O INTERVENTOR

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 17 de maio de 1981

MODESTO CARONE

1

Os mais informados garantem que ele foi pontual: na hora certa o carro parou diante do prédio e ele desceu segurando uma pasta na mão. Contra todas as expectativas, tinha o ar feliz de quem associa a primavera à vontade de trabalhar; talvez por isso não vacilasse perante as ofensas e o clamor de tanta vaia. Seja como for, a multidão era um dado de realidade e sua ameaça clara demais para que pudesse negá-la. Foi certamente a partir daí que atravessou às pressas a calçada, rompeu as faixas de repúdio à sua presença e subiu as escadas, pronto para tomar posse do cargo.

2

Já não resta dúvida de que a euforia comandava mais uma vez os seus atos; tanto que sorriu como antes ao entrar na sala que o esperava. Ela ficava no começo do corredor e ele a tomou por trincheira ao escutar o estrondo dos passos às suas costas. A dificuldade é que o espaço parecia ocupado por estranhos, que imediatamente apontaram o caminho até a mesa. Enquanto testava o assento de couro e alisava o tampo de madeira, ele registrava os gritos que já redobravam. Só então é que se deu conta de que poderia estar enganado: a massa de rostos irrompia na porta e a saleta ao lado continuava guardada.

3

Foi provavelmente nesse instante que se sentiu traído e começaram as suspeitas de que a trincheira se transformava em prisão. De fato, já caminhavam para ele os representantes exigindo sua renúncia; logo mais, organizava-se a fila dos que insistiam em visitá-lo. Eram numerosos - a aglomeração lá fora - e todos tinham uma palavra a dizer ou um gesto a comunicar. A princípio, ele se mostrou constrangido diante dos olhares, principalmente o das crianças, que o estudavam sem animosidade a despeito da decepção. Recompondo mentalmente imagens pregressas, ele fazia esforços para ignorar os demais - a não ser um ou outro senhor que o interpelava mudamente sobre o caráter daquela missão. Quanto aos que dançavam a meio metro de distância, embalados pela fanfarra ao fundo, encarava-os como sempre enfrentava cenas assim: com rancor disfarçado em desinteresse. Era sensível, no entanto, que havia alguma coisa falha nessa postura e aos poucos chegava à conclusão de que o espetáculo agora era ele e não os outros. Como a descoberta o atingisse, ficou olhando para dentro, na esperança de que desse ângulo o desconforto passasse.

4

Não consta que tenha passado, pois quando resolveram expulsá-lo ele ainda mantinha o pescoço curvado. Evidentemente isso não impediu que fosse outra vez vaiado; com efeito as pessoas sentiam-se estimuladas pela figura em movimento, chegando ao ponto de querer tocá-la. Mas o crepúsculo já abrandava os ânimos - além do que ele era ágil e em poucos segundos alcançava o carro. Dizem que ao sentar-se no banco de trás ele fazia gestos apavorados; o fato, entretanto, é que apenas se apalpava. Pois se é verdade que os tempos tinham mudado, isso não fazia a menor diferença: ele só vivia das proezas do passado.


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