O MOSAICO LITERÁRIO DE CURTIUS

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994.


"Literatura Européia e Idade Média Latina" é um clássico sobre as raízes da poética ocidental

MODESTO CARONE

A Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) e a Hucitec estão relançando no próximo mês, no Brasil, a monumental Literatura Européia e Idade Média Latina (Europãische Literatur und lateinishes Mittelalter), de Ernst Robert Curtius, publicada no país pela primeira vez em 1957 pelo Instituto Nacional do Livro.

A tradução continua sendo a mesma de Teodoro Cabral e Paulo Rónai, com base na primeira edição alemã; os acréscimos feitos agora são de autoria de Geraldo Gerson de Souza, com base na segunda edição alemã, que é considerada a definitiva por Curtius. É do professor Segismundo Spina a introdução intitulada "Curtius", que vale por um ensaio breve e bem informado sobre o erudito alemão e sua obra mais famosa.

Uma das epígrafes incluídas por Curtius no quadro dos "Axiomas" (como foi traduzido Leitsãtze) é a frase do interlocutor e amigo Ortega y Gasset: "Un libro tiene de ser de ciencia; pero también tiene de ser un libro". O aspecto propriamente científico de "Literatura Européia e Idade Média Latina" impõe-se logo à leitura não apenas em virtude do projeto intelectual anunciado no título -digno de um autêntico "Gelehrter" alemão- mas também da riqueza e fecundidade das fontes, referências, conexões e desdobramentos que se estendem por 600 páginas (na edição em alemão da Francke Verlag; na brasileira elas chegam a mais de 700).

Mas, percebido pelo ângulo da construção, o livro parece não-sistemático, evoluindo por associações, que no entanto revelam o rigor da concepção na trama dos capítulos e "excursos" e na concisão deliberada da escrita, capaz de avançar argumentos em tom apodíctico, num ensaísmo exigente que pressupõe um público ilustrado e sobretudo disposto a se deixar levar pelo autor.

Os trabalhos preliminares a este clássico da filologia e dos estudos literários foram iniciados pelo romanista em 1932 com o "Espírito Alemão em Perigo" (Deutscher Geist in Gefahr). Nele, Curtius assumia uma posição de recuo em relação à República de Weimar, diagnosticava a decadência e o desenraizamento da educação alemã e sugeria uma renovação a partir do espírito da Idade Média -não a germânica, repositório dos mitos e manias nacionalistas que alimentaram o nazismo, mas a românica e cristã, que ele agora (nos anos 40) concebe como elo de ligação entre o final da Antiguidade e as letras européias modernas. "Nenhum período da história da literatura européia -afirma- é tão pouco conhecido e examinado como a literatura latina da alta e da baixa Idade Média. E, no entanto, a visão histórica da Europa deixa claro que precisamente esse período, como vínculo entre a Antiguidade em declínio e o mundo ocidental que se ia formando lentamente, ocupa uma posição-chave".

É manifesto que esta redescoberta da Idade Média não está sendo proposta, à maneira romântica (e muitas vezes retrógrada), como utopia regressiva diante do mal-estar da civilização. Pelo contrário, o que Curtius procura mostrar, com um conhecimento de causa esmagador, é justamente o entrelaçamento das literaturas medievais num mesmo plano europeu, ou seja, como unidade -o que certamente contrariava convicções medievalistas do século 19.

Além disso, é relevante ver o aspecto político dessa partilha, uma vez que a recuperação da "unidade de sentido" (Sinneinheit) da Europa, empreendida pelo "scholar" alsaciano, vinha à tona num momento em que a Segunda Grande Guerra a esfacelava. Desse modo, numa pista paralela à do seu par e contemporâneo Erich Auerbach, que em "Mimesis" buscava, no exílio antifascista de Istambul, a representação da realidade na literatura ocidental, Curtius enfrentava no seu trabalho construído em silêncio a explosão da barbárie, trazendo à luz as conquistas poéticas da Europa culta. "Meu livro -diz ele no prefácio à segunda edição alemã- não é o resultado de objetivos meramente científicos, mas da preocupação relativa à preservação da cultura ocidental. Faz-se necessário demonstrar essa unidade dentro do caos intelectual do presente".

O veículo eficaz para essa demonstração é o estudo da tradição literária, uma vez que esta é tão antiga quanto a cultura ocidental. (De forma polêmica, Curtius põe de lado as artes plásticas, por elas não serem portadoras de pensamento como as letras). A partir dessa decisão, os dois primeiros capítulos da obra explicam os conceitos de literatura européia e Idade Média latina, nos quais a Europa é vista como continuidade histórica, e não apenas espacial, e o medievo literário como um ponto obscuro por onde deve começar a reflexão histórica sobre a primeira.

Para Curtius, a literatura européia abrange um período de cerca de 26 séculos que vai de Homero a Goethe. ( "O herói fundador da literatura européia é Homero. Seu último autor universal é Goethe.") As literaturas do século 19 e começo do 20 são excluídas do seu estudo porque ainda não foram esquadrinhadas pelo instrumento privilegiado da pesquisa filológica. Neste período, além disso, "o que está morto ainda não foi separado do que está vivo", em suma: o juízo definitivo sobre ele não compete à história da literatura, mas à crítica literária.

