DO ASSASSINO AMEAÇADO
(alusões a partir do quadro de Magritte)
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Publicado
na Folha de S.Paulo,
domingo, 14 de junho de 1981.
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MODESTO
CARONE
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1
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Tudo
indica que não pesa a menor ameaça sobre o assassino ameaçado. Embora
a vítima continue ao alcance do seu braço, o distanciamento interior
é suficientemente amplo para livrá-lo de qualquer prevenção. Essa
circunstância explica não só que conserve as costas voltadas para
o cadáver, mas também que ignore o sangue espalhado na boca. Não
surpreende, portanto, que acompanhe a música do gramofone com o
ar de quem a reconhece: intocável no terno cinza, nada nele supõe
a premeditação e a prática do atentado. Pelo contrário, o traço
dominante é a compostura e o rigor de uma paz civilizada.
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2
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Observada
com inquietação, porém, a cena mostra alguns sinais de interesse.
Assim é que, a despeito da luz opaca, o olhar do assassino acusa
o lance grave da violência. Evidentemente ele não é neutro, como
também não é indiferente a inclinação da cabeça para a frente: apesar
de discreto, o arco que vai dos ombros aos sapatos ganha relevo
na mão apoiada sobre a mesa e nos dedos escondidos no bolso da calça.
É a partir desse ângulo que o gesto congela a tensão, não o contrário
- e nesse caso já não há como descartá-la.
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3
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De outro
lado não passa despercebido que a vítima e o assassino ocupam o mesmo
espaço. Diante disso parecem enganosas a higiene das paredes e a limpeza
do assoalho: sem indicarem ausência nem uma presença muito marcada,
elas apontam claramente para a noção de cuidado. Este se manifesta
no despojamento, seja do pormenor explícito, como a mala, o sobretudo,
o chapéu e a écharpe, seja da dramaticidade em relação à nudez da
morta. De fato, a paralisação dos movimentos coincide com o esquema
geral de um retrato falado - o que se vê nunca é aquilo que foi, mas
sempre o que se disse.
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4
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À primeira
vista, só os perseguidores do primeiro plano contrastam com a imobilidade.
Com efeito, eles estão preparados para o bote e agarram com firmeza
a rede e o porrete. Sem prejuízo do seu aspecto anacrônico, as armas
têm uma certa eficácia - além do que a porta por onde o assassino
deve sair permanece na mira da lei. Olhada de perto, no entanto, essa
figuração de força perde muito da sua intensidade: o foco de atenção,
acompanhando a linha das tábuas e paredes, não converge para ela mas
para o protagonista da cena de sangue - o que de modo algum é ocasional.
Sendo assim parece procedente achar que os perseguidores se desviam
para os cantos enquanto assumem, à própria revelia, um caráter meramente
ornamental.
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5
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O ponto
de fuga é dado pela janela onde se reúnem as testemunhas. Formam no
conjunto, com as montanhas do fundo, o estranho grupo que participa,
ao ar livre, de um espetáculo interno. Todos olham de fora para dentro
e estão próximos uns dos outros com se o medo os irmanasse. A hipótese
é plausível porque são eles que confirmam a versão do assassinato
- a tal ponto que suas fisionomias quase se confundem. Mas é justamente
aí que reside sua ambiguidade - a de espectadores coagidos ao silêncio.
Pois para eles a verdadeira ameaça parte do assassino ameaçado.
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