MODESTO
CARONE
Em
edição bilíngue, a Iluminuras lança 28 poemas de Georg Trakl (1887-1914)
selecionados e traduzidos para o português por Claudia Cavalcanti.
É uma iniciativa que faz sentido, pois o poeta, pouco conhecido
do público no Brasil, é o maior do expressionismo alemão e um
dos grandes da modernidade.
Sua
obra é pequena e a parte dela que resistiu ao desgaste do tempo
e pertence à poesia universal chega a cem poemas. Mas são todos
de uma extraordinária beleza e originalidade e no plano do que
se convencionou chamar de lírica essencial emendam na obra de
monstros sagrados como Hoelderlin e Novalis, com os quais Trakl
se identifica pessoalmente através de homenagens e citações. Num
século que marginalizou a poesia como uma espécie de quantidade
negligenciável da cultura, é uma realização artística impressionante
-mais ainda quando se lembra que o poeta morreu aos 27 anos.
Os
críticos e leitores atentos são quase unânimes em perceber que
a passagem do aprendizado para a plenitude na produção de Trakl
é assinalada pelo poema "Salmo" (Psalm), escrito em versos livres
em 1912. Georg tem 25 anos, acaba de soltar a língua sob a influência
da tradução alemã de Rimbaud por Karl Klammer e tem pela frente
apenas dois anos para compor, em meio a uma vida fora dos trilhos,
as obras-primas que, segundo os especialistas, atendem às peculiaridades
de uma poesia moderna que não encontrou execução mais importante
em língua alemã.
Até
então ele podia ser considerado um artesão hábil, autor de poemas
trabalhosamente metrificados e acomodados à visão de mundo do
impressionismo vienense, onde predominam os motivos da efemeridade,
da solidão, do amor saudoso, da tristeza e da morte, em cenários
batidos de crepúsculos nos parques vazios, castelos abandonados
e lagos melancólicos. Em 1912 (ano da virada de Kafka, com "O
Veredicto" e "A Metamorfose"), a dicção trakliana passa a ser
outra, densa e precisa, e os versos ritmados mas sem rima armam
uma trama refinada em que os temas incidem na mesma tecla pessimista,
muitas vezes matizadas pelo toque da salvação. É o caso, por exemplo,
de "Aos Emudecidos" (An die Verstummten):
"Oh,
o desvario da grande cidade quando à noite
Árvores
aleijadas enrijecem junto ao muro preto.
Da
máscara de prata espreita o espírito do mal.
A
luz oprime a noite pétrea com látego magnético.
Puta
que nos tremores gelados pare uma criança morta.
A
ira de Deus açoita com fúria a testa do possesso,
Peste
purpúrea, fome que estoura dos olhos verdes.
Oh,
o riso horrendo do ouro.
Mas
na cova escura sangra em silêncio a humanidade mais muda,
Forja
com duros metais a cabeça redentora." (*)
Não
é difícil reconhecer aqui o traço expressionista que transforma
o grito em geometria. Sem patrocinar uma narrativa, quase todo
verso oferece uma visão nova, um gesto novo, fechado em si mesmo,
que se agrega sem mediações ao anterior. O estilo paratático,
de adição, cria um mosaico de fragmentos capaz de projetar, no
conjunto, uma imagem complexa, na qual a grande cidade, marcada
pela força da grana, produz o momento da superação ao forjar com
os seus duros metais a cabeça que redime os que não têm voz.
Embora
nem sempre esperançosa, a lírica de Trakl -retrabalhando praticamente
o mesmo material- lida com as oposições mais radicais. Uma descrição
temática dos seus poemas destaca, de um lado, as constantes da
"morte" e da "destruição" (às quais adere, como consequência e
agravamento, a "decomposição") e de outro a "redenção". Esses
termos polares são encarregados de balizar o regime de complementaridade
em que se articular o movimento mais profundo da obra, ou se se
quiser, o seu "drama". Isso vale de "Salmo" até o último poema
escrito pelo poeta, "Grodek", nome do sangrento campo de batalha
da Primeira Guerra Mundial, onde o escritor-tenente sofreu um
"breakdown" pouco antes de morrer em Cracóvia. Trava-se nele um
confronto entre o verso médio que diz "Todos os caminhos desembocam
em negra decomposição" e a linha final, em que os "netos não-nascidos"
emergem dos recortes apocalípticos da guerra.
