ABEL E A FERA

Publicado em Folha de S.Paulo, São Paulo, domingo, 1º de abril de 1984


MODESTO CARONE

Embora os dedos tremessem a mão venceu o embaraço e agarrou a maçaneta de metal. Como o trinco estava azeitado o ouvido não registrou nenhum ruído e pela primeira vez no dia Abel respirou aliviado. De fato essa circunstância era propícia aos seus desígnios porque possibilitava a inspeção cautelosa do quarto. Tanto é assim que um simples movimento dos ombros bastou para que ele ampliasse a fresta da porta e visse a ponta do tapete, o armário embutido e a janela devassada pelo sol. Sem dúvida o conjunto era pequeno para compor o cenário, mas no caso a intenção é que interessava. Isso explica que o machado tenha passado da mão esquerda para a direita à medida que Abel avançava mais um passo. Foi desse modo aliás que localizou a cama, a cômoda e o espelho onde se refletia o rosto da fera. Curiosamente os traços dela mostravam-se apaziguados, com exceção da estria vermelha que manchava os lábios e invadia o vão das narinas; o resto se reduzia a meia dúzia de linhas apagadas. Apesar de tudo porém ele sentiu o mesmo pavor de antes e baixou os olhos para o assoalho: sem dúvida teria fugido se não fosse o foco de luz espalhado no chão. Com efeito este crescia a cada segundo e em pouco tempo inundava o peito, o pescoço e as têmporas de Abel. Acresce que a temperatura acompanhava o ritmo da escalada - a tal ponto que ele teve de largar a arma, tirar o paletó e desapertar a gravata; enquanto isso a imagem começava a evaporar na superfície do espelho. Foi talvez prevendo esse desenlace que Abel levantou o machado, descreveu um semicírculo no ar e decepou a fera. A partir daí deu por terminada a tarefa, pois dois anjos com as asas encharcadas de sangue entraram pela janela anunciando a última reconciliação no reino dos céus.

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