirida em virtude de aprendizado?
À primeira vista nossa tendencia é para responder favoravelmente à primeira hipotese, não é mesmo? Pois desde que o mundo é mundo (esta é a impressão que em geral se tem) os gatos atacam e matam os ratos e os camundongos. A verdade, porem, é que não é possível resolver uma questão dessa ordem pela simples impressão que resulta da frequencia com que vemos o gato matar aqueles seus "inimigos".
Ora, não precisamos ir muito longe para encontrar gatos malandros, que não caçam camundongos. Já não têm visto os leitores alguns amigos se queixarem de seus gatos, dizendo que não prestam para nada? É certo que logo surgirão as desculpas e as explicações: caçar, eles caçam, mas não querem. Serão bichos degenerados, uns pobres infelizes, umas tristes exceções.

Um problema dificil

Pois bem, que a reação agressiva dos gatos em relação aos ratos e aos camundongos fosse, realmente, universal, isto é, mesmo que não se conhecesse exemplo de nenhum gato incapaz de perseguir e matar esses animais, ainda assim não poderiamos afirmar que a reação fosse "nativa" e correspondesse a um instinto. O caso só pode ser deslindado mediante experiencias bem controladas, em que se afaste de maneira absoluta toda influencia resultante do aprendizado. E isso não é facil. Mas foi o que fez o dr. Kuo.
A experiencia desse pesquisador abrangeu nada menos de 59 gatinhos. Trinta deles, os "não vegetarianos", foram alimentados com leite, carne, peixe e arroz cozido. Os restantes, os "vegetarianos", só recebiam leite e verduras, jamais tendo provado o gosto da carne. Sempre que os animais eram submetidos a experiência. A metade deles encontrava-se em jejum de 12 horas, cheia de apetite portanto, ao passo que a outra metade se achava sempre farta.
O plano geral da experiencia constituiu em criar diversos grupos de gatinhos em condições de vida deferentes quanto às experiencias havidas em relação a ratos e camundongos. Para tal fim, Kuo imaginou três situações bem diversas, pelas quais distribuiu, em numeros aproximadamente iguais, os 59 gatinhos.

Os "Isolados"

Na primeira condição, chamada "isolada", cada gatinho vivia inteiramente isolado, em uma gaiola só dele. Não tinha nenhum contacto com ratos ou camundongos, a não ser, naturalmente, nos momentos de prova, em que era preciso justamente saber como é que o felino reagia à presença dos roedores. À noite a gaiola permanecia coberta, para evitar que algum rato ou camundongo vagabundo aparecesse pelas redondezas e fosse visto pelos gatinhos. Estes tambem eram completamente isolados em relação a outros animais da mesma especie, a não ser a propria mãe, com a qual viviam até época do desmama do exame, sempre porem em gaiolas perfeitamente isoladas; como não havia possibilidade de algum rato aparecer na gaiola, ou nas redondezas, ou pelo menos de ser visto pelos gatinhos e suas mães, é claro que os filhotes não poderiam aprender, com estas, a reagir aos "inimigos".
A segunda condição era um tanto diferente: cada gatinho vivia numa gaiola separada, em companhia da mãe, como na condição anterior, mas tinha oportunidade de ver a mãe matar um rato ou um camundongo, de vez em quando, ou melhor, de quatro em quatro dias. Esses ratos ou camundongos não entravam na gaiola; ficavam do lado de fora e aí é que eram mortos pela gata. Esta, porem, não matava indiferentemente ratos ou camundongos. Nada disso: a cada gata só era apresentado sempre o mesmo tipo de roedor. E havia três especies de roedores na experiencia: ratos selvagens, ratos albinos e camundongos dançarinos. Assim, alguns gatinhos só viam as mães matar ratos medios, selvagens, ao passo que outros só as viam matar ratos grandes, e brancos, e outros, ainda, só viam morrer camundongos dançarinos. Além disso, as gatas só podiam matar, e não comer, os ratos ou camundongos que agrediam.

Amigos

A terceira condição era bem diversa. Cada gatinho, a partir de seis dias de idade, vivia em uma gaiola isolada, em companhia de um roedor de uma das três especies acima referidas. Como se arranjava o pesquisador para amamentar os gatinhos? Bem, a noite ele retirava o rato ou o camundongo e colocava a gata, em vez deles. Após o desmame, a gata desaparecia completamente e os gatinhos viviam apenas na companhia dos roedores, e não podiam ver nenhum outro animal alem da especie de roedor que lhes fazia companhia.
Muito bem, agora que contamos como é que a experiencia foi planejada e arranjada, vejamos como é que os gatos reagiram à presença dos roedores estranhos. Para todos os grupos se criou a mesma situação de prova: num certo dia o dr. Kuo colocava dentro da gaiola um grande rato branco. Se o rato branco não era atacado dentro de trinta minutos, era retirado e em seu lugar colocava-se um rato selvagem, de porte medio. Se tambem este não era atacado dentro de trinta minutos, cedia o lugar a um camundongo dançarino.
A primeira prova desse tipo foi feita quando os gatinhos tinham de seis a oito dias. Depois disso, era repetida de quatro em quatro dias, até que o gatinho houvesse matado um roedor de cada uma das três especies mencionadas, ou, em caso contrario, até a idade de quatro meses.