Mas
o afunilamento dos temas traklianos pode induzir a falsa impressão
de que é simples ler Trakl, uma vez que seus versos tendem a mobilizar
umas poucas noções veiculadas por determinadas palavras-chaves.
Sem prejuízo de afirmar que os poemas maduros realmente manipulam
um número restrito de "cifras", ou que o código formado entre
elas pode ser submetido a análises mais ou menos precisas, é um
dado de realidade que a sua poesia tem um cerne ambíguo e muitas
vezes impenetrável.
Ao
abordar na "Teoria Estética" a questão do hermetismo e as condições
históricas de sua inteligibilidade, Adorno cita Trakl como caso
exemplar. Rilke, que o leu pela primeira vez quando o poeta estava
a caminho da frente oriental em 1914, anotou, no início de 1915,
que a experiência do poeta se manifesta através de reflexos, ocupando
inteiramente o espaço, que se torna, mesmo para quem está próximo,
indevassável como o espaço de um espelho. A carta em que ele faz
esta observação de artista literário que sabe do que fala foi
traduzida e incluída no apêndice do livro, o que é uma contribuição
para o leitor.
"A
ininteligibilidade que se censura nas obras de arte herméticas
é o reconhecimento do caráter enigmático de 'toda' arte", afirma
Adorno. Os comentadores de Trakl concordam que o enigma de sua
poesia reside no aspecto "autônomo" de imagens vincadas pelo uso
original e "arbitrário" do adjetivo de cor e no modo peculiar
como elas se relacionam. Não surpreende que um deles diga que
o lírico de Salzburg olha com as palavras e que seu olho é eloquente,
ou que vários outros comparem a economia interna do poema trakliano
a um mosaico, a uma colagem ou a uma montagem, em suma: a uma
junção premeditada de fragmentos.
Com
efeito, quem lê estes textos tem a sensação de que as imagens
individuais se apresentam soltas, com o ar de partículas reunidas
sem necessidade, ou seja: como elementos cuja ligação num todo
estivesse sendo assegurada por nexos que passaram de causais a
locais. Veja-se esta peça de excepcional beleza plástica e atmosfera
que é "Paisagem" (Landschaft):
"Anoitecer
de setembro; tristes soam os chamados sombrios dos pastores
Pela
aldeia no crepúsculo; o fogo chuvisca na forja.
Poderoso
empina um cavalo preto; os cabelos de jacinto da criada
Buscam
ávidos o fervor de suas ventas cor de púrpura.
Congela
em silêncio à beira do bosque o grito da cerva
E
as flores amarelas do outono
Vergam
mudas sobre o semblante azul do lago.
Arde
uma árvore em flama rubra; os morcegos esvoaçam com caras escuras."
(*)
Da
frase nominal de abertura, passando pelas sentenças separadas
pelo ponto-e-vírgula e desmembradas pelo corte dos versos, até
os dois tempos da linha final, o que se desdobra diante do leitor
ainda é uma "paisagem", embora o denominador comum destes versos
-o seu ponto de fuga- já não baste para esclarecer sua motivação
profunda nem o seu significado. Mas é evidente que esta "fuga
de imagens" (na expressão de Adorno) está atravessada por um fluxo
associativo nem sempre discernível que lhe dá coerência e lógica
interna, a tal ponto que, no conjunto e nos detalhes, o poema
mostra um aspecto inconfundível de "coisa exata".
Foi
diante desse desafio que os estudiosos esquadrinharam a obra inteira,
desde o único livro publicado em vida pelo poeta, "Poemas" (Gedichte,
1913), até o espólio de inéditos, fragmentos, variantes e esparsos
divulgados na revista "Der Brenner", do amigo e protetor Ludwig
von Ficker. O resultado a que chegaram indica, em resumo, que
Trakl trabalha com um léxico limitado (substantivos + adjetivos)
mas adaptável a múltiplas variações através de construções sintáticas
altamente padronizadas.
Além
disso o repertório das "fatias de realidade" e das "figuras" testadas
pacientemente pelo artista (anoitecer, floresta, colina, cidade,
forasteiro, solitário etc.) é acionado numa frequência tal que
as transforma em verdadeiras peças móveis da composição. Acrescem
os empréstimos recorrentes a Bíblia, de certos poetas afins como
Hoelderlin e Novalis e principalmente da tradução de Rimbaud por
Klammer. Tudo somado, mais a decisão temperamental de "ter de
se corrigir continuamente para dar à verdade o que é da verdade"
(ser poeta é também uma questão de caráter), a impressão que fica
é a de que a poema trakliano assume as características de um jogo
de armar ou então de um caleidoscópio que a cada novo balanço
produz constelações inéditas com as mesmas unidades.
