MODESTO
CARONE
A
Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) e a Hucitec estão
relançando no próximo mês, no Brasil, a monumental Literatura
Européia e Idade Média Latina (Europãische Literatur und lateinishes
Mittelalter), de Ernst Robert Curtius, publicada no país pela
primeira vez em 1957 pelo Instituto Nacional do Livro.
A
tradução continua sendo a mesma de Teodoro Cabral e Paulo Rónai,
com base na primeira edição alemã; os acréscimos feitos agora
são de autoria de Geraldo Gerson de Souza, com base na segunda
edição alemã, que é considerada a definitiva por Curtius. É do
professor Segismundo Spina a introdução intitulada "Curtius",
que vale por um ensaio breve e bem informado sobre o erudito alemão
e sua obra mais famosa.
Uma
das epígrafes incluídas por Curtius no quadro dos "Axiomas" (como
foi traduzido Leitsãtze) é a frase do interlocutor e amigo Ortega
y Gasset: "Un libro tiene de ser de ciencia; pero también tiene
de ser un libro". O aspecto propriamente científico de "Literatura
Européia e Idade Média Latina" impõe-se logo à leitura não apenas
em virtude do projeto intelectual anunciado no título -digno de
um autêntico "Gelehrter" alemão- mas também da riqueza e fecundidade
das fontes, referências, conexões e desdobramentos que se estendem
por 600 páginas (na edição em alemão da Francke Verlag; na brasileira
elas chegam a mais de 700).
Mas,
percebido pelo ângulo da construção, o livro parece não-sistemático,
evoluindo por associações, que no entanto revelam o rigor da concepção
na trama dos capítulos e "excursos" e na concisão deliberada da
escrita, capaz de avançar argumentos em tom apodíctico, num ensaísmo
exigente que pressupõe um público ilustrado e sobretudo disposto
a se deixar levar pelo autor.
Os
trabalhos preliminares a este clássico da filologia e dos estudos
literários foram iniciados pelo romanista em 1932 com o "Espírito
Alemão em Perigo" (Deutscher Geist in Gefahr). Nele, Curtius assumia
uma posição de recuo em relação à República de Weimar, diagnosticava
a decadência e o desenraizamento da educação alemã e sugeria uma
renovação a partir do espírito da Idade Média -não a germânica,
repositório dos mitos e manias nacionalistas que alimentaram o
nazismo, mas a românica e cristã, que ele agora (nos anos 40)
concebe como elo de ligação entre o final da Antiguidade e as
letras européias modernas. "Nenhum período da história da literatura
européia -afirma- é tão pouco conhecido e examinado como a literatura
latina da alta e da baixa Idade Média. E, no entanto, a visão
histórica da Europa deixa claro que precisamente esse período,
como vínculo entre a Antiguidade em declínio e o mundo ocidental
que se ia formando lentamente, ocupa uma posição-chave".
É
manifesto que esta redescoberta da Idade Média não está sendo
proposta, à maneira romântica (e muitas vezes retrógrada), como
utopia regressiva diante do mal-estar da civilização. Pelo contrário,
o que Curtius procura mostrar, com um conhecimento de causa esmagador,
é justamente o entrelaçamento das literaturas medievais num mesmo
plano europeu, ou seja, como unidade -o que certamente contrariava
convicções medievalistas do século 19.
Além
disso, é relevante ver o aspecto político dessa partilha, uma
vez que a recuperação da "unidade de sentido" (Sinneinheit) da
Europa, empreendida pelo "scholar" alsaciano, vinha à tona num
momento em que a Segunda Grande Guerra a esfacelava. Desse modo,
numa pista paralela à do seu par e contemporâneo Erich Auerbach,
que em "Mimesis" buscava, no exílio antifascista de Istambul,
a representação da realidade na literatura ocidental, Curtius
enfrentava no seu trabalho construído em silêncio a explosão da
barbárie, trazendo à luz as conquistas poéticas da Europa culta.
"Meu livro -diz ele no prefácio à segunda edição alemã- não é
o resultado de objetivos meramente científicos, mas da preocupação
relativa à preservação da cultura ocidental. Faz-se necessário
demonstrar essa unidade dentro do caos intelectual do presente".
O
veículo eficaz para essa demonstração é o estudo da tradição literária,
uma vez que esta é tão antiga quanto a cultura ocidental. (De
forma polêmica, Curtius põe de lado as artes plásticas, por elas
não serem portadoras de pensamento como as letras). A partir dessa
decisão, os dois primeiros capítulos da obra explicam os conceitos
de literatura européia e Idade Média latina, nos quais a Europa
é vista como continuidade histórica, e não apenas espacial, e
o medievo literário como um ponto obscuro por onde deve começar
a reflexão histórica sobre a primeira.
Para
Curtius, a literatura européia abrange um período de cerca de
26 séculos que vai de Homero a Goethe. ( "O herói fundador da
literatura européia é Homero. Seu último autor universal é Goethe.")
