DIAS MELHORES

Publicado na Folha de S.Paulo, São Paulo, domingo, 4 de janeiro de 1981


MODESTO CARONE
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Pelas frestas da persiana vejo o cabo da carabina e o chapéu do atirador: ele está entrincheirado no jardim da casa e se vale dos arbustos para se ocultar. Embora a noite ainda não tenha caído a arma já está preparada; basta que as luzes se acendam para que soe o clique do gatilho e partam os primeiros disparos. Normalmente eles seguem uma trajetória regular que vai das paredes às janelas, destas até os vidros e daí para o interior da sala e dos quartos. Isso explica que as marcas de bala reproduzam o mesmo padrão, pois aparecem em pontos iguais e equidistantes.


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Essa regularidade não me tranquiliza, visto que os ataques têm um raio de ação suficientemente amplo para permitir variações. Sem dúvida a mais insidiosa é a suspensão dos tiros consecutivos que depois se descarregam em forma de rajada. Nessas ocasiões meu único recurso é ficar de bruços no chão; enquanto a fuzilaria espatifa os móveis e as lascas de pintura voam pelo ar não consigo fazer outra coisa senão prestar atenção na minha segurança; só me recomponho quando o clarão esmorece e os projéteis recuperam a batida habitual. Mas é inevitável que a expectativa de um novo assalto comprometa a continuidade do meu trabalho.


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Foi pensando nesse transtorno que decidi negociar com o atirador; afinal de contas não o conheço nem adivinho o porquê de tantas investidas. Suspeito que ele não tem presente os próprios motivos porque se restringe a atirar. Espero com paciência que se manifeste, mas admito que não há a menor indicação nesse sentido. Mesmo as pausas entre os tiroteios não apontam para uma trégua: apenas refletem o tempo necessário à reposição dos cartuchos. A partir disso concluo que o atirador cumpre uma missão e que não cabe questionar seus fundamentos; só faço na medida em que eles me atingem pessoalmente.

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A grande dificuldade de entrar em contato com o atirador não reside no furor da ação e sim no fato de que nunca o vi de perto. Talvez fosse mais correto dizer que o conheço por partes, como a carabina e o chapéu. Ainda assim esse conhecimento diz respeito a detalhes dos objetos; na realidade o que eu distingo da distância é o reflexo do cano e da coronha e as abas do chapéu. Sei que estas são de feltro cinza, o que não leva necessariamente à compreensão do conjunto; quanto à arma é visível que ela tem um design moderno e que o cabo está revestido de madrepérola; isso é tudo. Somando esses dados à impenetrabilidade das razões que impelem o atirador a me visar o resultado só pode ser o meu desamparo.

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Certamente não me acho impedido de realizar as tarefas do cotidiano; procuro atendê-las como se nada acontecesse em torno. Quando o barulho das detonações se imiscui no ritmo do meu trabalho recorro a chumaços especiais de algodão e tampo os ouvidos; a tática permite que eu resista até altas horas da noite: assim que o sono chega estou tão cansado que nada me perturba. É verdade que aos poucos os estampidos passam a participar de sonhos que invariavelmente se transformam em pesadelos; não posso negar porém que no dia seguinte estou pronto para outra.

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Como vivo isolado os tiros me fazem companhia - tanto que sinto falta do atirador quando ele não aparece. Suponho que se ausente para retemperar as forças; é possível no entanto que dedique os lapsos de folga a escolha de novos apetrechos. Essa hipótese me inquieta, pois ao contrário do que parece, estou em paz com o método empregado. Esclarecendo melhor: se a estratégia não muda e o material permanece o mesmo, aumentam minhas chances de sobreviver pela familiaridade; sendo assim, é compreensível que a menor alteração possa ser fatal.

7

Exatamente o que eu temia aconteceu: esta noite o atirador está usando não só aparelhamento novo como sofisticado. Já constatei que as balas não se limitam a afundar nas paredes: atravessam os tijolos como se eles fossem de papel - além do que já não capto os ricochetes que me distraem durante a noite. Em outras palavras, os disparos perderam a leveza e repercutem na casa com um estrondo de armamento pesado; não espanta que as árvores do jardim estremeçam a cada saraivada. Sinto nesse instante que sucumbo à ansiedade e reajo concentrando-me nos meus papéis. Como sempre, estou sentado no assoalho - a única posição sustentável desde que o atirador começou a me perseguir. Lá fora está mais escuro do que de costume, mas atribuo a diferença ao meu estado de ânimo. Realmente o horizonte aqui ficou tão fechado que as luzes se apagaram e eu me vejo entregue à solidão.

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Foi no meio da obscuridade que reconheci o sentido da escalada. Estava de costas no tapete e acompanhava o zumbido das balas com aflição crescente. Apesar da postura incômoda reparei que elas descreviam um desenho peculiar: identifiquei-o logo aos contornos de uma mensagem. A percepção foi facilitada pela circunstância de nenhum balaço rolar no piso. Isso era estranho porque em geral o chumbo se espalha pelo chão de tal maneira que no dia seguinte é preciso varrê-lo para desobstruir o caminho. Dessa vez os bólidos picotavam a parede com perfeição, deixando uma trilha na massa corrida; acresce que os estampidos mostravam um timbre muito mais consistente. Movido pela novidade tentei interpretar os sinais a tempo, uma vez que as rajadas se sucediam e as perfurações se tornavam tanto mais nítidas quanto mais numerosas. Como sou afeito aos enigmas não custei a deduzir que o atirador me advertia que o recrudescimento assinalava o desfecho dos ataques; de qualquer modo a sorte estava lançada.

9

Talvez eu tenha me precipitado na análise dos indicios, mas notei que havia algumas saídas à vista. A mais coerente dizia que evitasse as salvas do amanhecer porque a carga utilizada era de prata: uma profecia ligada aos metais nobres conferia êxito imediato a essas balas reservadas ao coração. Pressentindo que os pormenores se apoiavam numa lógica tão indevassável quanto os acontecimentos em que estava envolvido, rastejei até a vidraça e espiei em direção ao jardim. A resposta não se fez esperar - um tiro riscou meu coro cabeludo. Apesar de surpreso não desisti de investigar o que se armava por trás dos arbustos; foi assim que divisei os dentes do atirador no meio da folhagem. É provável que eu me engane, pois na hora tinha o rosto coberto de sangue; mas aquele sorriso se entrelaçava ao brilho da carabina a ponto de me acenar com a esperança de dias melhores.

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