Contando os mortos

No final da historia os pesquisadores fizeram uma contagem dos ratos e camundongos mortos nos três grupos, e tiraram as conclusões possiveis.
A primeira lição que se colheu da experiencia foi a seguinte: a atitude agressiva dos gatos em relação aos ratos depende em grande parte da experiencia anterior que eles têm em relação a esses animais. Quase todos os gatinhos que tiveram oportunidade de ver as mães atacar e matar ratos ou camundongos, acabaram destruindo, tambem ratos ou camundongos.
Mas as coisas não param aí, pois a verdade é que o grupo que sempre viveu isolado de outros gatos e de roedores, a metade dos gatinhos, acabou tambem destruindo os seus "inimigos naturais". A explicação disso virá depois. Por outro lado, entre os gatos que se habituaram ao convivio dos roedores, foi minima a porcentagem dos que mais tarde atacaram esses animais.
Em relação à especie de roedores atacada pelos varios grupos de gatos, colheu-se uma noção interessante: o gato que ataca o roedor maior tambem ataca os dois membros. Mas o que se habituou a atacar a especie menor não ataca a maior, ou pode não atacá-la. É importante, porem, destacar o seguinte: o gatinho ataca de preferencia a especie que viu a mãe atacar, e nunca a especie com a qual conviveu.
Kuo não estudou apenas a reação brutal, de atacar e matar. Registrou tambem varias outras reações, desde as de indiferença absoluta em relação aos roedores, até as de observação e espreita, tolerancia, cordialidade (brincando com os ratos como de fossem gatos) e hostilidade (eriçamento, arqueamento do dorso, etc.). E observou que essas reações se distribuíam normalmente pelos varios grupos, conforme a atitude geral de amizade ou não. Não tiveram efeito sobre o resultado das experiencias as circunstancias de estarem os gatos em jejum, ou de serem vegetarianos ou não vegetarianos.

Gatos medrosos

Em outras experiencias, em que o aparecimento do rato na gaiola era seguido de um choque eletrico no gato, foi possível criar, neste, ou melhor, em alguns gatos, acentuada reação de medo em relação ao rato, em condições normais. E essa reação pode instalar-se mesmo em gatos que sejam ativos caçadores de ratos.
A conclusão final que Kuo tirou de suas experiencias foi esta: o gato não possui nenhum instinto especifico dirigido contra os roedores. Seu corpo é construído de tal forma que se adapta perfeitamente à apreensão de pequenos animais, tais como ratos, camundongos, passaros, etc. Mas adapta-se bem, tanto para devorar quanto para brincar. Os cavalos, os leões e os pardais reagem de maneira diversa diante de um rato, não porque lhes falte algum instinto especifico, mas sim por uma simples questão de tamanho de adaptação do corpo aos movimentos necessarios para realizar as operações de caçar ou devorar os roedores. O tipo de comportamento que o gato manifesta em relação ao rato, isto é, o conjunto de reações que normalmente se desenvolvem no felino diante de um rato ou de um camundongo, como diante de um passaro, é aprendido e modificado pelo ambiente. Mudando este, podemos fazer do gato um inimigo feroz ou um companheiro folgazão para o rato.
Dissipam-se desse modo os efeitos das primeiras impressões. Se nossa tendencia natural é para dizer que os gatos matam os ratos por simples e puro instinto, e que não passam de gatos degenerados os que assim não procedem, a experiencia mostra que tão natural é, entre os gatos, matar os ratos como ser amigos deles. E isso está de acordo, aliás, com a observação desapaixonada dos fatos, pois na verdade todos sabem que, desde que o mundo é mundo, sempre houve gatos bons caçadores e gatos maus caçadores de ratos.
Restaria explicar por que tantos gatos acabam matando um ou outro rato e se afeiçoando a esse trabalho. E tambem por que, nas experiencias de Kuo, mesmo entre os gatos completamente isolados, cerca de metade acabou matando ratos ou camundongos. É que na vida diaria o rato ou camundongo são acidentes comuns no caminho dos gatos. Estes os perseguem inicialmente como a tudo que corra ou se mova. Brincam, eventualmente mordem. E morrendo, sentem o gosto e descobrem que este é bom... E assim começa a historia, que não precisa do tão falado instinto para se explicar convenientemente.

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