DOIS EXILADOS E UM MESTIÇO

Publicada na Folha de S.Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994.


Brasil está presente na obra de Mann; Carpeaux e Rosenfeld têm importante papel na cultura do país

MODESTO CARONE

A cultural intelectual de língua alemã tem frequentado o Brasil de formas variadas, que vão dos naturalistas e de um mestre da gravura, por exemplo, até um escritor de primeira que na verdade nunca esteve aqui. Spix, von Martius, Rugendas, formam uma equipe respeitável de viajantes-descobridores cuja atividade contrasta com a do ficcionista Thomas Mann. Pois ao contrário dos primeiros, que constam dos nossos manuais de história e geografia, o Prêmio Nobel de Literatura só visitou o país na imaginação criadora.

Basta lembrar nesse sentido a borboleta Hetaera-Esmeralda, que aparece nas páginas do "Doutor Fausto", e os traços fisionômicos de Tonio Kroeger, na novela homônima. No primeiro o compositor Adrian Leverkuehn -que para poder criar faz um pacto com o diabo, como Riobaldo Tatarana para derrotar os hermógenes do grande sertão- entra em contato com as asas translúcidas da borboleta ainda na juventude, por intermédio do pai.

A bela imagem do inseto, em cujo nome estão assinaladas as letras da notação musical alemã, emerge na obra de Leverkuehn tanto quanto nos conteúdos de sua perturbação mental. O nome Hetaera foi dado por causa das cores e da transparência da borboleta, que de alguma maneira evocava uma cortesã (hetera) grega; Esmeralda ficava por conta da cigana criada por Victor Hugo no romance-folhetim "Notre Dame de Paris".

Sabe-se que a origem do inseto é brasileira e que no fim do século passado ele voava livremente nas matas do país, o paraíso terrestre de que Julia da Silva-Bruhns Mann, a mãe do escritor nascida entre Angra e Parati, falava aos filhos em Luebeck, perto da fronteira da Alemanha com a Dinamarca. Ao relegar a história em detalhes Anatol Rosenfeld (1912-1973) conclui que o maior dos romances de Thomas Mann é ao mesmo tempo o único que, de uma forma quase impalpável, o Brasil está presente, não como realidade, mas como símbolo.

Como símbolo também pode ser vista a figura de Tonio Kroeger, o artista alemão moreno e de olhos escuros (ao traçar um perfil de Mann, Adorno diz que os olhos do escritor quando ensimesmado "relampejavam negros e brasileiros"), preso e deslocado no mundo burguês, hostil à arte, dos loiros de olhos azuis, condição ambígua que já se manifesta no nome latino e germânico do personagem.

A mãe de Tonio (ou Antonio) é retratada na novela como uma exótica mulher "do Sul", "cigana" de inclinações artísticas que toca guitarra e discrepa de alto a baixo do marido, o qual, a exemplo do senador Thomas Johann Heinrich Mann, pai do romancista, é um severo patrício da cidade hanseática cujo modelo evidentemente é Luebeck.

Em sua excelente história da literatura alemã (a melhor já produzida no Brasil) Otto Maria Carpeaux considera "Tonio Kroeger" um texto-chave para a compreensão das grandes narrativas de Thomas Mann. Sem dúvida é uma pequena obra-prima e no seu traçado sutil e preciso, onde se generaliza toda uma experiência estética, cultural e afetiva, toma corpo uma realidade essencial, alusiva e cambiante como as asas de uma borboleta.

Contemporâneos de Mann e leitores qualificados de sua obra, Anatol Rosenfeld e Otto Maria Carpeaux vieram ao Brasil de uma vez por todas -o primeiro procedente de Berlim, onde fazia doutorado sobre o romantismo alemão e o segundo de Viena, em cuja universidade estudara filosofia, letra se física. Fugiam ambos à "Bestie" (designação de Brecht), nazista que havia se instalado na Europa Central e, sem terem se conhecido lá, acabaram cruzando caminho na cultura brasileira, à qual deixaram uma contribuição crítica inestimável. Acima de toda estima pessoal e política que mereceram, foram dois dos maiores docentes sem cátedra do país.

Pois foi justamente aqui que, ao lado de trabalhos de interesse nacional específico, como a bibliografia crítica da literatura brasileira de Carpeaux e os estudos sobre o nosso teatro, de Rosenfeld, eles desenvolveram uma obra desbravadora sobre artes, literatura, filosofia, antropologia -neste caso é suficiente recordar que Carpeaux introduziu Kafka no Brasil em 1942 e que as análises de Mann e Brecht feitas por Anatol são indispensáveis à iniciação do leitor brasileiro.

Apesar dessa capacidade de intervenção os dois foram sempre muito discretos e só por comentários laterais é que se tem notícia de que Rosenfeld morou num porão da rua Artur de Azevedo e Carpeaux numa pensão barata da rua Maranhão em São Paulo, ou que o primeiro trabalhou na roça e o segundo vendeu partes de sua biblioteca para sobreviver. Superados os obstáculos mais dramáticos de adaptação -o que também revelara uma considerável robustez mental- Rosenfeld firmou-se como professor particular e articulista e Carpeaux como homem de redação; enquanto isso iam compondo sua obra num português cada vez mais apurado e pessoal.

A importância desses livros -a Nova Alexandria republicou há pouco "A Literatura Alemã" de Carpeaux e a Perspectiva lança em vários volumes os escritos de Rosenfeld- tem sido confirmada pelo interesse público e pela constância com que são usados em sala de aula ou mencionados nos mestrados e doutorados das nossas universidades. Sua qualidade no entanto ainda não parece ter sido alvo de uma avaliação fina, à altura do seu padrão de exigência -capaz de mostrar, por exemplo, o "rigor clássico" da argumentação de Anatol ou o talento de narrador de Otto Maria.

Nessa direção sobressaem também realizações de peso e originalidade: para ficar com duas somente, o ensaio de Rosenfeld sobre o teatro épico pode constar de qualquer bibliografia mundial sobre o assunto e a "História da Literatura Ocidental" de Carpeaux é a mais importante já legada aos países de língua portuguesa.

Sendo assim, talvez não seja fora de propósito imaginar que um estudo comparativo sobre os dois ensaístas pode esclarecer melhor não apenas os seus pressupostos, mas também o seu método, o seu alcance e o estilo de cada um. Tarefa que certamente facilitaria a caracterização de ambas através do contraste e abriria caminho para uma consagração aprofundada de dois intelectuais de cultura alemã que hoje pertencem à nossa com a mais ampla legitimidade.

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