Analisada
sob um ângulo histórico essa língua lúcida e construída parece
caminhar na contracorrente do universo que a viu crescer, pois
sua expressão mais elaborada coincide com os anos imediatamente
anteriores à guerra que estilhaçou o Império Austro-Húngaro e
destruiu o poeta. (Datam desse mesmo período os distúrbios psicológicos
que reforçaram nele o estigma do "déclassé" e do poeta maldito).
Sendo assim, talvez não seja fora de propósito supor que o contraste
entre o timbre controlado da voz trakliana e a turbulência da
História favorece a idéia de que a arte critica a realidade contradizendo-a
pelo exemplo. Mas pela mão contrária é visível que este poema
está erguido sobre silêncios (como diz Rilke), numa linguagem
de cortes e pausas onde os "brancos" do discurso promovem o fragmento
a uma condição prévia de leitura do mundo -obviamente aquele que
o poeta foi obrigado a enfrentar e sobre o qual deixou um depoimento
estético de valor permanente.
Os
textos selecionados para esta primeira edição brasileira de Georg
Trakl figuram entre os mais representativos do poeta. Mas o seu
número é reduzido demais, faltando na coletânea pelo menos duas
ou três dezenas de poemas que hoje têm livre trânsito na poesia
mundial. Para lembrar apenas alguns dos mais célebres, basta citar
"Trompeten" (Clarins), musicado por Arnold Schoenberg, "Ein Winterabend"
(Um Anoitecer de Inverno), que consta de qualquer antologia exigente
do verso alemão, "Die Nacht" (A Noite), que dialoga com um quadro
(A Noiva do Vento) de Oskar Kokoshka, amigo do poeta, e o mais
denso, dramático e autobiográfico dos quatro poemas em prosa traklianos:
"Traum und Umnachtung" (Sonho e Demência), que vale como síntese
poética e existencial do autor e compete em energia e forma resolvida
com os textos congêneres de Rimbaud.
A
limitação da escolha é explicada pela organizadora, que numa nota
preliminar afirma ter posto de lado peças que seriam sacrificadas
na passagem do original para a língua portuguesa. Os poemas rimados
são certamente os que oferecem maior resistência à tradução, mas
a famosa "dicção escarpada", de linhagem hoelderliniana, dos poemas
sem rima publicados em 1914 na revista "Der Brenner", também constitui
um obstáculo considerável que raramente cede aos avanços de quem
traduz.
A
situação é outra no que diz respeito ao verso livre dos textos
de "Poemas" (1913) e "Sebastian em Sonho" (publicado em 1915),
onde a transposição quase literal das imagens é possível, mas
muitas vezes ao preço de perder os seus valores musicais mais
relevantes. É o que acontece em muitos textos deste volume, nos
quais o verso ao mesmo tempo retesado e maleável de Trakl não
encontra intensidade nem modulação equivalentes em português.
Caso
semelhante é o da metáfora de agravamento que especializa o poeta
e exige do tradutor um empenho contínuo, além do estilo paratático
que não pode ser contornado sem prejuízo da composição em mosaico.
Acresce o problema da recorrência programada das "peças móveis"
ou partes itinerantes de expressão que migram de um poema para
outro ("a presa", "o animal", "o anjo" etc.) e funcionam como
elementos de um caleidoscópio que pedem o cuidado da padronização.
O mesmo tratamento cabe aos personagens genéricos ou nomeados
da obra madura (irmã, pai, o estrangeiro, Elis, Helian, entre
outros). A questão dos nomes próprios é contígua: ainda que fosse
só para facilitar a aclimatação, não parece uma boa partilha traduzi-los,
sobretudo se a solução for a versão explicativa, como por exemplo
"vento quente" para "Foehn", designação específica de um vento
alpino tão conhecido na Áustria como o siroco ou o mistral no
Mediterrâneo e na Europa continental.
Fica
claro porém que nada disso invalida o trabalho da tradutora, que
é honesto, paciente, meticuloso e, no âmbito restrito que se impôs,
tem o mérito inegável de colocar 28 poemas de um grande poeta
deste século à disposição do leitor brasileiro.
(*)A
tradução do original de Modesto Carone.