As literaturas do século 19 e começo do 20 são excluídas do seu
estudo porque ainda não foram esquadrinhadas pelo instrumento
privilegiado da pesquisa filológica. Neste período, além disso,
"o que está morto ainda não foi separado do que está vivo", em
suma: o juízo definitivo sobre ele não compete à história da literatura,
mas à crítica literária.
Nos
16 capítulos seguintes, o autor desdobra diante do leitor, em
análises aparentemente autônomas, que conferem à obra um perfil
de mosaico, o que ele chama de plenitude concreta da substância
histórica. Elas vão do exame das artes liberais até um ensaio
exemplar sobre Dante, passando por temas de responsabilidade como
a relação da retórica com a poesia, da poesia com a filosofia
e a teologia, o conceito de clássico, a querela dos antigos e
modernos, o maneirismo (que se sobrepõe ao barroco) e o livro
como símbolo. Mas, tanto no corpo principal do volume como nos
25 excursos (digressões, apêndices) que se seguem, ocupa um lugar
de relevo na preocupação do historiador e crítico a "pesquisa
do topos" (Toposforschung).
Lembrando
aqui a definição didática de Wolfgang Kayser, "topos" são estereótipos,
clichês ou esquemas de pensamento e de expressão provenientes
da literatura antiga e que, através da literatura do latim medieval,
penetraram nas literaturas das línguas vernáculas da Idade Média
e mais tarde no Renascimento e no período barroco. Contrariamente
à versão romântica de poeta e poesia, que destaca no poema apenas
o produto espontâneo de experiências elaboradas pelo temperamento
individual, o exame dos "topoi" liga o artista literário objetivamente
à tradição herdada.
Até
o maior lírico de uma língua não despreza esse tesouro de imagens
poéticas, fórmulas fixas e maneiras técnicas de expor que fazem
parte do aprendizado formal. Quem não conhece a origem antiga
e a transmissão retórica desse material -adverte Kayser nas trilhas
de Curtius- cometerá graves erros de interpretação e quem não
souber integrar-se em tal prática da vida literária nunca encontrará
o verdadeiro acesso a largas épocas da história da literatura.
Isso
significa que as figuras retóricas, os motivos e até as placas
de expressão devem ser elucidados e entendidos na sua cadeia de
transmissão, de tal forma que o contexto interno da evolução literária
(no caso a européia -e por tabela a nossa) se ilumine. Escolhendo
um topos conhecido, foi importante para a história da literatura
a tradição do locus amoenus (lugar ameno, recanto aprazível).
Através dos séculos, a criação literária transmitiu a imagem da
paisagem plena marcada por peças de cenário como as campinas,
as árvores frondosas, o regato, a brisa suave, o canto das aves
etc.
Sem
levar na devida conta o longuíssimo e prestigioso percurso literário
desse topos, a análise da poesia bucólica, por exemplo, é incompleta,
se não incompetente, para avaliar o sentimento da natureza verbalizado
pelo respectivo poeta. Dito de outro modo, esse tipo de "filologia
histórica" -para não falar em Topik, termo combatido, usado por
Curtius- tem por tarefa visualizar as linhas de ligação das imagens
e motivos e rastreá-las no seu roteiro até o lugar de origem e
vice-versa. Embora essa tópica de Curtius tenha sido qualificada
como imprecisa e a-histórica (além de desconsiderar implicitamente
a criação do novo a partir do já-feito), é um dado de realidade
que não foi ela a última razão por ter a investigação do topos
se tornado um ramo do estudo literário.
Para
resumir, a "Literatura Européia e Idade Média Latina" é a um só
tempo um compêndio filológico e metodológico, uma história da
literatura e uma profissão de fé humanista -o que uma mera resenha
não pode absolutamente abarcar. A visão panorâmica e a precisão
do pormenor, a forma lapidar da exposição e a relevância do conteúdo
que se manifestam neste livro fazem dele uma das publicações mais
consistentes das humanidades no século 20.
Sua
reedição é um empreendimento de envergadura e uma prestação de
serviço ao leitor brasileiro. Mas faltam-lhe os cuidados editoriais
que não só "os especialistas, mas também os amantes da literatura
merecem". Para ficar só no prefácio à segunda edição em língua
alemã (páginas 27-29), pode ser constatado que foram omitidas
duas frases inteiras na página 29, foi confundido conjunto com
"unidade"(Einheit), "literária" com "literatura" (Literatur),
"questiona-se" com "indaga-se" (es wird gefragt), "incontestável"
com "certa" (gewisse), "erram" com "faltam" (fehlen) e "beletristas"
(!) com " ciências humanas" (Geisteswissenschaften). Infelizmente,
não é um despropósito supor que o texto integral pode conter outras
gralhas e enganos como estes, que precisam ser reparados numa
próxima impressão. Este é certamente um dos lançamentos mais substantivos
do ano.