MODESTO
CARONE
A
cultural intelectual de língua alemã tem frequentado o Brasil
de formas variadas, que vão dos naturalistas e de um mestre da
gravura, por exemplo, até um escritor de primeira que na verdade
nunca esteve aqui. Spix, von Martius, Rugendas, formam uma equipe
respeitável de viajantes-descobridores cuja atividade contrasta
com a do ficcionista Thomas Mann. Pois ao contrário dos primeiros,
que constam dos nossos manuais de história e geografia, o Prêmio
Nobel de Literatura só visitou o país na imaginação criadora.
Basta
lembrar nesse sentido a borboleta Hetaera-Esmeralda, que aparece
nas páginas do "Doutor Fausto", e os traços fisionômicos de Tonio
Kroeger, na novela homônima. No primeiro o compositor Adrian Leverkuehn
-que para poder criar faz um pacto com o diabo, como Riobaldo
Tatarana para derrotar os hermógenes do grande sertão- entra em
contato com as asas translúcidas da borboleta ainda na juventude,
por intermédio do pai.
A
bela imagem do inseto, em cujo nome estão assinaladas as letras
da notação musical alemã, emerge na obra de Leverkuehn tanto quanto
nos conteúdos de sua perturbação mental. O nome Hetaera foi dado
por causa das cores e da transparência da borboleta, que de alguma
maneira evocava uma cortesã (hetera) grega; Esmeralda ficava por
conta da cigana criada por Victor Hugo no romance-folhetim "Notre
Dame de Paris".
Sabe-se
que a origem do inseto é brasileira e que no fim do século passado
ele voava livremente nas matas do país, o paraíso terrestre de
que Julia da Silva-Bruhns Mann, a mãe do escritor nascida entre
Angra e Parati, falava aos filhos em Luebeck, perto da fronteira
da Alemanha com a Dinamarca. Ao relegar a história em detalhes
Anatol Rosenfeld (1912-1973) conclui que o maior dos romances
de Thomas Mann é ao mesmo tempo o único que, de uma forma quase
impalpável, o Brasil está presente, não como realidade, mas como
símbolo.
Como
símbolo também pode ser vista a figura de Tonio Kroeger, o artista
alemão moreno e de olhos escuros (ao traçar um perfil de Mann,
Adorno diz que os olhos do escritor quando ensimesmado "relampejavam
negros e brasileiros"), preso e deslocado no mundo burguês, hostil
à arte, dos loiros de olhos azuis, condição ambígua que já se
manifesta no nome latino e germânico do personagem.
A
mãe de Tonio (ou Antonio) é retratada na novela como uma exótica
mulher "do Sul", "cigana" de inclinações artísticas que toca guitarra
e discrepa de alto a baixo do marido, o qual, a exemplo do senador
Thomas Johann Heinrich Mann, pai do romancista, é um severo patrício
da cidade hanseática cujo modelo evidentemente é Luebeck.
Em
sua excelente história da literatura alemã (a melhor já produzida
no Brasil) Otto Maria Carpeaux considera "Tonio Kroeger" um texto-chave
para a compreensão das grandes narrativas de Thomas Mann. Sem
dúvida é uma pequena obra-prima e no seu traçado sutil e preciso,
onde se generaliza toda uma experiência estética, cultural e afetiva,
toma corpo uma realidade essencial, alusiva e cambiante como as
asas de uma borboleta.
Contemporâneos
de Mann e leitores qualificados de sua obra, Anatol Rosenfeld
e Otto Maria Carpeaux vieram ao Brasil de uma vez por todas -o
primeiro procedente de Berlim, onde fazia doutorado sobre o romantismo
alemão e o segundo de Viena, em cuja universidade estudara filosofia,
letra se física. Fugiam ambos à "Bestie" (designação de Brecht),
nazista que havia se instalado na Europa Central e, sem terem
se conhecido lá, acabaram cruzando caminho na cultura brasileira,
à qual deixaram uma contribuição crítica inestimável. Acima de
toda estima pessoal e política que mereceram, foram dois dos maiores
docentes sem cátedra do país.
Pois
foi justamente aqui que, ao lado de trabalhos de interesse nacional
específico, como a bibliografia crítica da literatura brasileira
de Carpeaux e os estudos sobre o nosso teatro, de Rosenfeld, eles
desenvolveram uma obra desbravadora sobre artes, literatura, filosofia,
antropologia -neste caso é suficiente recordar que Carpeaux introduziu
Kafka no Brasil em 1942 e que as análises de Mann e Brecht feitas
por Anatol são indispensáveis à iniciação do leitor brasileiro.
Apesar
dessa capacidade de intervenção os dois foram sempre muito discretos
e só por comentários laterais é que se tem notícia de que Rosenfeld
morou num porão da rua Artur de Azevedo e Carpeaux numa pensão
barata da rua Maranhão em São Paulo, ou que o primeiro trabalhou
na roça e o segundo vendeu partes de sua biblioteca para sobreviver.
Superados os obstáculos mais dramáticos de adaptação -o que também
revelara uma considerável robustez mental- Rosenfeld firmou-se
como professor particular e articulista e Carpeaux como homem
de redação; enquanto isso iam compondo sua obra num português
cada vez mais apurado e pessoal.
A
importância desses livros -a Nova Alexandria republicou há pouco
"A Literatura Alemã" de Carpeaux e a Perspectiva lança em vários
volumes os escritos de Rosenfeld- tem sido confirmada pelo interesse
público e pela constância com que são usados em sala de aula ou
mencionados nos mestrados e doutorados das nossas universidades.
Sua qualidade no entanto ainda não parece ter sido alvo de uma
avaliação fina, à altura do seu padrão de exigência -capaz de
mostrar, por exemplo, o "rigor clássico" da argumentação de Anatol
ou o talento de narrador de Otto Maria.
Nessa
direção sobressaem também realizações de peso e originalidade:
para ficar com duas somente, o ensaio de Rosenfeld sobre o teatro
épico pode constar de qualquer bibliografia mundial sobre o assunto
e a "História da Literatura Ocidental" de Carpeaux é a mais importante
já legada aos países de língua portuguesa.
Sendo
assim, talvez não seja fora de propósito imaginar que um estudo
comparativo sobre os dois ensaístas pode esclarecer melhor não
apenas os seus pressupostos, mas também o seu método, o seu alcance
e o estilo de cada um. Tarefa que certamente facilitaria a caracterização
de ambas através do contraste e abriria caminho para uma consagração
aprofundada de dois intelectuais de cultura alemã que hoje pertencem
à nossa com a mais ampla legitimidade.