Nos 16 capítulos seguintes, o autor desdobra diante do leitor, em análises aparentemente autônomas, que conferem à obra um perfil de mosaico, o que ele chama de plenitude concreta da substância histórica. Elas vão do exame das artes liberais até um ensaio exemplar sobre Dante, passando por temas de responsabilidade como a relação da retórica com a poesia, da poesia com a filosofia e a teologia, o conceito de clássico, a querela dos antigos e modernos, o maneirismo (que se sobrepõe ao barroco) e o livro como símbolo. Mas, tanto no corpo principal do volume como nos 25 excursos (digressões, apêndices) que se seguem, ocupa um lugar de relevo na preocupação do historiador e crítico a "pesquisa do topos" (Toposforschung).

Lembrando aqui a definição didática de Wolfgang Kayser, "topos" são estereótipos, clichês ou esquemas de pensamento e de expressão provenientes da literatura antiga e que, através da literatura do latim medieval, penetraram nas literaturas das línguas vernáculas da Idade Média e mais tarde no Renascimento e no período barroco. Contrariamente à versão romântica de poeta e poesia, que destaca no poema apenas o produto espontâneo de experiências elaboradas pelo temperamento individual, o exame dos "topoi" liga o artista literário objetivamente à tradição herdada.

Até o maior lírico de uma língua não despreza esse tesouro de imagens poéticas, fórmulas fixas e maneiras técnicas de expor que fazem parte do aprendizado formal. Quem não conhece a origem antiga e a transmissão retórica desse material -adverte Kayser nas trilhas de Curtius- cometerá graves erros de interpretação e quem não souber integrar-se em tal prática da vida literária nunca encontrará o verdadeiro acesso a largas épocas da história da literatura.

Isso significa que as figuras retóricas, os motivos e até as placas de expressão devem ser elucidados e entendidos na sua cadeia de transmissão, de tal forma que o contexto interno da evolução literária (no caso a européia -e por tabela a nossa) se ilumine. Escolhendo um topos conhecido, foi importante para a história da literatura a tradição do locus amoenus (lugar ameno, recanto aprazível). Através dos séculos, a criação literária transmitiu a imagem da paisagem plena marcada por peças de cenário como as campinas, as árvores frondosas, o regato, a brisa suave, o canto das aves etc.

Sem levar na devida conta o longuíssimo e prestigioso percurso literário desse topos, a análise da poesia bucólica, por exemplo, é incompleta, se não incompetente, para avaliar o sentimento da natureza verbalizado pelo respectivo poeta. Dito de outro modo, esse tipo de "filologia histórica" -para não falar em Topik, termo combatido, usado por Curtius- tem por tarefa visualizar as linhas de ligação das imagens e motivos e rastreá-las no seu roteiro até o lugar de origem e vice-versa. Embora essa tópica de Curtius tenha sido qualificada como imprecisa e a-histórica (além de desconsiderar implicitamente a criação do novo a partir do já-feito), é um dado de realidade que não foi ela a última razão por ter a investigação do topos se tornado um ramo do estudo literário.

Para resumir, a "Literatura Européia e Idade Média Latina" é a um só tempo um compêndio filológico e metodológico, uma história da literatura e uma profissão de fé humanista -o que uma mera resenha não pode absolutamente abarcar. A visão panorâmica e a precisão do pormenor, a forma lapidar da exposição e a relevância do conteúdo que se manifestam neste livro fazem dele uma das publicações mais consistentes das humanidades no século 20.

Sua reedição é um empreendimento de envergadura e uma prestação de serviço ao leitor brasileiro. Mas faltam-lhe os cuidados editoriais que não só "os especialistas, mas também os amantes da literatura merecem". Para ficar só no prefácio à segunda edição em língua alemã (páginas 27-29), pode ser constatado que foram omitidas duas frases inteiras na página 29, foi confundido conjunto com "unidade"(Einheit), "literária" com "literatura" (Literatur), "questiona-se" com "indaga-se" (es wird gefragt), "incontestável" com "certa" (gewisse), "erram" com "faltam" (fehlen) e "beletristas" (!) com " ciências humanas" (Geisteswissenschaften). Infelizmente, não é um despropósito supor que o texto integral pode conter outras gralhas e enganos como estes, que precisam ser reparados numa próxima impressão. Este é certamente um dos lançamentos mais substantivos do ano.

 

SAIBA QUEM É CURTIUS


Ernst Robert Curtius (1886-1956)
nasceu em Thann, na Alsácia, e morreu em Roma. Estudou filologia e filosofia em Estrasburgo, Berlim e Heidelberg. Em Berlim, manteve contato com o poeta Stefan George e seu discípulo Friedrich Gundolf.

Em 1913 defendeu tese de livre docência em Bonn sobre o crítico francês Ferdinand Brunetière. Foi titular de filologia românica em Marburg e Heidelberg, aposentando-se como professor da Universidade de Bonn em 1951.

Mas a carreira acadêmica não define toda a vida intelectual de Curtius, excelente crítico e escritor. Mal terminada a Primeira Grande Guerra com o "arquiinimigo francês", promoveu na Alemanha os nomes de André Gide, Paul Claudel e Romain Rolland, entre outros. A coroação desse esforço de aproximação foi o livro "A Cultura Francesa", de 1930.

Apesar de filólogo, abriu-se para escritores do século 20: Valéry, Proust, Unamuno, Ortega y Gasset, Thomas Mann, Hofmannsthal, Joyce e T. S. Eliot foram objeto do seus ensaios. Foi o primeiro tradutor alemão de Jorge Guillén.

A partir da publicação do "Espírito Alemão em Perigo", de 1932, e da tomada do poder pelos nazistas, no ano seguinte, retirou-se da vida pública. Sua obra magna, Literatura Européia e Idade Média Latina, veio à luz em Berna, no ano de 1948.

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